Arnaud
DUMOUCH
261003
A hora da morte[1]
Nihil Obstat Arquidiocese de Paris
Paris, 7 de Julho de 1996 (nº37), M. Dupuy
Imprimatur Arcquidiocese de Paris
Paris, 5 de Novembro de 2002 (nº50-91), D. M. Vidal
Em homenagem a
Geneviève Esquier
Que se empenhou pessoalmente na publicação
deste livro.
Para Nathalie B. que se matou em 1991.
O vocabulário
marcado por * está explicado no fim do livro.
ISBN :
2-403-0923-6
ÍNDICE:
INTRODUÇÃO..................................................................................................................................................................................... 4
A ESPERANÇA ESTÁ EN CRISE................................................................................................................................................. 4
PRIMEIRA PARTE........................................................................................................................... 7
A HISTÓRIA DE DEUS, “O ALFA”.............................................................................................................................................. 7
A Trindade, Pai, Filho e Espírito Santo..................................................................................................................................... 7
TRÊS DIAS PARA SALVAR O
HOMEM.................................................................................................................................... 9
No princípio, a vida terrestre sem
sofrimento.......................................................................................................................... 9
O sofrimento entrou no mundo.................................................................................................................................................. 9
Os orgulhosos.............................................................................................................................................................................. 10
Os justos....................................................................................................................................................................................... 10
Os santos...................................................................................................................................................................................... 10
SEGUNDA PARTE........................................................................................................................ 12
CAPÍTULO 1: OS
ACONTECIMENTOS DA HORA DA MORTE....................................................................................... 12
A morte do soldado SS Johann S............................................................................................................................................ 12
“…por um modo só de
Deus conhecido”.
Perspectiva filosófica...................................................................................... 14
Onde se encontra fisicamente o outro
mundo?.................................................................................................................... 19
Retorno à teologia católica: O encontro
com Cristo glorioso............................................................................................. 20
Na hora da morte, a fraqueza que inclinava
ao pecado é retirada.................................................................................. 20
Na hora da morte, as condições de uma
escolha livre são oferecidas............................................................................. 21
Na hora da morte, o aparecimento de Cristo
glorioso revela toda a verdade................................................................. 22
É o dia do Senhor, aquele que o Evangelho
anuncia.......................................................................................................... 23
Cristo glorioso.............................................................................................................................................................................. 24
A escolha...................................................................................................................................................................................... 25
Ele vem, acompanhado dos santos e dos
anjos................................................................................................................... 26
A necessidade da presença do Anjo rebelde......................................................................................................................... 27
Tudo isto se passa na morte e não depois da morte............................................................................................................ 31
CAPÍTULO 2: O JUÍZO FINAL DA
PESSOA............................................................................................................................ 32
A morte é a entrada definitiva no outro
mundo................................................................................................................... 33
O juízo final................................................................................................................................................................................. 34
CAPÍTULO 3: O INFERNO.......................................................................................................................................................... 36
O que é o inferno........................................................................................................................................................................ 36
A blasfémia contra o Espírito Santo....................................................................................................................................... 38
Os seis caminhos da danação.................................................................................................................................................. 39
1- Recusa em acreditar na verdade
suficientemente revelada...................................................................................... 39
2- Inveja das graças fraternas............................................................................................................................................. 40
3- Presunção............................................................................................................................................................................ 41
4- Desesperança..................................................................................................................................................................... 42
5- Obstinação.......................................................................................................................................................................... 43
6- Impenitência final............................................................................................................................................................. 43
As “agruras” do inferno............................................................................................................................................................. 45
O fogo da alma....................................................................................................................................................................... 45
O verme roedor do remorso.................................................................................................................................................. 46
O choro e o ranger de dentes................................................................................................................................................ 47
As trevas exteriores................................................................................................................................................................ 47
Os condenados fogem da presença dos santos
do Céu.................................................................................................. 47
… e a recusa em viver nos locais desertos......................................................................................................................... 48
O tanque de enxofre e o fogo físico................................................................................................................................... 48
Quem vai para o inferno?......................................................................................................................................................... 48
CAPÍTULO 4: OS SEIS GRAUS DO
PURGATÓRIO............................................................................................................... 50
A existência do purgatório........................................................................................................................................................ 50
A escada de Jacob...................................................................................................................................................................... 50
As seis moradas do purgatório................................................................................................................................................. 51
1. O primeiro grau do purgatório, a vida
na terra............................................................................................................. 52
2. O Limbo das almas errantes............................................................................................................................................ 56
3. A aparição de Cristo (Parusia),
acompanhado dos santos e dos anjos................................................................... 60
4, 5, 6- Os três purgatórios que se seguem
à aparição de Cristo.................................................................................... 60
4. Quarto purgatório - quando a alma
amorosa diz: “um dia, serei digna de ti!”...................................................... 61
5. Quinto purgatório: quando a alma se
gasta de esperar.............................................................................................. 62
6. Sexto purgatório: o átrio do Céu..................................................................................................................................... 63
7. A entrada na Visão de Deus............................................................................................................................................ 64
CAPÍTULO 5: AS CRIANÇAS
MORTAS SEM BAPTISMO................................................................................................. 65
A existência do Limbo das crianças faz
parte da fé da Igreja, mas não a sua eternidade.......................................... 65
Que acontece às crianças mortas sem
baptismo?................................................................................................................ 66
A alma das crianças é criada por Deus na concepção.................................................................................................... 66
Do limbo à visão beatífica................................................................................................................................................... 67
Os inocentes são primeiro adoptados por
dois pais do Céu. Depois, são baptizados............................................... 67
Deus dá aos inocentes a capacidade de fazer
um acto livre......................................................................................... 69
Todas as crianças escolhem o paraíso............................................................................................................................... 69
O facto de não terem vivido a vida
terrestre é para elas uma perda............................................................................ 70
CAPÍTULO 6: O SUICÍDIO E A
EUTANÁSIA......................................................................................................................... 72
O suicídio pode ter múltiplas causas
morais......................................................................................................................... 72
O suicídio ligado ao desespero psicológico
e espiritual................................................................................................... 73
Todo o suicídio se explica por esta frase:
“Onde estiver o teu tesouro, aí está o teu coração.”............................. 73
A eutanásia............................................................................................................................................................................. 74
Que acontece aos desesperados?........................................................................................................................................ 75
CAPÍTULO 7: “A SÉTIMA
PORTA”, A VISÃO BEATÍFICA............................................................................................... 77
Ver Deus face a face.................................................................................................................................................................. 77
A ausência do corpo carnal...................................................................................................................................................... 79
CAPÍTULO 8: A RESSURREIÇÃO
DOS MORTOS E A FORMAÇÃO DO MUNDO NOVO.......................................... 80
“Nem todos morreremos”......................................................................................................................................................... 80
A ressurreição dos mortos......................................................................................................................................................... 80
A impassibilidade................................................................................................................................................................... 82
A subtilidade........................................................................................................................................................................... 82
A agilidade............................................................................................................................................................................... 82
Claridade................................................................................................................................................................................. 83
A Visão beatífica e o inferno................................................................................................................................................... 83
O mundo novo............................................................................................................................................................................ 84
A destruição da terra e das suas escórias........................................................................................................................... 85
Um novo mundo físico......................................................................................................................................................... 85
Concretamente, haverá música?........................................................................................................................................ 86
Os animais e as plantas......................................................................................................................................................... 86
TERCEIRA PARTE: COMO SABEMOS TUDO ISTO?.......................................................... 89
Os teólogos e a salvação dos homens: 2 000
anos de um laborioso labor...................................................................... 89
Como encontrar a verdade em teologia
católica?............................................................................................................... 90
O método: Escritura, Tradição e
confirmação de Pedro..................................................................................................... 90
A verdade relativa à salvação,
particularmente, a hora da morte.................................................................................... 91
1- Primeira verdade segura: Só a caridade
abre o Céu................................................................................................... 91
2- Segunda verdade segura: Deus propõe a
todos a salvação...................................................................................... 92
3- Terceira verdade segura: IMEDIATAMENTE
DEPOIS DA MORTE, a alma em estado de morte espiritual é separada de Deus para a
eternidade................................................................................................................................................................... 92
4- Quarta verdade segura: A salvação é
proposta ao homem durante a vida na terra, antes da separação da alma e do
corpo 93
5- Para além da fé, a experiência: a
salvação não é proposta a todos os homens durante a vida na terra......... 93
Uma perturbação que estimula o teólogo na
sua investigação......................................................................................... 94
A verdade sobre a hora da morte............................................................................................................................................ 94
CONCLUSÃO.................................................................................................................................................................................. 96
A FÉ CATÓLICA SOBRE A MORTE........................................................................................................................... 97
A maioria das vezes, quando um
cristão pergunta a um padre (portanto, ao especialista em teologia) um
ensinamento rigoroso sobre o que se passa depois da morte, ouve responder: «Não sabemos grande coisa. Não temos nenhuma
certeza. Mais vale não fazer essas perguntas. O essencial é fazer o bem à nossa
volta. Deus preparou-nos maravilhas como recompensa.» Nada é falso nesta
resposta. Merece no entanto uma censura grave: a de não relatar a natureza das
maravilhas preparadas por Deus.
O silêncio dos padres e teólogos
é compreensível. Tantos foram os relatos assustadores sobre o outro mundo,
lançando o medo, que este género de tema presta-se mais à desconfiança que ao
interesse. Na verdade, o medo não é evangélico. Uma outra razão, menos pastoral
e mais intelectual, pode explicar esta circunspecção. Em nome de uma forma
moderna da leitura da fé, chamada exegese histórico-crítica, a maioria dos
teólogos actuais rejeitam como acrescentes, todas as precisões fornecidas,
desde há séculos, pela Igreja e pelos santos. Pensam que apenas um método
racional de leitura da Escritura, pode permitir o conhecimento da fé. Este
método afirma-se, evidentemente, em oposição à intervenção dos papas e dos
concílios da Igreja, demasiado autoritários a seus olhos. Será legítimo? A vida
do mundo donde Jesus vem, será verdadeiramente melhor compreendida se
excluirmos o carisma de confirmação da verdade, presente nos sucessores dos
apóstolos?
A verdade é que o grande silêncio
dos homens de Deus, desde há trinta anos, provocou nos fiéis uma mutação que
entristece. A esperança está moribunda. A maioria esqueceu o conteúdo da promessa
feita por Cristo relativa ao que se segue à morte. Ora, a natureza tem horror
ao vazio. A ausência de esperança deixa um vazio no cristianismo, que se enche
muito depressa com outras formas de expectativas humanas. Muitos ficaram
reduzidos a colocar a expectativa na construção social deste mundo. Para os
mais religiosas, um hipotético retorno à terra pela reencarnação constitui uma
esperança, não parecendo o Céu suficientemente desejável.
É, pois, necessário, mais que
nunca, contar a esperança cristã. Quando
descobrimos que não se trata de um tratado teórico mas de uma vida, de uma
esperança que, para mais, se conta como uma história, não podemos senão ficar
entusiasmados.
Este trabalho traz consigo outra
intenção, dirigida aos teólogos actuais. Pretende mostrar que a teologia, mesmo
quando aposta na fé, é Palavra de vida. É raro, nos nossos dias, nas
Universidades Católicas, que a Sagrada Escritura, os santos, o Magistério da
Igreja e, por outro lado, a razão filosófica, sejam inteiramente escutados, sem
nada rejeitar. Ora, este caminho intelectual pode conduzir a um profundo
caminho para a verdade, capaz de responder às aspirações de cada um. A
teologia, compreendida deste modo, permanece um tesouro, e o racionalismo dos
professores de Teologia que não mais querem acreditar senão na sua razão, pode
ser ultrapassado.
Vão seguir-se três partes:
I - Lembrar o que fundamenta tudo: Deus
é amor. Criou-nos para o vermos face a face.
Não é possível compreender o que
quer que seja, no plano cristão, sobre os acontecimentos que viveremos na hora
da morte ou no fim do mundo, sem conhecer a razão e a origem de tudo. Como
compreender o Ómega se não conhecemos
o Alfa? Tudo, nesta esperança, se
explica por um princípio simples. Trata-se de um projecto de Deus. Ele quer mostrar-se-nos, face a face, para
nos encher de felicidade. Nada, na história do homem, se entende sem esta
luz. Mas tudo se pode entender com ela. Para o manifestar, não cessaremos, no
decurso de todo este livro, de nos debruçar sobre o mistério mais difícil de
todos: o sofrimento.
II - A nossa morte e o que se lhe segue
A esta luz, uma segunda parte
procurará relatar em termos simples, o que viveremos na hora da morte. Como é
que Deus age para salvar os homens na hora da morte? O inferno existe?
Existirão acontecimentos
concretos, aptos a serem contados, como se faz numa narrativa de aventuras.
Nada disto é inventado. Tudo está sugerido e, por vezes, explicitamente
descrito no Evangelho. Os santos e a Igreja aprofundaram-lhe o mistério no
decorrer dos séculos. Os teólogos não tiveram senão de se servir e completar,
pela reflexão, os aspectos em falta.
III - Uma explicação mais teórica sobre
a forma como tomamos conhecimento de tudo isto
Destina-se aos espíritos curiosos
das minhas fontes, crentes ou não crentes.
1 - Sempre que me foi possível,
não fiz senão relatar o que constitui com certeza a fé da Igreja: 1. Quando a Sagrada Escritura relata explicitamente
alguma coisa; 2. Quando, além disso, grandes santos, cuja canonização
compromete a Igreja[2], ensinaram
essa mesma coisa; 3. E quando, para coroar o todo, uma Palavra de Pedro[3]
lhe confirmou a verdade, é que esse ensinamento é verdadeiro.
Um católico pode colocar aí a sua
fé. Viverá depois da morte, o que foi relatado sob a pobreza das palavras deste
mundo. Um espírito não crente mas curioso, pode dizer: «Eis o que ensina o cristianismo católico». Sempre que for
possível, ao longo de todo o texto, direi em nota ou pela menção «Coisa certa», quando tratarmos de tais
verdades.
2. Mas nem tudo, nesta obra, é
directamente a fé da Igreja, embora tendo um estatuto particular de certeza.
Trata-se, principalmente, de factos trazidos pelos santos canonizados, que não
param de se repetir no decurso dos séculos, ao ponto de constituírem a Tradição
mais profunda da Igreja. São as «coisas
prováveis» indicadas neste livro.
3. Há dois pontos essenciais, na
minha opinião, que no entanto não constituem senão deduções teológicas ou
filosóficas. Fui levado a ensinar, no meu desejo de ser fiel a todo o ensino da Igreja, duas coisas
novas.
A
vinda de Cristo na glória, acompanhado das nuvens do Céu, «como o relâmpago do oriente ao ocidente»[4], não se refere unicamente
ao fim do mundo. É vivida por cada homem no momento que constitui o fim do seu
próprio mundo, quer dizer, na hora da morte. Cabe a cada um construir a sua
opinião pessoal sobre este ponto. Não é contraditório com a fé[5]. Mas não faz parte dessa
fé confirmada pela palavra de Pedro. É ensinada por uma santa autêntica,
Faustina[6]. Na minha opinião,
trata-se da chave, aquela de que Deus
guardava a explicação para o fim dos tempos
«a fim de conduzir a Igreja à descoberta da verdade total»[7].
Na terceira parte, indico com precisão, porque não posso dizer outra coisa.
Os mortos não são apenas
espíritos semelhantes aos anjos (quer dizer, inteligências separadas de toda a
ligação com o corpo, e vontades destituídas de paixões sensíveis). Os mortos
levam com eles as faculdades do psiquismo (vêem, ouvem, as recordações
sensíveis permanecem, experimentam sentimentos e, no entanto,… o cérebro, que é
a sede dos sentimentos, desapareceu de facto!). Formado na escola de S. Tomás
de Aquino, tentei durante anos encontrar falhas nos relatos daqueles que se
tinham aproximado da morte, na sequência de uma paragem cardíaca[8]. Parecia-me impossível que
conservassem as sensações estando o
cérebro em estado de morte clínica. Mas, tive que ceder, mais uma vez por
causa de S. Tomás de Aquino: «Quando a
experiência e os factos ensinam uma verdade filosófica contrária ao raciocínio
racional, deve a experiência impor-se e o raciocínio reformar-se.» Perante
este facto novo, nada de essencial se modifica, no que constitui a descrição do
Céu. Mas tudo se torna sensível, fisicamente
luminoso, feito para nós.
Estes dois aspectos estão
marcados pela menção: «Coisa, na minha opinião, certa. Pertence ao leitor
julgar».
3 - Posso assegurar que este
trabalho não contém nada que seja contrário à fé (contra fidem); o Imprimatur eclesiástico não pretende significar
outra coisa. Mas contém necessariamente algumas notas que são à margem da fé (praeter fidem). Exemplo: a natureza do
mundo novo, a presença de animais no mundo novo…). Quando tais opiniões forem
dadas, serão marcadas pela menção «coisa
não decidida. Pertence ao leitor julgar».
«Estamos na véspera de uma outra
vida,
De um outro espírito,
De uma outra linguagem,
De um maior amor a Deus[9]. »
DEUS QUER DAR-SE FACE A FACE
Esta primeira parte
não é senão um resumo do que habitualmente é ensinado a todos os cristãos. Não
traz nada de essencialmente novo àquele que está ciente da Trindade e do seu
projecto, das origens do mundo, da conduta de Deus para com os homens para os
salvar por meio do sofrimento, desde
Adão até hoje, passando pela incarnação de Cristo. Não obstante, é indispensável
lê-la, uma vez que é o fundamento que explica os acontecimentos da hora da
morte.
O que se passa na hora da morte?
Os acontecimentos, na verdade, são simples de compreender se conhecermos as
bases, isto é, o Evangelho. Em caso algum podem ser compreendidos sem conhecer
o seu fundamento evangélico porque tudo, em teologia católica, é consequência
de uma fé relativa a Deus e ao sentido da vida. O Evangelho pode ser resumido
assim.
A Trindade, Pai, Filho e Espírito Santo
(A verdade mais certa da fé!)
Antes do mundo existir, desde
toda a eternidade, existe um Ser único, «alguém» que é infinito. Vive
totalmente feliz, cumulado pela sua própria natureza. É misterioso, uma vez
que, embora sendo um só ser, três pessoas (entender sob a palavra “pessoas”,
três fontes de luz e de amor) amam-se e contemplam-se nele, o Pai, o Filho e o
Espírito Santo[10].
Trata-se de uma vida íntima inimaginável, feita de ternura e de luz
inacessíveis.
Aqui, o leitor deve estar
particularmente atento. Trata-se do Alfa
(o fundamento) do cristianismo. Ele explica também tudo quanto diremos a
seguir.
Deus é Todo-Poderoso. Ele é a Luz
infinita. Mas o seu coração pode resumir-se em duas qualidades: a humildade[11] e o amor[12].
Incessantemente, o Pai, o Filho e o Espírito Santo, se dão ao outro. Cada uma
das pessoas da Trindade põe a outra à frente, apaga-se diante da contemplação e
do amor da sua grandeza. Esta vida trinitária, este dom mútuo total, irradia ao
ponto de constituir o próprio Ser de Deus. Deus é assim e ninguém o pode mudar.
Percebe-se que aquele que deseja ver Deus face a face, tenha de conservar bem à
cabeça, o nome destas duas qualidades.
A criação dos anjos e dos homens
(Coisa certa)
Na sua eternidade, Deus concebeu
o seguinte projecto. Porque não partilhar a sua felicidade com outros seres?
Porque não criar numerosas pessoas, dotadas de inteligência e liberdade? Seriam
introduzidas no íntimo das três pessoas. Bem entendido que não se trataria de
as introduzir à força, mas segundo o modo da sua natureza, quer dizer,
livremente, num acto de amor recíproco.
Deus agiu. Criou primeiro os
anjos, puros espíritos sem corpo[13]. Depois, criou os homens
e as mulheres, seres espirituais e físicos. Anjos e homens foram feitos para
ver Deus face a face.
A humildade e o amor[14]
(Coisa certa)
No entanto, punha-se um problema.
Para ir para junto de Deus, para viver da felicidade infinita que consiste em
compreendê-lo e amá-lo face a face, era absolutamente necessário tornar-se
semelhante a ele, isto é, totalmente
humilde e totalmente entregue ao amor. Aqui
se encontra a chave de tudo. “Ninguém
pode ver Deus sem morrer para si mesmo”[15],
ensina o Antigo Testamento. Por causa da pureza e da delicadeza de Deus, não
era suficiente qualquer amor,
qualquer humildade, mas apenas um
amor total, despojado de toda a procura interesseira. O mínimo orgulho, o
mínimo egoísmo, e a entrada face de Deus tornava-se impossível, comparável a
uma violação, quando deveria ser um casamento. Toda a vida de Jesus é a
revelação disto.
Convém fazer aqui uma observação
importante. Deus não desejava criar um paraíso onde cada pessoa, perdida na sua
contemplação, estaria unicamente voltada para ele. A sua ideia era criar uma
Igreja, quer dizer, uma comunidade imensa vivendo nele, numa total comunhão de
humildade e de amor. Foi por isso que, quando Jesus veio à terra anunciar a Boa
Nova, não deu um só mandamento, mas dois que, segundo ele, não faziam senão um:
“Amarás o teu Deus com todo o teu
coração, com toda a tua alma e com toda a tua força. Amarás o próximo como a ti
mesmo.”
Mas, quem se comporta assim? Quem
é que se pode intitular humilde e com um amor ao ponto de ser capaz de dar a
vida por alguém, de dar a vida por um inimigo? A imagem do amor necessário, é
visível através da vida de Jesus. Aqueles que lhe deram a morte e que troçaram
dele, ama-os ao ponto de os acolher na hora da morte e lhes propor, sob
condição de arrependimento e conversão total, a vida eterna. Estas pessoas
ficaram, sem dúvida, de tal forma surpreendidas por tal prova de amor, que
pediram perdão pelo seu pecado.
Concretamente: ninguém pode
entrar na vida eterna. As condições exigidas são impossíveis ao homem. É
impossível ser humilde e amar a este ponto. Mas, explica Jesus depois de uma
pergunta dos discípulos sobre este tema[16], não é impossível a Deus.
Para resumir, pode ser mais
simples compreender as coisas desta forma:
Porque Deus é infinita delicadeza de humildade e de amor, ninguém o pode ver e
ser feliz, da sua felicidade, se não casar
com ele. É um casamento de amor onde se exige da noiva (nós próprios), ser
como Deus[17]:
totalmente humilde e totalmente amor[18]. Sem estas qualidades do
coração, ninguém pode desposar Deus, porque
ninguém pode compreender o que quer que seja de Deus.
O Gólgota é o mundo.
Os três crucificados representam todos os homens e Deus que os salva através do
sofrimento. Quer sejam perversos, justos ou santos, todos os homens são
crucificados na terra, cedo ou tarde, a fim de morrerem para si mesmos e serem
salvos.
No princípio, a vida terrestre sem sofrimento
(Coisa certa)
No princípio da humanidade, não
havia nem sofrimento nem morte. Tudo era útil para preparar cada um para ser
humilde, excepto a cruz. O projecto de Deus consistia em fazer amadurecer o
coração dos homens e das mulheres, através de uma vida na terra, sem sofrimento. A única prova era a da
fidelidade, durante um tempo passado neste mundo. Deus criou Adão e Eva, o
primeiro casal, e deu-lhes este único mandamento: “Amai-me, amai-vos e amai os vossos filhos. Fazei tudo o que quiserdes,
mas colocai o amor como fonte de todos os vossos actos.” Ao fim de um certo
tempo, Deus tinha previsto vir colhê-los, “assuntá-los”, na Visão. Fá-lo-á mais
tarde à Virgem Maria, aquela que jamais traiu o seu amor. Mas Adão e Eva
acharam esta fidelidade muito pouco excitante. Não lhes permitia a única coisa
que, finalmente, torna a vida picante: “decidir
nós mesmos o que é bem e o que é mal; viver sem directivas, ser dono de nós
próprios.” Adão e Eva preferiram viver numa total liberdade, com o risco de
não mais se importarem com o amor. Desligaram-se do Criador. É o pecado
original, aquele que matou a humildade e
o amor.
O orgulho de Adão e Eva estava
orientado para o amor egoísta. Tinha o poder, se obstinados em conservá-lo, de
os conduzir à solidão eterna. Por outro lado, o seu pecado era ainda tão pouco
obstinado que podiam ser levados a renunciar a ele. Então, Deus agiu para os
salvar. Tomou as medidas. Para isso, fez-lhes experimentar a sua pequenez,
entregando-os a si mesmos. Apagou-se. Pediu aos anjos que tornassem discreta a
sua protecção.
Toda a história da humanidade na
sua relação com Deus, pode finalmente resumir-se em três fases: “três dias”, diria a Bíblia, ou ainda, “três cruzes”, como ilustra o Gólgota.
Encontramo-las em cada uma das vidas humanas, mesmo hoje, porque Deus não pára
de agir para salvar. Mas constituem também de uma forma grandiosa, a História
Santa que a Bíblia relata.
(Coisa certa)
O plano de Deus consistia em salvar o homem através da experiência
do sofrimento.
Assim que o homem se pôs a pecar,
o próprio sofrimento se tornou útil: quer queiramos quer não, ele pode conduzir
os homens a descobrir a sua pequenez. E a pequenez é uma disposição para o
amor…[19] Deus não mudou, depois do
pecado do homem. Tudo passa, os reinos desmoronam-se, mas Deus é. Ele está
sempre, presente no silêncio e tudo o que queria, como sempre, era conduzir
cada homem à glória e que nenhum se perdesse. Recordemo-lo: não há outro motivo
que possa explicar o mundo. Está aqui a chave que permite abrir os mistérios
selados do sentido da vida. Tudo quanto os homens passam, todos esses males que
o Apocalipse descreve sob a imagem dos sete mistérios selados[20], tudo isto é querido por
Deus a fim de que todos sejam salvos. Mas, depois do primeiro pecado, ninguém
mais o sabia: os sábios, os entendidos, ninguém sobre a terra podia explicar
esta miséria. Foi preciso que o próprio Deus o viesse ensinar de novo à terra,
para que os homens compreendessem.
1 - Num primeiro tempo, Deus
deixou o homem que se tornara egoísta, viver como desejava, saborear até ao fim
os frutos sedutores da árvore do orgulho. Deixou que lhe colhesse a solidão, os
sofrimentos, a vida insensata e a morte. Ele próprio se escondeu e não explicou
mais o seu objectivo aos homens, ao ponto que esqueceram o sentido da vida.
Estenderam os braços para o céu vazio. Preferiam criar múltiplos deuses
imaginários, a ficarem sós. Tendo tocado o fundo da miséria, humilhado, o homem pôs-se a desejar com
todo o ser, um Salvador. Desta forma, através deste sofrimento, os mais
orgulhosos de entre os homens, foram dispostos para compreender um começo de humildade e uma necessidade de amor….
Esta primeira fase é a mais
terrível porque conduz, como consequência do silêncio de Deus, ao desespero
perante a morte. É descrita pela Bíblia até ao momento da vocação de Abraão. É
simbolizada no Evangelho pelo “mau ladrão”, crucificado com Jesus. É a fase do silêncio de Deus, silêncio eficaz contra
o orgulho do homem que morre.
2 - O homem pediu ajuda. Mas o
sofrimento sob todas as suas formas, não parou. Suplicou que o viessem salvar: “Há alguém lá em cima
que escute as nossas orações?”[21] Então, bastantes gerações
mais tarde, Deus respondeu. Prometeu um
Salvador a alguns. Mas não o enviou de imediato, a fim de que se
aprofundasse a sede dos homens. Orgulhosos, tornaram-se mais humildes e a sua
alma pôs-se a desejar a revelação do Deus de quem não conheciam o coração.
Assim, insensivelmente, através destes sofrimentos, o coração da humanidade amadureceu na direcção de uma maior humildade e
de um maior desejo de amor.
Esta segunda fase foi
particularmente vivida pelos judeus até à vinda do Messias Jesus, a partir do
dia em que o seu antepassado Abraão recebeu a promessa de uma salvação. É
simbolizada no Evangelho pelo “bom ladrão”. Com efeito, os justos experimentam
os mesmos sofrimentos no decorrer da vida que os “maus”. Mas eles provocam um
efeito mais profundo. O bom ladrão crucificado à direita de Jesus, dizia-lhe[22]: “lembra-te de mim quando estiveres no teu reino”. É a fase da fé e da esperança.
3 - Finalmente, Deus salvou-os.
Fê-lo ele mesmo, de uma forma maravilhosa, de tal maneira que todos podem
bradar: “Verdadeiramente, Deus amava-nos!” Uma das pessoas da Trindade fez-se
homem em Jesus Cristo. O Messias-Deus ensinou e quis morrer às mãos daqueles
que salvava, a fim de que os mais orgulhosos de entre os homens não mais
pudessem duvidar do seu amor. É a fase do
amor novamente revelado, aquela que começo há dois mil anos. Mas nem por
isso Deus suprimiu os sofrimentos da vida, nem o seu silêncio. O cristão morre
como o pagão. É que, através dos seus sofrimentos, foi-lhe possível transformar
a cruz em mais humildade e amor, numa humildade
e num amor conscientes daquilo que os finaliza. O crente cristão pode
faze-lo com mais intensidade, porque sabe para onde vai e o que faz sobre a
terra.
Esta parte da humanidade (e do
nosso coração) é simbolizada no Gólgota pelo próprio Cristo. A Igreja da terra,
que é suposta segui-lo na mesma luz, é
como o seu corpo que ficou na terra.
Muitos homens contemporâneos
vivem segundo a primeira e segunda fases, segundo a profundidade da revelação
religiosa recebida. Com efeito, enquanto em nós há orgulho, Deus age connosco
segundo a ordem da primeira fase. Deixa que a vida nos humilhe para que nos
tornemos humildes. Quanto nos tornamos conscientes do nosso estado de miséria,
já experimentados pelo sofrimento, não suprime a cruz e deixa mesmo que ela nos
atinja até à morte. Deus age, então, connosco, segundo a ordem da segunda fase.
Já humildes, quer que tenhamos esperança de ser salvos. Desejar ser salvo é já
contraditório com o orgulho. Acontece então revelar o seu amor a alguns e
dar-lhes, com a caridade, a explicação do sentido da cruz. Mas nunca nos leva
com ele, de imediato, para o paraíso celeste. Deixa-nos que terminemos a vida
na terra com os nossos companheiros, para que, sofrendo com eles, possamos amar
até dentro desse sofrimento. É a terceira fase, a da Aliança de amor realizada
por Jesus Cristo, aquela em que a morte serve para melhor amar Deus e os
irmãos. Em cada um dos casos, aquele que sabe olhar com o olhar de Deus,
compreende que tudo isto é em vista da vida eterna, da felicidade que não tem
fim, o encontro face a face com Deus.
O facto de a humildade e o amor[24]
serem as qualidades essenciais de Deus, permite compreender muitas acções
escandalosas de Deus, particularmente o seu aparente abandono dos homens na
terra. Em teologia cristã, é mesmo possível dizer que, hoje e no lugar onde
estão, as crianças que são mortas, as vidas humanas destruídas, não lamentam
ter passado por um tal sofrimento. O Profeta Isaías diz[25]: “As antigas angústias serão esquecidas, desaparecerão dos meus olhos.
Porque eis que vou fazer novos céus e uma nova terra, não mais se recordarão o
passado, ele não mais virá ao espírito.” O apocalipse acrescenta que nos
alegraremos com a acção de Deus “porque
lavou as nossas vestes no sangue de Jesus”[26]. Assim como sofreram, assim
se lançaram com força nos braços de Deus, obtendo em troca a Visão beatífica, à
medida de todos os seus desejos.
O sofrimento é,
pois, um mal, mas o seu efeito pode ser um bem, afirma João Paulo II[27]. O sofrimento, mesmo
quando não aceite, aprofunda o coração no sentido da humildade (não sou nada) e do desejo (desesperado,
às vezes) de um amor que salve.
Depois de ter recordado estas
premissas, é possível abordar como se produz a segunda fase da purificação do
coração, a hora da morte.
«… E NA HORA DA NOSSA MORTE»
Que se passa no momento da nossa
morte? Os evangelhos dão-nos a resposta, mas de forma elíptica e discreta. Foi
preciso todo um trabalho de teólogos e de história da Igreja, para esclarecer
tudo[29]. O texto seguinte parece,
à primeira vista, falar da vinda definitiva de Cristo no final do mundo.
“Como nos dias de Noé, assim será a
vinda do Filho do Homem. Nesses dias que precederam o dilúvio, comiam e bebiam,
tomavam marido e mulher, até ao dia em que Noé entrou na arca, e ninguém
suspeitou de nada até à chegada do dilúvio, que os levou a todos. Assim será
também a vinda do Filho do Homem. Então, dois homens estarão no campo: um será
levado, o outro deixado; duas mulheres estarão a moer: uma será tomada, a outra
deixada.[30]”
No entanto, termina duma forma
estranha. Se um homem é tomado e o outro deixado nos campos nesse dia, não é
porque se trata doutra coisa? Na verdade, no dia do fim do mundo, se dois
homens estiverem no campo, serão levados ambos para o outro mundo…[31]
Quando Jesus fala da vinda do
Filho do Homem, parece misturar voluntariamente várias realidades, como se,
para ele, representassem o mesmo mistério. Aqui, fala em particular da hora da
morte individual.
A morte do soldado SS Johann S.[32]
Ao longo de toda esta parte, para
tornar as coisas mais vivas, vou basear-me num relato da morte de uma pessoa
cujo destino me impressionou. A sua existência foi revelada por ocasião da
publicação de cartas retidas pela censura alemã, no decurso da segunda guerra
mundial.
“Johann era filho de pastor. Nasceu na
primavera de 1920. Viveu os primeiros anos como uma criança sem problemas, numa
Alemanha minada pelas sequelas da derrota de 1918. Quando Hitler chegou ao
poder, era adolescente. Era idealista e generoso. Assistiu a uma bela cerimónia
presidida pelo partido nazi. Ficou emocionado pela procissão com archotes que
concluiu o dia. Os cânticos patrióticos saindo de milhares de peitos
entusiastas, abalaram-no. Alista-se nas juventudes hitlerianas, não por
ideologia, mas porque os amigos também estão entusiasmados. Aí recebe uma
formação de que se orgulha. Para além das actividades lúdicas, recebe-se uma
formação patriótica e política. A religião do pai não lhe interessa muito: a
paróquia é triste. Deixa-se influenciar.
Uma canção escrita por um Judeu,
comentará 40 anos mais tarde, o destino dos jovens daquela geração[33]: “Se tivesse nascido em 1917 em Leidenstadt, alimentado de ódio e de
vingança, teria eu sido outra coisa?”
Dez anos mais tarde, em 1943, Johann
está em Stalinegrado. Está escondido numa cave arrombada. Diante dele, a
carcaça de um cavalo acaba de se decompor. Tem fome. Um avião deverá voar
amanhã para a Alemanha, o último avião sem dúvida, porque os exércitos
soviéticos estão prestes a tomar o aeroporto. Escreve então uma carta ao pai, a
sua última carta: “Papá, se o teu Deus existe, o teu Deus não está em
Stalinegrado.” A carta jamais chegará: tida como demasiado pessimista, é
desviada pela censura alemã. Nunca foi encontrado o corpo de Johann.
Poderíamos multiplicar o relato
das vidas humanas. Cada destino é único e termina, nesta terra, com a morte.
Entre Johann e Santa Teresa do Menino Jesus[34], nada, ou quase, é comum,
excepto esta necessidade de morrer. Como comparar a caridade de Santa Teresa
que queima a sua curta vida ao serviço de Deus e dos irmãos, e a escolha
ingénua de Johann de uma filosofia que o seduziu mais pela sua liturgia que
pelo seu conteúdo? Que aconteceria a Johann se tivesse tido a sorte de nascer
em França na família de Teresa Martin? Ter-se-ia sido tornado certamente um
discípulo de Jesus.
Mas, Deus ama estes dois seres.
Por cada um deles, explicitamente, morreu na cruz. Se não tivesse havido senão
Johann sobre a terra e tivesse sido bom conduzi-lo à vida eterna fazendo-se
homem, então, sem hesitar, o Verbo de Deus tê-lo-ia feito por ele. É uma
certeza. Tudo quanto conhecemos de Jesus no Evangelho, proclama esta verdade de
fé. Ora, Johann, por negligência ou ignorância, chegou à hora da morte sem amar
Deus. Então, como salvá-lo, uma vez que ninguém pode entrar na vida eterna sem
amar Deus? Como, sobretudo, Deus o salvará com
justiça, uma vez que a caridade de Santa Teresa é, pelo menos naquilo que
lhe permitiu nascer, fruto de acontecimentos fortuitos? Se Santa Teresa tivesse
nascido numa família dada ao pecado, não teria sido capaz do pior? Ela própria
o reconhece.
Para isto, Deus utiliza um meio
simples: na hora da morte, aparece sob a forma da sua humanidade, acompanhado
dos santos e dos anjos. O Evangelho fala disso quando Jesus profetiza: “Esta Boa nova do Reino será proclamada no
mundo inteiro à face das nações. E então virá o fim”[35].
A Igreja pô-lo no Credo e, todos os domingos, sem lhe compreenderem o sentido,
os cristãos recitam: “Virá na sua glória
para julgar os vivos e os mortos”. Pelo seu aparecimento na hora da morte
de cada um, esta profecia realiza-se nesse momento[36].
Temos de tentar olhar de uma
forma concreta estes acontecimentos que nós próprios teremos que viver:
Do buraco onde se escondia, Johann ouviu
a chegada de um pequeno grupo de soldados soviéticos. Não tinha nem mais
munições para defender o acesso ao seu esconderijo, nem coragem para lutar
mais. Viu distintamente uma granada rolar a seus pés. Olhou-a passivamente.
Ouviu o assobio da mecha a retardador. Durou um segundo. Diante dos olhos viu
surgir num segundo o rosto da mãe, jovem e sorridente, tal como era quando ele
era criança. Reviu cenas da sua vida, como se esse segundo durasse longos
minutos[37].
Depois, foi o buraco negro. Na morte, não experimentou nem revolta, nem ódio.
Não tinha mesmo mais a coragem para tais sentimentos, de tal modo tinha fome.
Não tinha pensado nem no além de que falava o pai, nem em Deus. Não tinha tido
tempo. Tinha simplesmente morrido, como uma máquina gasta pela guerra.
E eis que se descobria bem vivo. O corpo
jazia em terra, esmagado pela granada. Mas ele vivia.
“…por um modo só de Deus conhecido”. Perspectiva filosófica
(Aspecto filosófico. Julgue o
leitor)
Na constituição pastoral sobre a
Igreja[38], o Concílio Vaticano II,
escreve: “Uma vez que Cristo morreu por
todos, temos que afirmar que o Espírito Santo se oferece a todos, por um modo
só de Deus conhecido, a possibilidade de serem associados ao mistério pascal.”
Esta frase elíptica decidia de forma definitiva uma questão que desde há dois
mil anos agitava santos e apóstolos: “Que
acontecerá aos pobres pecadores? Os que morrem sem conhecer Cristo, salvam-se?”[39].
Podem, pois, ser salvos.
Parece-me possível, hoje, saber como, e de duas maneiras. Pela primeira vez,
santos como a irmã Faustina, receberam essa revelação. Mas, para saber o que se
passa nesses primeiros instantes da morte, não parece mais necessário servir-se
de maneira exclusiva, da revelação cristã. Na verdade, desde há cerca de trinta
anos, graças aos progressos da medicina de reanimação, a experiência humana
parece ter-lhe um cesso directo[40].
Quando o Dr. Moody, psicólogo
americano, publicou o seu livro: A
vida depois da vida[41], teve tal sucesso, que
foram feitas traduções um pouco por todo o mundo. Tornou-se um best-seller e
não é para admirar. A experiência e as ciências humanas parecem aqui juntar-se
à religião, para proclamar a existência de uma vida depois da morte. Trata-se
de um estudo feito de maneira muito séria, junto de americanos que
experimentaram, num dado momento, um estado de paragem cardíaca, ou mesmo de
morte clínica. O resultado do questionário é impressionante e de grande
interesse científico, filosófico e teológico.
A despeito das diferenças
presentes em cada caso, escreve o Dr. Moody, resultado tanto das circunstâncias
que conduziram à iminência de morte, como dos diferentes tipos humanos que as
experimentaram, a verdade é que existem semelhanças impressionantes entre os
testemunhos que relatam a própria experiência. Na verdade, essas semelhanças
são tais, que se torna possível extrair-lhes traços comuns, repetidos
continuamente na medida dos documentos que pôde reunir. Apoiando-se nessas
semelhanças, o doutor Moody tentou reconstituir brevemente um modelo teórico
ideal ou completo, da experiência em questão, introduzindo todos os elementos
comuns na ordem típica em que se vêem aparecer.
“Eis que um homem está a morrer e, ao
mesmo tempo que atinge o paroxismo do mal-estar físico, ouve o médico constatar
a sua morte. Começa então a aperceber-se de um barulho desagradável, como um
forte toque de campainha ou um zumbido e, ao mesmo tempo, sente-se transportado
com grande rapidez através de um obscuro e longo túnel. Depois disso,
encontra-se fora do corpo físico imediato. Apercebe-se do seu próprio corpo
físico a distância, como um espectador. Desse ponto privilegiado, observa as
tentativas de reanimação de que o seu corpo é objecto. Encontra-se num estado
de forte tensão emocional.
Ao fim de alguns instantes, controla-se
e acostuma-se pouco a pouco à estranheza da sua nova condição. Percebe que
continua a possuir um ‘corpo’, mas este corpo é de uma natureza muito
particular e goza de faculdades muito diferentes daquelas que faziam parte do
cadáver que acaba de abandonar. Rapidamente, outros acontecimentos sucedem,
outros seres vêm ao seu encontro, parecendo querer ajudá-lo. Entrevê os
espíritos de parentes e amigos falecidos antes dele. E, subitamente, uma
entidade espiritual de uma espécie desconhecida, um espírito de quente ternura,
todo vibrante de amor (um ser de luz), mostra-se-lhe. Este ser faz surgir nele
uma interrogação que não é pronunciada verbalmente e que o leva a fazer o
balanço da sua vida passada. A entidade ajuda-o nesta tarefa, dando-lhe uma
visão panorâmica, instantânea, de todos os acontecimentos que marcaram o seu
destino.
Vem em seguida o momento em que o
defunto parece encontrar diante dele uma espécie de barreira ou de fronteira,
simbolizando aparentemente o último limite entre a vida terrestre e a vida que
virá depois. Mas, constata então, que é preciso voltar para trás, que o momento
de morrer ainda não chegou para ele. Nesse instante resiste, porque está para
sempre subjugado pelo fluxo de acontecimentos de depois da vida, e não deseja
retornar. Está invadido por intensos sentimentos de alegria, de amor e de paz.
A despeito disto, reencontra-se unido ao seu corpo físico: renasce para a vida.
Na sequência, quando tenta explicar aos
que o rodeiam o que experimentou entretanto, esbarra com numerosos obstáculos.
Em primeiro lugar, não consegue encontrar palavras humanas capazes de descrever
de forma adequada este episódio supra-terrestre. Além disso, vê bem que aqueles
que o escutam não o levam a sério, de tal forma que renuncia a abrir-se com os
outros. No entanto, esta experiência marca-lhe profundamente a vida e altera concretamente todas as ideias que tinha até
aí a propósito da morte e das suas relações com a vida.”
Podemos resumir este quadro ideal
em cinco grandes etapas[42]:
1. Descorporização: a pessoa
encontra-se como que suspensa acima do seu corpo.
2. Túnel escuro.
3. Visão do ser
de luz.
4. Visão dos
parentes falecidos anteriormente.
5. Retorno e
consequências psicológicas.
A ordem das etapas pode variar,
uma vez que certas pessoas afirmam ter visto o ser de luz[43] antes da passagem no
túnel escuro. Por outro lado, certos testemunhos ficam-se pela primeira ou
segunda etapa, não tendo durado suficientemente, a morte clínica.
O interesse científico foi muito
intenso nos USA e tentaram verificar a veracidade dos relatos. Apenas a
descorporização pode ser objecto de um interrogatório rigoroso. Quanto às
outras fases, o testemunho dos doentes não pode ser confrontado com nenhum
método de medição.
Esta experiência de
descorporização apresenta um interesse único. Não podemos senão ficar
impressionados com o relato das vítimas, que parece concordar em todos os
pontos com a realidade. Ora, a vítima, não devemos esquecê-lo, está em estado
de morte clínica. Está estendida numa mesa e não pode, teoricamente, ver nada
do que a rodeia. Por vezes, obtemos um Electroencefalograma plano. No entanto,
somos obrigados a admitir que ela vê com
os seus olhos o que se passa e que o vê de um ponto situado fora do seu
próprio corpo.
Numa sala de reanimação, um
médico teve a ideia de aperfeiçoar as verificações, fixando na face superior
dos armários, pequenos autocolantes representando rãs, de tal maneira que só
pudessem ser vistos do tecto. Tiveram a surpresa de recolher, no testemunho
daqueles que pretendiam ter conhecido uma experiência de morte iminente, a
menção desses autocolantes.
Por causa do aperfeiçoamento dos
métodos de reanimação, esta experiência multiplica-se e coloca a filosofia
diante de um novo fenómeno paranormal. Somos obrigados a afirmar, a menos de
fazer mentir as múltiplas verificações efectuadas, que existe uma
descorporização. Este fenómeno permanece por explicar, mas podemos
descrever-lhe as condições.
As propriedades do corpo duplo
puderam ser descritas de uma forma bastante precisa. Trata-se, em primeiro
lugar, de um corpo material, mesmo se não é composto de matéria palpável.
Trata-se antes de matéria sob a forma de energia, de fluxo ondulatório. É uma
espécie de campo magnético, organizado sobre ele próprio, um corpo psíquico. A
sua matéria, actualmente, é totalmente desconhecida e não visualisável em
física. Estamos perante outra coisa. Alguns falam já “num estado psíquico da
matéria.”
Trata-se, apesar de tudo, de um
verdadeiro corpo humano, duplo do corpo físico, com uma vida psicológica e
espiritual. Possui três sentidos. O tacto e o gosto desapareceram. A imaginação
está totalmente presente, com a memória e o seu exercício cerebral. Memórias
desaparecidas podem voltar, intactas. As emoções passionais estão presentes,
mas são muito mais calmas. A alegria, a paz, o medo e a tristeza, exercem-se
sem excesso, como se a ausência do corpo físico as tornasse mais controláveis.
A vida espiritual, quanto a ela,
está intensamente presente. A inteligência começa a compreender o que lhe
acontece, a vontade orienta-se par esta ou aquela escolha. Mas o mais
impressionante é, sem dúvida, o aparecimento de propriedades parapsicológicas
novas.
Este corpo é fluido. Pode passar
através das paredes mais espessas, obedecendo aos desejos da vontade. Uma
mulher conta que, tendo-se apercebido que morria, pensou no marido e no filho,
presentes na sala de espera. Encontrou-se de imediato junto deles, tendo
atravessado várias salas do hospital através das paredes. Descreveu, depois da
reanimação, detalhes sobre a sala de espera que não deixam qualquer dúvida
sobre a sua boa fé.
Este corpo é ágil. Pode
deslocar-se à vontade com uma velocidade incrível. Um homem, ao ver-se largar o
corpo físico, pensou intensamente na esposa que tinha deixado no estrangeiro.
Encontrou-se ao pé dela, tendo percorrido milhares de quilómetros nalguns
instantes.
Este corpo é leve. Não apresenta
nenhum dos inconvenientes do corpo físico, como fadiga, peso, inércia. Estando
totalmente submetido à vontade, pode chamar-se, neste sentido, “corpo
espiritual”.
Este corpo é perfeito. Não
apresenta nenhuma das deficiências do corpo físico. Uma jovem, cega de
nascença, conseguiu descrever, com grandes detalhes, a cor do que tinha visto
na sala, no momento da experiência. Um antigo combatente, amputado das duas
pernas, teve a surpresa de se ver tal como era, antes do acidente.
Finalmente, este corpo é dotado
de percepções extrasensoriais novas e que lhe surgem como naturais. As
testemunhas pretendem não apenas ouvir as palavras proferidas em seu redor, mas
ler directamente os sentimentos e os pensamentos de cada um. É uma espécie de
telepatia de sentido único, uma vez que são, quanto a eles, incapazes de atrair
a atenção de quem quer que seja. Cada pessoa, cada objecto, aparece-lhes
nimbado de uma auréola de luz de cores vivas, o que torna a sua percepção do
universo, quase feérica. Segundo os pensamentos e sentimentos daqueles que
estão na sala, estas cores tomam tons diferentes.
Perante tais propriedades, que
parecem irreais, seríamos tentados a rejeitar tudo isto para o domínio da
imaginação. A hipótese de um efeito psíquico subjectivo, devido à morte
clínica, foi proposta. Não resiste a uma análise séria. Os relatos ligados à
descorporização têm uma objectividade verificável. Uma alucinação devida às
endorfinas poderia explicar as aparições de imagens subjectivas (elefantes
cor-de-rosa, imagens do passado, etc.). Mas como explicar a visão física,
rigorosa e verificável do real? O
problema não é, pois, afirmar que não é possível. O problema é que é[44].
Certos filósofos americanos
tentaram debruçar-se sobre a questão. Pareceu-lhes, primeiro, que o fenómeno da
descorporização não é novo. A psicologia descreve-o como propriedade, distinta
da alucinação, de certos psicotropos poderosos. Por outro lado, longos tratados
pluriseculares, escritos nas tradições filosóficas egípcias (o ka e o ba), chinesas, hindus e tibetanas (corpo astral), animistas
(espíritos), falam dele. Aliás, é aí que encontramos as mais profundas
explicações filosóficas do fenómeno. Segundo estas tradições, podemos
identificar no ser humano, três graus de vida aos quais correspondem três
corpos perfeitamente adaptada uns aos outros, para formarem uma só pessoa: o
corpo físico, o corpo psíquico e o espírito[45].
No hinduísmo, o corpo físico é
sede das faculdades vegetativas como a nutrição, a reprodução, o crescimento. É
também sede de um outro corpo, chamado corpo astral. É o corpo físico que é
origem do desenvolvimento do corpo astral. Mas, segundo esta tradição, a
sobrevivência deste último, é independente da morte do primeiro. Uma simples
comparação permite compreender este ponto de vista. O corpo astral pode ser
comparado e distinguido, na sua relação com o corpo físico, a um campo
magnético criado por um electroíman. Se cortarmos a electricidade, o campo
magnético desaparece, por sua vez. Pelo contrário, se matarmos o corpo físico,
o seu duplo subsiste. Depois da morte do corpo físico, o corpo astral separa-se
dele e subsiste alimentando-se da sua própria energia. Esta propriedade explica
a experiência da descorporização, tanto no homem como no animal. O corpo astral
é, com o corpo físico, sede das faculdades psíquicas como as sensações, as
paixões, a imaginação e a memória.
O corpo mental não é senão aquilo
a que chamamos espírito, sede da inteligência e da vontade. É próprio do homem.
Os animais são destituídos destas faculdades[46]. Os filósofos orientais
não lhe dão o nome de “corpo” senão por metáfora, porque, segundo eles, ele
ultrapassa esta noção por ser inteiramente espiritual. O corpo mental é imortal
e indestrutível[47].
Esta explicação oriental
tradicional, longe de se opor à filosofia ocidental, parece pelo contrário,
dar-lhe corpo. Fá-lo, no entanto, permitindo uma importante correcção[48]: o Ocidente cristão
acreditava, desde há 2000 anos, na sequência de Platão e Aristóteles, de St.
Agostinho e de S. Tomás de Aquino, que um morto era destituído de toda a
sensibilidade!
Aristóteles, pai da nossa
filosofia, distingue como os orientais, três graus de vida. Mas a sua análise
está menos ligada aos três “corpos” da vida. Segundo ele, certas operações
vitais são comuns com as plantas. São as operações da vida vegetativa; outras, são comuns com os animais. São as
operações da vida sensível. Outras,
finalmente, são específicas dos homens. É a
vida espiritual. Desenvolve-se em duas faculdades: a inteligência e a
vontade. As duas faculdades do espírito humano têm um objecto imaterial[49], portanto, é porque elas
próprias ultrapassam a matéria. Não podem ter um órgão material. Aristóteles
prova desta forma, a sua sobrevivência após a morte. Inversamente, toda a
faculdade ligada a um órgão parecia-lhe ter de desaparecer com a morte do corpo
material. Porque o olho é feito de matéria, pode captar a luz material. Em
consequência, o sentido da vista desaparece necessariamente para ele, com a
destruição do olho.
S. Tomás de Aquino seguiu
Aristóteles nesta lógica. Segundo ele, depois da morte, os homens tronavam-se
como anjos, quer dizer, puros espíritos, destituídos de toda a sensibilidade. A
recordação dos rostos, dos sons e das paisagens, apagava-se com o cérebro. Não
subsistia da pessoa senão as profundezas espirituais dos seus conhecimentos e
das suas escolhas. Visivelmente, Aristóteles e S. Tomás de Aquino,
enganaram-se, sem nenhuma culpa da sua parte. O psiquismo não desaparece de forma
alguma, com a morte. A experiência contradiz a razão filosófica. Aparentemente,
Deus quer que o homem, que criou por natureza para conhecer e amar com a
sensibilidade, nunca a perca. Não o condenou, para o mudar, senão a perder a
carne, e é já uma assustadora provação. Desta forma, aqueles que se aproximaram
da morte, testemunham ter visto com os olhos
sensíveis, da mesma forma como vêem as enfermeiras agitarem-se na sala, um
Ser de luz e os seus parentes já falecidos. Não se trata de uma simples visão
interior, da intuição intelectual de uma presença. Há cores, formas. Esta
beleza sensível, que lhes revela uma beleza espiritual, parece-lhes de tal
forma poderosa que não conseguem descrevê-la. Parece estarmos, ao mesmo tempo
que permanecemos no mundo sensível, numa dimensão espiritual[50].
Em bom rigor, a verdade das fases
3 e 4 da experiência de morte iminente (visão do Ser de luz e de parentes
falecidos) não é demonstrável no plano filosófico. Com efeito, se analisarmos
com rigor os testemunhos daqueles que rondaram a morte, estas experiências são
muitas vezes adaptadas à sua sensibilidade. Alguns autores, puderam então
afirmar que eles sonhavam. Como demonstrar
o inverso? É difícil. Se a filosofia e a psicologia não têm provas, têm pelo
contrário um sinal da objectividade
destes testemunhos. O Dr. Moody, sem se pronunciar definitivamente, afirma o
seu sentimento de estar em presença de um fenómeno real. Segundo ele, as
doenças psíquicas de tipo alucinatório ou histérico, se produzem a audição de
vozes e a visão de fantasmas imaginários, têm depois um efeito destruidor da
personalidade. As pessoas afundam-se nas suas neuroses (angústias, obsessão,
desespero) e por vezes, afundam-se definitivamente nas psicoses (paranóia,
esquizofrenia).
Bem pelo contrário, a N.D.E. (NEAR DEATH EXPERIENCE), dá como que
um sopro poderoso de renovamento de vida. Para muitos deles, o valor primeiro
torna-se o amor, segundo duas formas significativas: o amor do Ser de luz, de
que sabem que um dia irão ao encontro (alguns chamam-lhe Deus, outros Jesus ou
Buda, ou Maomé, segundo a sua cultura), e o amor dos irmãos. Tendo em conta
estes dois amores, esforçam-se por progredir, por eliminar os defeitos, por
desenvolver a inteligência.
Segundo o Dr. Moody, tais efeitos
não podem provir de um estado de doença alucinatória, mas de uma verdadeira
experiência mística. Por meu lado, estou bastante de acordo com ele, ao mesmo
tempo que mantenho que este raciocínio não prova, mas sugere. Surge-me como um
simples sinal da verdade do fenómeno, porque “de uma árvore má não saem bons frutos”.
A Igreja, pela voz do Magistério,
nunca se pronunciou a propósito da experiência de morte iminente. Em geral, a
Igreja católica investiga três critérios antes de se pronunciar sobre a verdade
de um fenómeno místico:
1. Uma visão
pode ser considerada como válida quando, entre outras coisas, os efeitos que
produz sobre o comportamento humano são profundamente positivos: por exemplo,
se conduz à aproximação de Deus (humildade, sentido da importância do amor) ou
ainda a aprofundar o conhecimento da religião.
2. É
indispensável que uma visão seja coerente com a mensagem da Bíblia, segundo a
interpretação autêntica do Magistério romano.
3. Estes dois
critérios não bastam para provar aos olhos da Igreja que se tratou mesmo de uma
visão. Qualquer falsário poderia macaquear uma aparente conversão e uma grande
ortodoxia. A Igreja exige, para além disto, antes de reconhecer uma aparição,
alguns milagres cuja origem divina seja manifesta[51]. Portanto, não se
pronuncia sobre a N.D.E.
Os dois primeiros critérios são
perfeitamente verificáveis[52]. Mas o terceiro falta. A
Igreja não se pronuncia, pois, sobre a N. D. E.. Deixa aos teólogos o cuidado
de aprofundar, de investigar se os critérios 1 e 2 são válidos para a N. D. E.
Seja-me permitido dar aqui a
minha opinião pessoal. Estou intimamente persuadido que a N.D.E., tal como o
Dr. Moody a fez descobrir ao mundo, é uma benesse para a humanidade. Nestes
tempos em que a fé é rejeitada como uma atitude indigna de um adulto dotado de espírito
crítico, Deus, mais uma vez, parece-me ter aceite colocar-se ao nosso nível.
Para se nos revelar, fala pela primeira vez uma linguagem, no entanto, antiga,
da sua parte. Adapta-se à mentalidade do seu público. O mundo actual tem
necessidade de racionalidade e desconfia da fé afectiva. Portanto, Deus faz-se
filósofo. Outrora, aos astrólogos caldeus, que não compreendiam senão a
astrologia, revelou o seu nascimento fazendo aparecer uma estrela. Fez-se
astrólogo. Aos pastores, prontos a acreditar no mais pequeno milagre, enviou um
anjo luminoso.
Tal condescendência da parte de
Deus é habitual. Desejo que seja para muitos o caminho que conduz à esperança.
Foi o caso de S. Paulo, apóstolo dos pagãos, que viveu ele próprio uma
experiência próxima desta: “Conheço
alguém, confessa ele, a propósito de si mesmo, que há 14 anos - era com o
corpo? Não sei; era fora do corpo? Não sei; Deus o sabe -. E este homem, foi
arrebatado até ao terceiro céu. E este homem - era com o corpo? Não sei; Deus o
sabe -. Sei que foi arrebatado até ao paraíso e que escutou palavras inefáveis
que não é permitido a um homem dizer”.[53]
Onde se encontra fisicamente o outro mundo?
(Investigação hipotética)
Um teólogo como St. Agostinho não
deveria, logicamente, colocar-se a questão da localização física do Além. Sendo
um morto, um espírito puro sem qualquer resto de corpo, uma espécie de anjo
pela vontade e pelo pensamento, não poderia ser localizado. Com a descoberta da
Experiência de Morte Iminente, tudo muda. A sobrevivência de um corpo psíquico
e das suas faculdades, implica a existência de um mundo paralelo composto duma
forma de matéria. Parece estar muito próximo. A porta misteriosa que lhe
constitui a entrada e que apenas a morte abre, abre-se onde quer que se
encontre alguém a morrer. Uma cortina se rasga, um corredor é transposto, e
revela-se uma outra dimensão bem real, contendo terras, jardins e cidades. Nada
impede que o espaço local ocupado pelo mundo desse lugar, seja o mesmo que o
nosso, num plano de realidade diferente e inacessível por agora. Alguns
astrónomos pensam que o nosso universo contém 80% de matéria não detectável,
que não imite nenhuma radiação possível de constatar. Será esta a assinatura
desse mundo que ignoramos?
Retorno à teologia católica: O encontro com Cristo glorioso
A história do SS Johann Saint
prosseguia. Já se desvanecia a visão da cidade em ruínas onde tinha morrido,
esses despojos sangrentos de Stalinegrado. Sentia-se espantosamente bem. As
suas sensações de fome e de fadiga crónica tinham desaparecido. Experimentava
uma grande paz interior, como se Stalinegrado estivesse a mil léguas. Sentia-se
fisicamente em plena posse das suas capacidades. Era indescritível.
Na hora da morte, a fraqueza que inclinava ao pecado é retirada
(Coisa certa)
A hora da morte é a segunda etapa
de toda a vida humana. A vida terrestre tinha como objectivo estabelecer o
homem na experiência da sua pequenez. Aqui, outra coisa se perfila: uma escolha
livre e decisiva vai ter que ser feita. Mas o moribundo ainda o ignora. Certas
propriedades necessárias à escolha começam a ser-lhe dadas. A primeira condição
requerida consiste no perfeito domínio de si e na ausência de qualquer
violência ou fraqueza.
Desde o pecado original, todos
somos condicionados pela fraqueza. A liberdade existe mas está constrangida,
desviada por uma outra força. S. Paulo descrevia-a do seguinte modo[54]: “foi-me dado um espinho na carne, um anjo de Satanás encarregado de me
esbofetear a fim de que não me orgulhasse! Por este motivo, por três vezes pedi
ao Senhor que o afastasse de mim. Mas ele disse-me: ‘Basta-te a minha graça
porque o meu poder se exerce na fraqueza.’”
Desde o início da humanidade,
muitos homens se desviaram de Deus, morreram para a vida da graça, sem que
houvesse uma total responsabilidade da sua parte, mas porque se deixavam levar
pelas pulsões do corpo. A nossa sensibilidade é feita assim, de tal forma que
não deseja, pelo seu lado, senão o que lhe pode dar o bem-estar. A felicidade,
para o animal que dorme em nós, consiste no equilíbrio psicológico. Para
muitos, a forma mais evidente de ser feliz parece residir na procura conjunta
das honras (fonte de valorização), dos prazeres (porque aquele que sabe
usufruir do presente não mais tem necessidade de ninguém) e do dinheiro (que
permite providenciar com toda a segurança o dia de amanhã). S. João afirma na
sua primeira carta[55] que tudo quanto existe no
mundo se resume à concupiscência da carne
(os prazeres), à concupiscência dos olhos
(as honras) e ao orgulho das riquezas
(que dá o dinheiro). Estes instintos, estão de tal modo presentes na nossa
carne que, mesmo se conhecemos Jesus, e para além do nosso amor por ele, não
paramos de recair na procura excessiva desses bens. Somos por vezes capazes de
pôr de lado o que sabemos dele, de esconder por alguns instantes a sua presença
numa gaveta da nossa consciência, por um qualquer prazer egoísta ou por uma
qualquer desonestidade demasiado tentadora. Aquele que, por exemplo, engana a
mulher, não pode ao mesmo tempo pensar nela ou no seu Deus, em total tranquilidade.
Comete um acto capaz de matar estes dois amores[56]. É muitas vezes mais
forte que ele. Muitos pecados graves (mortais para o amor) são, assim,
cometidos por fraqueza.
Um célebre arcebispo de Paris,
sabendo-se condenado a curto prazo, não parava de percorrer os bairros pobres
da cidade, num carro com os vidros fechados. Dizia: «penso em todas estas
pessoas a quem omiti o anúncio de Jesus Cristo.” Os próprios santos conheceram
esta agonia no final das suas vidas. Tomavam consciência muitas vezes, de uma
forma terrível, de todo o tempo perdido devido às suas fraquezas no decurso da
vida, quanto havia tanto para amar. S. Francisco de Sales dizia: “preferi anunciar Jesus às mulheres jovens e
belas, demasiadas vezes pus de parte as outras.”
Enquanto estamos na terra, Deus
mantém-nos neste estado de fraqueza. O orgulho que leva ao inferno, é bastante
mais perigoso. Estes espinhos deixados na nossa carne, chamam-nos
incessantemente à realidade da nossa pequenez. Mas seria aberrante que, no
momento da morte, um homem se afastasse de Deus para a eternidade, levado pelo
desejo de uma carne que tem dificuldade em controlar. É a razão pela qual,
durante esse tempo em que a alma se separa progressivamente do corpo, surge um
momento em que a pessoa se sente bem. No momento da morte, Deus torna ligeiros
para a alma, o corpo e a sensibilidade. As paixões pacificam-se. Uma grande paz
psicológica emerge. A pessoa está ainda ligada ao seu corpo carnal ou a uma
parte do seu corpo carnal, mas o peso da sua vida sensível não mais pode
arrastar a vontade numa direcção que ela não deseja. Nesse instante,
experimenta um estado semelhante àquele que conheciam de forma permanente, Adão
e Eva no jardim do Éden; o núcleo que, no íntimo da sua carne, o arrastava
inexoravelmente para o pecado, extingue-se, e toda a paixão se torna
controlável. A angústia abre as tenazes: as neuroses, que demasiadas vezes
aprisionavam a vida terrestre, desvanecem-se. É um inacreditável estado de paz,
cuja impressão é tanto mais notória, quanto muitas vezes sucede ao sofrimento
que acompanha o processo da agonia.. Sem saber, as pessoas vêem realizar-se na
sua sensibilidade esta palavra da Bíblia: “Deus
enxugou as lágrimas de todos os rostos, retirou o opróbrio do seu povo sobre
toda a terra, porque Deus falou.[57]”
O sofrimento da vida terrestre, a
angústia da morte, tinham como objectivo, recordemos, tornar humildes e
desejosos da salvação, os orgulhosos, e permitir àqueles que já amam, amarem
até a inacreditáveis absolutos. Por este caminho de cruz terrestre, Deus
prepara o coração, purificando-o no fogo como o ouro. A paz psicológica
reencontrada no momento da morte, é a etapa seguinte. Dá à pessoa, que se
tornou consciente da sua pequenez graças ao sofrimento[58], a capacidade de fazer
uma escolha verdadeiramente livre, mais forte que as pulsões instintivas.
Então, para que a escolha se possa efectivar, não lhe falta senão uma coisa: o
conhecimento pleno do que há que escolher.
Na hora da morte, as condições de uma escolha livre são oferecidas[59]
(Coisa certa)
Diante de Johann estava um Ser. Não há
palavras para dar conta do que via. Tratava-se de uma pessoa, com uma forma de
homem, “como um filho de homem”[60],
diz S. João. Estava de pé e olhava-o. Emanava da sua presença, luz e bondade.
Havia uma luz física que era ao mesmo tempo “da verdade”. A bondade espiritual,
o acolhimento, eram ao mesmo tempo “de calor corporal”. Uma era a outra, e não
era possível distinguir o que era espiritual do corporal. Johann estava
petrificado. Sentia-se amado no mais profundo do seu ser. Sentia-se
compreendido e perdoado.
Via desfilar, no olhar daquele homem,
cada acontecimento da sua vida. Tornava a ver-se jovem SS, fogoso e cheio de
arrogância antes do sofrimento o ter quebrado. Dava-se conta da enormidade do
seu estupidez e do seu orgulho dessa época. No entanto, nada nos olhos do Homem
o condenava. Tudo não era, na verdade do seu olhar sobre o seu pecado, senão
misericórdia e perdão oferecido.
Quem é este Homem de luz? Este
exemplo é significativo do que cada um de nós irá conhecer na hora da sua
morte. Ao contrário de Santa Teresa do Menino Jesus, este jovem soldado alemão
chegou à entrada do outro mundo sem conhecer Deus. Sem dúvida que tinha ouvido
falar dele ao seu pai pastor, mas nunca tinha estabelecido uma verdadeira relação
de amor com ele. Como Jesus[61], podemos dizer “que não tinha nascido do alto”. A sua
alma estava como morta. Estava no mesmo estado que milhões de outros seres
humanos que se apresentam em estado de morte espiritual, seja porque não
receberam o anúncio dessa vida, seja porque a recusaram ou a deixaram morrer.
Inversamente, Santa Teresa do
Menino Jesus amava Deus e soube conservar, apesar dos sofrimentos, uma relação
de confiança com ele. O seu amor foi tão grande que o manteve sem falha durante
a agonia. Santa Teresa chegou “viva” à hora da morte, porque a graça e a
caridade vivificavam-lhe a alma. No entanto, e nisso podemos aproximar-la de
Johann, Santa Teresa não podia senão suspeitar a intensidade do amor de Deus
por ela. Era-lhe impossível compreender-lhe todo o alcance, porque este amor é
infinito. Em contrapartida, não tinha nenhuma ideia da miséria da sua alma,
sim, mesmo ela, porque “diante da pureza
infinita de Deus, o próprio justo é impuro[62].”
Johann chegava diante de Deus com uma montanha de pecados; Santa Teresa com uma
poeira. A montanha é maior que o grão de pó. Mas, comparativamente à infinita
pureza, um pecado, qualquer que ele seja, deixa-nos confundidos.
Todo o cristão fervoroso é
comparável a Santa Teresa. Sabe que Deus é amor, nunca tendo deixado de ter a
prova através de um simples olhar para o crucifixo. Ama-o e não deixou nunca de
estar com ele na oração, com a sua presença silenciosa, mas não faz senão
suspeitar o impensável. A sua confiança é admirável, uma vez que é capaz de
acreditar sem ter visto. É comparável a uma noiva que amasse o seu futuro
esposo, quando não possuísse dele senão uma fotografia e algumas cartas. No
momento da morte, Johann como Teresa, tiveram de fazer uma escolha que
comprometeu a duração de toda a vida, a eternidade. Tiveram de dizer sim ou não
a um casamento de amor que lhes foi proposto. Johann ficou totalmente
surpreendido; Teresa já tinha dito sim desde sempre.
Este compromisso na hora da morte
é tão importante, que necessita de ser tomado em condições muito rigorosas.
Como é que uma esposa pode verdadeiramente escolher aquele com quem vai
partilhar toda a vida, se for empurrada pela violência dos pais ou, pior ainda,
se não conhece nem um bocadinho o coração do futuro marido? Com maior razão,
quando se trata da eternidade, a qualidade da escolha tem de ser perfeita. Aos
olhos de Deus e dos santos Anjos, aos olhos dos próprios demónios, “a hora da
morte” é o momento mais importante da vida humana. A entrada na vida eterna com
Deus, ou no inferno eterno, joga-se aí. Eis porque Deus dispõe o homem nesse
momento, de tal forma que a sua escolha seja verdadeiramente lúcida, voluntária
e livre.
Na hora da morte, o aparecimento de Cristo glorioso revela toda a verdade[63]
(Coisa, em minha opinião, mais
que provável. Julgue o leitor)
O Evangelho é tão simples que nos
é impossível imaginar todo o seu alcance nesta terra. Ao fazer-se homem e ao
morrer na cruz, o Verbo de Deus bradou: “tenho
sede”, de tal modo o desejo de nos fazer compreender isso, era ardente. Mas
não encontrou senão em Maria a capacidade de captar plenamente o amor. Em todos
os outros cristãos e nos próprios santos, existem obscuridades invencíveis
quanto a este mistério. O condicionamento da cultura, da educação, dos nossos a priori, da nossa psicologia, nunca
desaparece totalmente, e torna complicada a nossa percepção do amor de Deus.
É a razão pela qual, todo o homem e toda a mulher, qualquer
que seja a sua religião, qualquer que seja o estado da sua alma, ouve no
momento da morte, enquanto ainda está ligado ao corpo, a pregação da Boa Nova.
Não se faz com palavras; as palavras são enganadoras e incapazes de significar
um tal peso de amor. Não acontece através do encontro com um apóstolo, como na
terra. Os apóstolos não são senão homens e, mesmo transfigurados pelo amor, não
dão senão uma imagem longínqua de Deus. Não se faz através do encontro com um
anjo de Deus. Estas criaturas espirituais poderiam ser suficientes, uma vez que
vêem Deus. Foram, aliás, suficientes para os nossos Pais, antes da Redenção
realizada por Cristo[64]. Mas não são suficientes,
se tivermos em conta o amor de Deus.
Ele próprio quer pregar sem
intermediário. Foi para isso que se fez homem em Jesus. Tal não se faz através
do encontro com Jesus, como ele era na terra, na sua condição dolorosa e
desprezível de crucificado. Tantas pessoas o viram assim e não compreenderam
nada. Deus não pode limitar-se a aparecer aos homens sob esta forma, porque
deseja tudo tentar para os salvar. Então, a fim de que todos compreendam de uma
vez por todas, o Evangelho, Deus decidiu vir pregá-lo ele mesmo, no momento da
morte, sob uma forma nova. Jesus, o Verbo de Deus feito homem aparece, não na
sua condição de escravo, mas com o seu corpo ressuscitado e revestido de
glória. Todos verão e serão obrigados a
bradar, impressionados pela clareza da sua aparição: “Verdadeiramente, Deus
ama-nos!”
É o dia do Senhor, aquele que o Evangelho anuncia
Toda a Escritura não pára de
recordar este mistério: “Esta geração não
passará antes que tudo isto se cumpra[65]”.
Igualmente, o Apocalipse[66] anuncia isto para “breve”. Constantemente, no decurso da
história, santos apóstolos enviados por Deus anunciaram a vinda gloriosa de
Jesus como iminente. Sustentaram as suas afirmações com milagres. S. Vicente
Ferrier, por exemplo, chegou a ressuscitar uma mulher para confirmar, perante
os seus ouvintes estupefactos, a verdade da sua profecia. Ora, ele morreu como
os primeiros discípulos de Jesus e houve quem dissesse: “Onde está a promessa da sua vinda? Desde que os Pais morreram, tudo
permanece como no início da criação[67]”. No entanto, as palavras
de Jesus e dos apóstolos cumpriram-se com força e poder. Na hora marcada, no
momento da morte de cada um, depois de terminados os anos dados por Deus para
nos convertermos, o dia do Senhor chega. Nesse dia, pela morte, o nosso
horizonte habitual dissipa-se com fragor, o corpo dissolve-se com
todas as obras materiais da nossa vida terrestre. Então, manifesta-se o Senhor,
com poder e grande glória[68]. Deste modo, em alguns
anos, cem anos no máximo depois do nascimento, toda uma geração vê a vinda de
Cristo acontecer. O grande erro de muitos cristãos é pensar que os textos da
Escritura não falam senão do fim definitivo do mundo, aquele que viverá a
última geração da humanidade, quando Jesus vier para todos ao mesmo tempo.
Interrogam-se apaixonadamente sobre o fim do mundo, quando o fim do seu próprio
mundo está iminente.
(Coisa, na minha opinião, mais
que provável. Julgue o leitor)
Como descrever Cristo tal como o
veremos quando aparecer? As palavras são
demasiado pobres para exprimir esta experiência. S. João, que o viu e nos
relatou a descrição, conta que à vista dele caiu “como morto[70]”.
Nada de espantoso nisto. Ao ver Jesus na glória, compreendeu simplesmente, num
só olhar, o próprio Evangelho. É um amor inimaginável cuja revelação brutal
abala o espírito.
Mas, deixemos João, ele próprio,
falar: “Voltei-me para olhar a voz que me
falava e, ao voltar-me, vi no meio da luz, como um Filho de Homem[71]”.
Como Johann, de que descrevíamos a experiência, João viu aparecer diante dele
um ser bem visível. Os seus olhos não o enganaram. Tinha uma forma humana. Não
viram Jesus directamente na sua divindade, mas através da sua humanidade[72]. A razão é simples. Esta
aparição tem como objectivo permitir ao homem escolher Deus, não a de lhe dar,
de imediato, a Visão Beatífica. Johann, na hora da morte, tinha de receber a
possibilidade de rejeitar livremente a felicidade proposta pelo Criador, porque
Deus não quer dar-se senão àquele que o deseja. Não quer desposar à força a
alma que, por razões pessoais, recusa colocar-se na sua dependência. Mas, se
Deus se mostrasse na sua Essência desde o primeiro instante da morte, o homem
seria sorvido nele. Ninguém mais
teria nenhuma possibilidade de se desviar. Deus é a Felicidade. O homem - é
mais forte que ele, está inscrito na sua natureza -, não pode fazer nada senão
voltar-se para a felicidade. O insecto é fascinado pela luz. Esta atracção é
tão forte que perde mesmo o instinto de sobrevivência quando a vê. Queima as
asas e o corpo, ao querer unir-se à chama da vela. Igualmente, o homem e o
anjo, uma vez na Visão de Deus, não mais podem desviar-se dele. Possuem a
felicidade e ninguém se afasta da felicidade! Para permitir ao homem que o
escolha livremente, Deus não revela senão uma imagem dele. Trata-se de uma
imagem completamente adaptada à maneira como o homem compreende as coisas.
Jesus Cristo tem um verdadeiro rosto, um sorriso, mãos acolhedoras, um olhar.
Poderá haver para nós, uma linguagem mais adaptada? Mas, desta vez, ao
contrário da sua primeira vinda à terra, o seu rosto, o seu sorriso, as suas
mãos, os seus olhos são gloriosos. Aquele que o vê não distingue apenas a
forma. Aquele que o toca, não sente apenas a carne. Vê e toca a alma de Cristo.
Destingue, como numa intuição límpida, o que é o coração dessa pessoa de luz
que o olha. A carne do corpo glorioso é feita de tal forma que deixa
transparecer a totalidade dos pensamentos do coração. Aquele que vê Jesus, vê,
pois, num instante, todo o Evangelho.
S. João não sabe que palavras
empregar para nos descrever o que apreendeu nesse instante[73]. Fala então com imagens[74]: “está vestido com uma longa veste, cingido com um cinto de ouro à
cintura.” A sua longa veste é como que a plenitude da perfeição que emana
de toda a pessoa de Jesus. Todas estas riquezas estão como que agarradas por um
cinto de ouro que simboliza a maior de todas, a caridade. É justamente este
amor de caridade, esta bondade, que em primeiro lugar impressiona aquele que vê
Jesus. A exemplo de Joahann, sentir-nos-emos amados e compreendidos totalmente.
“A cabeça, com os seus cabelos brancos, é como a lã branca, como a
neve.” É difícil descrever a maturidade que irradia de Jesus. Tem a
sabedoria de um ancião. Quanto à sua incomparável doçura, pode ser comparada à
do cordeiro; a sua pureza brilha.
“Os seus olhos são como uma chama ardente.” Eis uma
imagem que ilustra essa força da aparição de Cristo. Conta-se que S.
Maximiliano Kolbe, quando morria numa célula, no campo de concentração de
Auschwitz, olhava os guardas com uma tal bondade, que estes não conseguiam
aguentar a sua presença. O nosso encontro cm Jesus glorioso será ainda mais
insustentável. O santo Cura de Ars estava amedrontado com a ideia deste
encontro: “Como poderei aparecer diante dele com a minha impureza?”
S. João continua a sua descrição
desta forma: “Os seus pés são como o
bronze precioso, purificado no crisol.” Quer sem dúvida significar com
isto, que descobriremos, ao ver Jesus, que verdadeiramente, ele não cometeu
nenhum pecado. Os seus pés que tocaram a terra e foram pregados na cruz,
permaneceram puros. Não se encontrou mentira na sua boca. Ele que, insultado, não respondia com insultos, sofrendo, não
ameaçava mas entregava-se àquele que julga com justiça.
Esta pureza total de Jesus face
ao pecado, será como um espelho límpido onde veremos o verdadeiro estado da
nossa alma. Todos nós somos pecadores. Apenas a Virgem Maria nunca teve a
mínima parcela de egoísmo. Compreenderemos, ao ver Jesus, o que é o pecado, o
que é o nosso pecado. É o que quer significar S. João, ao dizer que “a sua língua é uma espada de dois gumes”.
Ao ver Jesus, ver-nos-emos a nós mesmos até ao fundo da consciência. Nenhum dos
nossos actos, nenhuma das nossas intenções, ficarão escondidos. A verdade, como
uma espada cortante, será colocada num instante sobre nós próprios.
Para resumir toda a intensidade
desta visão, S. João exclama: “É como o
sol que brilha com todo o seu esplendor.” Um único olhar para Jesus e
compreenderemos todo o conteúdo dos sermões dos padres, tudo quanto está dito
no Evangelho, o valor da nossa própria vida. Compreenderemos o amor de Deus, a
proposta que nos faz da Visão beatífica, as condições requeridas para lá
entrar: conversão, arrependimento, humildade, amor absoluto.
Alguns discípulos de Jesus
perguntavam-se se, na altura da vinda de Cristo, não correriam o risco de o
confundir com outro. Depois de ter descrito a forma como se mostrará, parece
evidente que não nos poderemos de modo algum enganar: “como o relâmpago jorrando de um ponto do céu resplandece até ao outro,
assim será com o Filho do homem, no seu Dia[75].”
A Bíblia afirma-o com força: “toda a carne se prostrará diante da tua
face e diante da face do Cordeiro”. A alma, mergulhada na ternura de Jesus,
descobre em plena luz a vaidade de tudo quanto não é o amor aos olhos de Deus.
Toda a sua vida se encontra como que iluminada e o mínimo pecado, a mínima
parcela de egoísmo que lhe volta à memória, toma a seus olhos o carácter de
todo o horror que deveria ter tido desde sempre.
(Coisa, em minha opinião, mais
que provável. Julgue o leitor)
Nesta etapa do juízo final, as
almas, quaisquer que sejam, têm fé[76]. Sabem que Deus existe e
que é amor. O ateísmo não existe no além.
A primeira revelação feita por
Jesus àquele que encontra, resume-se numa palavra “Eis o coração que tanto te amou”[77]. Não é feita com palavras
mas com fogo, quer dizer, com um amor e uma ternura quase palpáveis. É como uma visão de jaspe verde e de
coralina, comenta o Apocalipse[78], manifestando assim a pureza
comovedora do olhar de Jesus. Tudo quanto a Igreja chama o juízo final, está
contido nesta palavra única; o resto não é senão um efeito, uma consequência
lógica.
Jesus pode, então, na sua extrema
delicadeza, dirigir-lhes uma segunda palavra, a mesma que foi dirigida aos
anjos no dia da criação, a mesma que Adão e Eva receberam, a mesma que está no
coração do Evangelho: “Ver-me-ás face a
face, se voltares a ser como uma criança”. Deus, no seu amor pela alma,
sabe pegar-lhe com toda a delicadeza necessária. Sabe a rude prova que
representa, para cada ser espiritual, o facto de voltar a ser como uma criança.
A humildade é dura para aquele que sempre viveu de orgulho. O amor de Deus é
uma coisa nova para aquele que não fez senão amar-se a si mesmo. Apela então
para tudo quanto possa ajudar a alma a entrar na felicidade eterna: os seus
parentes já falecidos, estão presentes. Todas estas revelações, todas estas
descobertas, não são para alma senão premissas da escolha definitiva que a
fixará num destes dois caminhos: o amor de si mesma até ao ódio de Deus, ou,
pelo contrário, o amor de Deus até ao ódio de si mesma[79].
Ele vem, acompanhado dos santos e dos anjos
(Coisa, na minha opinião, mais
que provável. Julgue o leitor)
“E então veremos o Filho do homem vir nas nuvens com grande poder
e glória[80].
Johann tornou a ver-se, no momento de
cometer uma injustiça terrível, quando abateu friamente um soldado russo que se
rendia. O soldado ali estava, ao lado do ser de luz, estendia-lhe a mão
sorrindo. Também ele não era senão perdão. Parecia repleto da mesma luz que o
Homem. Johann chorava[81].
Tanta ternura, tanto acolhimento, eram inacreditáveis! Em Satlinegrado, não
mais esperava ser amado. Tinha-se blindado contra todo o sentimento, de tal
modo pensava jamais reencontrar o
amor. No entanto, descobria hoje esse amor, com que não ousava mais sequer
sonhar. Através dos olhos desse Filho de homem, Johann via, nesse momento, a
realização de uma passagem da Sagrada Escritura: “Olharão para aquele que
trespassaram[82]”, e
percebia quanto cada um dos seus pecados tinha trespassado a alma desse ser de
luz. Essa consciência que tinha de o ter ferido, suscitava nele o desejo de
reparar. Pedia perdão com todo o ser e, ao mesmo tempo, sentia-se pronto a tudo
aceitar para não mais ver sofrer ninguém por causa dele. Em seu redor, via
agora aparecer outros seres. Conhecia alguns, recordava-se que tinham morrido
antes dele. Estavam presentes a avó,
o irmão mais velho morto em combate. Reconhecia também o seu anjo da guarda.
Nunca o tinha visto, mas percebia interiormente que era ele. Todos estavam
banhados de paz e calma. Pareciam interiormente alegres por o acolherem. Desta
forma se realizava para Johann essa outra palavra da Escritura que anuncia “a
vinda de Nosso Senhor Jesus com todos os seus santos[83]”.
Tudo isto se passou num instante. Nenhuma palavra foi proferida, mas tudo se
compreendia interiormente. Johann era capaz de ler na alma dos que ali se
encontravam.
Jesus não vem só. Vem acompanhado
por todos os santos[84]. A finalidade da Revelação
que acompanha a morte, é conduzir o homem a voltar-se para Deus, se o não fez e
a faze-lo mais se já o ama. É a finalidade de toda a pregação do Evangelho.
No momento da morte, a aparição
da glória de Jesus é amplamente suficiente. No entanto, ele faz-se acompanhar
das pessoas que o moribundo amou durante a vida na terra. Esta pessoas podem
tornar-se visíveis sensivelmente, porque possuem o seu corpo físico. Ao ver a
mãe, o pai, um determinado santo que amou durante a vida, aquele que morre fica
tocado até ao fundo da alma.
A finalidade da presença dos
santos e dos parentes mortos, é a de acolher o que morre e manifestar-lhe com
delicadeza o amor de Deus. O Céu adapta estas presenças em função da
sensibilidade de cada um. É pois provável que alguns homens recebem na hora da
morte a visita de Jesus apenas. Se é um católico ou um ortodoxo, que amava a
Virgem Maria, a Virgem Maria está presente. Em numerosas aparições, ela promete
explicitamente estar presente junto daqueles que lhe pedem. Mas apaga-se quando
alguém não a deseja. Deixa passar à frente da mãe, a avó do defunto.
Se é um protestante, desconfiado
relativamente à mãe de Jesus e a todos os santos, a Virgem Maria apaga-se[85]. Respeita o seu
pensamento que acredita na mediação única do seu filho e recusa a comunhão dos
santos. Pouco importa, de momento, o seu erro. Ele já está varrido pela simples
presença de Jesus.
Aos muçulmanos, que acreditam na
vinda gloriosa de Jesus e conhecem-no por intermédio de Maomé, Jesus faz-se
acompanhar do fundador da sua religião. Tudo isto é respeitoso de cada um e o
amor é assim manifestado com grandeza, porque se mostra eficazmente por actos
de delicadeza.
É pela mesma razão que pode
acontecer que Jesus torne visíveis pessoas ainda vivas na terra. Isto acontece
principalmente quando aqueles que estão na terra rezam com fervor pela salvação
daquele que acaba de morrer. Marta Robin (que ainda não é uma santa canonizada
e por isso os seus escritos são citados a título de testemunho), a
estigmatizada de Châteauneuf-de-Galaure, dizia muitas vezes: “É preciso rezar por aqueles que acabam de morrer. Estão no momento
de jogar o seu futuro eterno.” Estas orações têm um grande valor porque,
feitas a partir da terra, que é um verdadeiro exílio, longe da presença
sensível de Jesus, têm sempre um grande mérito. Aquele que reza e se sacrifica
por aqueles que estão a morrer, age bem. É um acto ainda mais importante que
rezar pelas almas santas do purgatório, de quem já temos a certeza de estarem
salvas. Na hora da morte, pelo contrário, cada um pode ainda condenar-se. A
tentação de escolher esta caminho é intensa. Todo o amor manifesto, por quem
quer que seja, é como um peso que impressiona o moribundo e o atrai a
dirigir-se com todas essas pessoas que o amam, para a vida eterna.
A necessidade da presença do Anjo rebelde
(Coisa, em minha opinião, mais
que provável. Julgue o leitor)
Face a Johann, no entanto, juntamente
com os seres que encontrados até aqui, outras pessoas de tipo bem diferente, se
manifestam desde o início. Eram tão reais como o ser de luz, mas emanava delas
uma presença diferente. A luz que emitiam não tinha nada a ver com a
inteligência do coração contemplada a té aqui. Tratava-se de uma inteligência
mais discursiva, feita de rigor e lógica. Dela, não vinha amor, mas uma verdade
nua, extremamente precisa. Johann sentia-se preso pela sedução e não podia fazer outra coisa senão dar ouvidos àquela
linguagem. Cada um dos actos da sua vida passada, era passado em revista, mas
interpretado de forma diferente. Cada um dos seus crimes passados, tornava-se,
na boca desses seres, manifestação decisiva e nobre da sua liberdade. Ao abater
aquele soldado russo, tinha podido mostrar a que ponto era senhor de todas as
coisas. A voz rodava em torno de Johann: “Vais renunciar hoje à tua grandeza, à
tua dignidade de homem livre? És então uma criança para te lançares assim nos
braços daquele que te pode consolar? De pé, levanta-te! Assume o teu passado e
ergue a cabeça connosco!” Havia nestas palavras, uma verdadeira sedução.
Discorriam nele e encontravam-lhe um certo eco no passado, dado ao orgulho. O
homem de luz continuava a olhava-lo, não dizendo nada senão o que emanava da
sua presença. Joahann hesitava entre duas escolhas tão contraditórias: amar
todos os aqueles que o esperavam para o levar ou, ao contrário, usufruir da
independência, ser livre de todos os laços.
Joahann considerou um instante estes
dois caminhos. O primeiro, o do amor, atraía-lhe a alma toda. O segundo, o que
lhe propunha o demónio, vibrava nela à maneira dos discursos de Hitler, que
ouvira em Nuremberga. Naquela época, inchavam-lhe o peito, de tal modo
continham neles um peso de glória, de grandeza e de poder. O orgulho da
Alemanha era o seu orgulho. O desprezo de tudo quanto não era a força, era a
sua filosofia. Johann recordava-se disso. Mas via também onde o tinha levado
esse orgulho exaltado em absoluto. Tornava a ver-se em Satalinegrado, obcecado
por uma só ideia, a de comer. Nos buracos onde se escondia, revia-se sonhando,
como o filho pródigo da parábola, com poder comer o que se dá aos porcos.
Esta visão da sua lamentável pequenez,
acabou por fazer desaparecer nele toda a hesitação. Não escutou mais os
discursos sedutores. Voltou-se inteiramente para o homem de luz. Escolheu a
vida eterna.
Então, a voz dos demónios tornou-se mais
intensa. Mudou de tom para se tornar acusadora.
Em redor dele, as vozes enchiam o espaço e Johann estava como que submerso
pelos seus gritos: “Durante a tua vida na terra, não pensavas senão em ti. Não
paraste de viver na falsidade e na mentira em nome de um ideal em que nem mesmo
acreditavas. O que procuravas, bem o sabes, era a tua própria glória. E agora,
olha para ti. Será que mudaste? De todo. Não te voltas para Deus senão porque
tens necessidade dele. Mais uma vez, não ages senão por egoísmo, em busca da
tua pequena felicidade. Decididamente, és desprezível. Viverás sempre no
pecado, és imperdoável. Mereces o inferno eterno!” A verdade destas acusações
do demónio era tal, que Johann estava abalado. Uma certa vontade de não mais
esperar invadia-o. A sua alma que vista a nu diante do Ser de luz, era
realmente impura e incapaz de um amor realmente gratuito. Perguntava-se se não
faria melhor em escolher o caminho proposto pelo demónio, uma vez que não era e
não seria nunca digno de viver com Deus. Mas, num último sobressalto, virou-se
para o homem de luz, gritando: “Tem piedade de mim!” De imediato, a voz dos
demónios calaram-se. A sua presença, ela própria, pareceu desaparecer. Eles
estavam lá mas Johann não mais deixou o olhar do homem onde se lia agora uma
grande alegria.
Na verdade, o demónio tem, também
ele, o direito de intervir neste último combate. É preciso que nos debrucemos
sobre o mistério da sua presença, tal como a descrevemos na experiência de
Johann. No decurso da nossa vida na terra, já o mostrámos[86], Lúcifer e os seus anjos
não deixam de estar presentes à nossa volta. Desde o seu pecado, desde que o
homem apareceu na terra, não cessam de nos tentar. Actuam sempre no sentido das
nossas dificuldades, escondendo-se por trás delas e esforçando-se por nos fazer
cair nos nosso defeitos mais correntes. O seu objectivo é radical e teológico.
Querem habituar-nos a agir no sentido do egoísmo, do orgulho, a fim de que no
momento da morte, o amor gratuito nos seja completamente alheio. Espera assim
ver-nos rejeitar com desprezo a proposta de Deus e separar-nos definitivamente
dele. Ao agarrar os homens e ao faze-los cair nos defeitos das sua fraqueza[87], Lúcifer esforça-se para
dispor o homem ao que se opõe ao amor e à humildade.
Age por iniciativa própria e Deus
deixa que o faça. Estas tentações são, finalmente, úteis ao homem, como todas
os outros sofrimentos que o oprimem. Igualmente, no momento da morte, quando o
destino individual de cada um se prepara, Deus permite ao demónio aproximar-se.
Porque o homem é chamado a optar livremente
entre dois reinos, o reino do amor de Deus até ao desprezo de si, ou o reino do
amor de si até ao desprezo de Deus[88]. Convém, para que a
escolha seja verdadeiramente livre, que as vantagens deste reino do amor de si
de que Lúcifer é o rei, sejam apresentados à alma. É o seu papel. Fá-lo em toda
a verdade, sem procurar esconder os inconvenientes do inferno.
Aproxima-se primeiramente do
homem, como um sedutor, segundo a Escritura[89]: “o sedutor do mundo inteiro foi lançado à terra… tremendo de raiva e
sabendo que os seus dias estão contados.” Lúcifer e os seus anjos, tentam
manifestar ao homem o bem (relativo mas real) que pode existir no inferno[90], ser mestre do próprio
destino, conhecer e definir por nós mesmos o que é bem e o que é mal, ser, numa
palavra, como um deus[91]. O demónio actua com uma
verdadeira eficácia. Prova-nos a que ponto pode ser fantástico sermos o nosso
próprio deus. Recorda-nos os benefícios do nosso egoísmo passado. Mostra-nos a
liberdade que dá o orgulho. Recorda-nos cada um dos nossos pecados, mesmo os
mais secretos, os mais esquecidos, e mostra-nos o bem que pudemos retirar
deles. Toda a nossa vida passada de egoísmo, actua neste instante como um peso
na alma que nos faz desejar a nobreza solitária proposta por Satanás.
Verdadeiramente, o inferno é
desejável. As representações passadas e infantis de uma marmita de fogo, estão
bem longe. Para a alma egoísta, convertida no último momento pelo medo do
inferno, todo o motivo de temor desaparece. É-lhe dada a possibilidade de
escolher, com toda a lucidez, o jardim da
liberdade. Felizmente, esta força de convicção do demónio é constantemente
equilibrada no sentido da verdade, pela presença de Cristo e dos santos. É
certo que o inferno é a liberdade, mas é também a infelicidade, a solidão e o
ódio eternos, porque lá, ninguém ama. É o mundo frio dos deuses solitários e
roídos pelos seus próprios vícios.
Assim que o demónio termina a sua
sedução, se vê que não nos deixámos agarrar mas não paramos de olhar para o
Cordeiro, tenta um último ataque. Põe nele todas as suas forças, sabendo que
jamais terá a palavra depois. Com efeito, aquele que escolhe Deus para além das
propostas de Satanás, jamais voltará atrás. Mais nada o poderá demover da sua
escolha porque resistiu a tudo. Satanás faz-se então acusador[92]. Recorda cada um dos
pecados passados. Mostra, em plena luz, a miséria presente e real da nossa
alma. Despista sob todos os ângulos a gravidade da nossa mesquinhez, do nosso
egoísmo, sempre presente, algures, nas nossas acções. “Não podemos, diz ele,
entrar no paraíso de Deus porque é preciso ser duma pureza tal que nos
ultrapassará sempre.” Mostra vertiginosamente, a altura das exigências de Deus
sobre a nossa alma (uma humildade total, uma dependência absoluta, um amor
radical). Compara-as com o nosso estado actual, ao ponto de nos fazer afundar
no desesperança: “Se Deus reclama o que te ultrapassa, para que serve continuar
a procurá-lo? Mais vale baixar os braços e escolher o outro caminho, o da
liberdade.”
Todas estas palavras do demónio
não são, bem entendido, senão mentiras. Basta que o homem olhe para o Senhor
presente diante dele, para compreender a simplicidade das exigências de Deis. A
pureza que Deus reclama pode ser alcançada por todos. Basta um tempo de
purificação pela cruz. É verdade que só o sofrimento é verdadeiramente capaz de
mostrar ao homem a sua verdadeira pequenez e a sua verdadeira grandeza. A alma
no purgatório está de tal modo apaixonada por Deus, de tal modo desejosa de lhe
agradar, que vê o seu coração aperfeiçoar-se. O desejo que a queima liberta-a
de todo o resto de egoísmo. Sabendo isto, o demónio exerce o seu ataque tanto
mais violentamente.
A alma é chamada a escolher
livremente, mas o peso da sua vida passada orienta-a num ou noutro sentido.
Aquele que durante toda a vida, não viveu senão para si mesmo, encontra em si
ecos poderosos ao apelo de Satanás. Este caminho atrai-o. Convém-lhe. O caminho
proposto por Deus é-lhe tanto mais estranho quanto mais viveu no orgulho. Dois
caminhos se lhe apresentam. Conhece-lhes perfeitamente as vantagens e os
inconvenientes. Sabe o que exige o paraíso. Sabe o que perde ao escolher o
inferno. Quando todos os dados estão presentes, quando toda a ignorância
desapareceu, o homem, livremente, escolhe. Nenhuma fraqueza o motiva, nenhuma
ignorância o cega. Portanto, jamais voltará atrás. Nesse instante, o destino da
sua eternidade, acabou de se fixar.
Tudo isto se passa na morte e não depois da morte[93]
(Coisa certa)
A fé da Igreja é clara em afirmar
que tudo isto se passa “no momento da morte”[94]. Mas nunca definiu o que
entendia por “o momento da morte”. Certas escolas teológicas pensam tratar-se
do preciso instante em que a alma se separa do corpo. Nesta hipótese, a morte
seria instantânea e todos os acontecimentos descritos seriam vividos num
instante. É uma hipótese sustentável.
Uma outra parece mais provável.
Podemos pensar que se trata antes desse espaço entre os dois mundos.
Normalmente, um homem vive na terra ou no além. Entre os dois, apenas passa. No
entanto, existe entre os dois mundos todo um espaço e todo um tempo. As
testemunhas de uma Experiência de Morte Iminente (N.D.E.) assim atestam.
Descrevem, às portas do além, uma espécie de limite, muitas vezes simbolizado
por um rio ou uma paliçada, para além da qual não se torna a voltar à terra.
Este limite é a morte no sentido
teológico do termo. É a irreversibilidade de um novo estado. Assim, entre a
partida do corpo, dão testemunho de um tempo sobre a terra, da passagem por uma
porta em forma de túnel negro e mesmo de uma breve estadia às portas de um
outro mundo, magnífico e verdejante. Tudo isto constitui o momento da morte,
desde que o limite último não seja ultrapassado. É pois provável que o momento
possa durar vários dias, segundo a lentidão da alma[95]. Pode ser vivido em
lugares muito vastos, segundo o desejo do moribundo. O seu corpo duplo viaja
obedecendo aos desejos da vontade.
A liturgia cristã parece
inclinar-se para esta segunda opinião, daí o costume de velar três dias o corpo
dos defuntos. Marta Robin (que ainda não é uma santa canonizada e por isso os
seus escritos são citados a título de testemunho) pensava que era preciso rezar
muito tempo pelos mortos, e que o julgamento podia durar vários dias.
A escolha final
Johann escolhera. A sua escolha fora
definitiva, total e livre. A alegria parecia encher todo o espaço. Johann
estava salvo. Acabava de realizar a palavra da Sagrada Escritura: “Há mais
alegria no céu por um pecador que se arrepende do que por noventa e nove justos
que não têm necessidade de se arrepender[96]”
Como canta o livro do Apocalipse[97],
Johann acabava de vencer o Acusador, “aquele que o acusava diante de Deus”,
graças ao olhar que dirigira para o Filho do Homem, para o “Cordeiro”.
“Santa Maria, mãe de Deus, rogai por
nós, pecadores, agora e na hora da nossa morte.”
Depois de termos visto a
importância dos instantes que concluem a nossa vida na terra e preparam o nosso
destino eterno, é fácil compreender o sentido desta oração. Rezar pelos
agonizantes é um dos maiores apostolados. Salva os indecisos. Faz com que se
entreguem com toda a alma ao amor de Deus. Assim será para nós. Quando na hora
da morte compreendermos a que ponto Maria não cessou de rezar a Deus pela nossa
salvação, logo que virmos com os nossos olhos, a angústia daqueles que na terra
rezam por nós, compreenderemos melhor a que ponto as propostas do demónio, no
entanto sedutoras, não passam de fumo. Tantos são os que nos esperam ver na
felicidade do céu. Que é, diante disto, a falsa liberdade solitária proposta
por Satanás?
Precisamos agora continuar a
nossa viagem através da morte, sem deixar de nos apoiar sobre o ensinamento da
Igreja, dos santos e dos teólogos. Seguimos o caminho de Johann. Deixámo-lo no
momento em que escolheu converter-se à vida proposta por Jesus. Recordemos que
escolheu em toda a liberdade e lucidez, conhecendo perfeitamente o caminho
proposto pelo demónio.
Da mesma forma, poderíamos ter
contado a história que viveu Santa Teresa do Menino Jesus. A fase visível da
sua morte é-nos relatada pelas sua irmãs. Experimentou angústias terríveis. O
demónio aproximou-se dela nos últimos momentos, procurando mergulhá-la no
desespero, porque era essa uma das fraquezas que sabia poder abalá-la. Mas
Teresa, na noite total, minada pelo sofrimento físico, não cessou de rezar a
Jesus, em quem mesmo não tinha mais a
impressão de acreditar[98].
Depois, o seu rosto iluminou-se.
Encontrou Jesus e ficou surpreendida. Ela, a maior santa dos tempos modernos,
ela, que jamais tinha deixado de viver na sua intimidade, não tinha
compreendido a que ponto era amada! Maria estava presente com Jesus, porque
tinha desejado a sua presença. Estavam também a mãe, o pai, todos quantos tinha
amado. Como Johann, liberta do sofrimento, experimentou essa fase intermediária
a que chamámos “hora da morte” e que precede a separação total do corpo carnal
e deste mundo. Viu Pranzini, o criminoso por quem tinha rezado durante a
infância. Emanavam dele reconhecimento e gratidão: “Salvastes-me!”. O demónio
aproximou-se de Teresa. Fez-lhe o seu discurso. Utilizou todo o seu poder de
retórica. Mas que podia o príncipe dos demónios diante da humildade duma santa?
Ela era inacessível porque não parava de olhar para Jesus: “Tanto tempo te
esperei”, dizia-lhe. O demónio estava humilhado. Se um puro espírito pudesse
experimentar sentimentos, seria preciso dizer que sufocava de raiva e de
impotência. Uma vez mais, uma simples criança não lhe dava sequer a honra de o
escutar. Se tinha encontrado algum poder sobre Johann, o jovem soldado alemão,
é que ele tinha amado o pecado durante a sua vida na terra. Tendo vivido no
orgulho, tinha-lhe tomado o gosto. Mas Teresa era humilde e amava o seu Deus.
Tinha-o amado até à morte, uma morte terrível. O demónio teve de se calar e
ir-se embora. Teresa era do mundo de Deus. A sua escolha estava feita, mais
nada a retinha na terra.
A morte é a entrada definitiva no outro mundo[99]
(Coisa, na minha opinião, mais
que provável. Julgue o leitor)
A morte física podia terminar a sua obra.
O que é a morte senão uma separação da pessoa do seu corpo carnal, sem
possibilidade de retorno? Johann estava diante do rosto de Jesus e de Maria.
Convidaram-no a aproximar-se, a penetrar sem medo no outro mundo. Ouvia o som
das suas vozes. Johann vivia docemente o último momento da morte. Faltava-lhe
simplesmente transpor uma espécie de porta, uma passagem de que compreendia
intimamente que o separaria para sempre de todo o retorno carnal à terra, pelo
menos até ao fim do mundo e à ressurreição. Não tirava os olhos dos habitantes
do Céu. Via com os seus olhos os olhos deles, ouvia com os seus ouvidos os seus
convites para que se aproximasse. Transpôs a passagem. Tinha entrado no Outro
mundo. Estava morto.
Desde há alguns anos, a
investigação teológica sobre a hora da morte, foi confrontada com uma nova
experiência, cada vez mais frequente, graças à medicina. Pessoas que estiveram
perto da morte graças a uma paragem cardíaca, puderam ser reanimadas. O seu
testemunho permite rectificar certas conclusões que não parecem mais tão
seguras como antigamente. Com efeito, as conclusões dos teólogos antigos,
consistiam em descrever a morte como a separação do espírito do moribundo de tudo quanto nele é corporal: “perde não
apenas o corpo físico mas também as faculdades psíquicas, aquelas que estão
ligadas ao órgão do cérebro (sensações, imaginação, memória das imagens,
paixões sensíveis”, diz S. Tomás de Aquino. Não subsiste, segundo ele,
senão um puro espírito (inteligência e amor naquilo que este tem de voluntário).
Nesta hipótese, um morto esquece a forma do rosto da mãe, mas lembra-se da sua
personalidade.
Ora, o testemunho dos resgatados,
é unânime e a sua experiência parece não dever ser posta em dúvida. Quando se
vêem junto de parentes falecidos há muito, na sua morte iminente, possuem todos
uma espécie de corpo psíquico visível e dotado de sensações. Trata-se de um
verdadeiro corpo, embora não palpável, porque separado de toda a carne. É
visível, pelo menos para os habitantes do além, e é sede de uma vida sensível.
Se é sede duma vida sensível (se vê corpos luminosos, ouve sons, etc.), é que é
feito de uma forma de matéria, provavelmente de um estado de matéria
desconhecido ainda, que não é nem o dos corpúsculos, nem o das ondas[100]. É à imagem do corpo
astral dos budistas.
Que é então a morte? Devemos,
parece, modificar-lhe a definição teológica. Ela não é a separação do espírito
e do corpo todo. Implica apenas a
perda de uma parte do corpo, a carne,
sede das faculdades vegetativas. Portanto, os mortos não são puros espíritos à
imagem dos anjos, mas pessoas humanas dotadas de um rosto sensível,
reconhecível no outro mundo[101].
Por outro lado, a morte é um
fenómeno definitivo. Jamais se torna a voltar do além, excepto por milagre,
quer dizer, pela vontade de Deus que contradiz pontualmente as leis da biologia
(a ressurreição de Lázaro é um exemplo disso). Ao nível do corpo que permanece
na terra, a morte caracteriza-se pela sua destruição definitiva (depois de uma
dezena de minutos sem oxigénio, o cérebro jamais será reutilizável. A morte é clínica.) No mesmo momento, a pessoa
separada da carne, “a alma espiritual e psíquica” passa simbolicamente uma
espécie de porta. A convite dos anjos, entra no outro mundo. Compreende que
deixa a peregrinação terrestre. Abraão mostra que a separação com o mundo cá de
baixo é definitiva[102]: “Não é tudo. Entre nós e vós, um grande abismo foi fixado, a fim de que aqueles que quisessem passar daqui para aí não
o possam, e que não se atravesse também daí de baixo para cá.[103]
Isto não significa que um morto
nunca vem à terra. Pelo contrário, santos do paraíso não param de aparecer. Mas
não aparecem com o seu corpo de carne, antes de Deus lho ter dado.
(Coisa certa)
A irmã Teresa do Menino Jesus ouviu que
Jesus lhe falava. As palavras eram acompanhadas de todo o seu significado
interior: “Teresa, bendita és tu entre todas as mulheres. Amas Deus e os teus
irmãos, mais que a tua própria vida. Entra na Visão do teu Deus, teu esposo.”
Esta palavra escutada por Teresa, é o que a Igreja chamou o seu “juízo final”. Para Johann, em que subsistiam,
apesar do seu grande amor por Jesus, alguns restos de pecado a purificar, foi
um pouco diferente. “Johann, bendito és tu entre todos os homens. Porque foste
muito perdoado, amaste muito. És digno da vida eterna. Quando a tua alma tiver
acabado a sua purificação, verás Deus face a face.” Este juízo é o final,
porque Johann como Teresa não mais podem afastar-se de Deus. A sua escolha é de
tal modo lúcida que não voltam atrás. Veremos oportunamente, que o mesmo se
passa com as almas que escolhem o inferno.
O juízo final da alma tem lugar,
portanto, depois da morte. Tudo
quanto descrevemos a propósito da “hora da morte”, não é senão a preparação
para este julgamento vindo de Cristo. O homem é conduzido na sua morte a dizer
sim ou não à vida da graça. Depois da morte, Cristo ratifica a sua escolha[104].
Ninguém pode escapar à
necessidade de escolher. Cada um, pois, chega ao outro mundo, tenha ele sido
budista, ateu, muçulmano ou cristão, com uma vontade explicitamente voltada ou
desviada do amor de Deus. Cada um se tornou livremente discípulo de Cristo ou
discípulo do Anticristo. Então, ratificando esta escolha da alma, Jesus
pronuncia a sentença eterna, o julgamento último. Se a alma escolheu o amor,
revela-lhe que receberá que deseja. Há
uma tal força nesta palavra que a alegria daquele que a recebe é imensa. Ele acredita que verá Deus. Sabe que viverá
para a eternidade, no paraíso. Isso realizar-se-á em tempo oportuno, porque
Jesus falou. Não ousamos imaginar a alegria daquele que, sabendo-se no entanto
indigno, recebe uma tal promessa.
Da mesma forma, aquele que ouve
pronunciar a sentença da condenação, sabe que é uma palavra definitiva, como o
é a sua escolha egoísta. Veremos no capítulo seguinte, que é por causa da plena
lucidez e liberdade da escolha dos condenados.
Todos os homens, sem excepção,
passam pelo julgamento. Cada um recebe de Jesus a sentença que lhe convém. Os
que amam Deus não se julgam a si mesmos dignos da vida eterna, de tal forma têm
consciência da sua imperfeição. Maria, ela própria, a santa Imaculada, via-se
mais que qualquer outra miserável e pó diante de Deus. Nunca tinha pecado mas
toda a sua vida se reconhecia como miserável diante de Deus[105]. Recebeu, pois, de seu
Filho, a revelação do que merecia.
Quanto às almas obstinadas pelo
orgulho, bem quereriam ver Deus. Acham-se dignas dessa felicidade. Desejam-no
mesmo, porque sabem que só isso as pode fazer felizes. Mas preferem tudo perder
a baixarem-se à humildade. Diante de um tal orgulho, diante da presunção em
querer entrar à força na visão da Trindade, Jesus é obrigado a manifestar-lhes
que não merecem ver Deus: “Afastai-vos de
mim, malditos. Não vos conheço[106]”. Cada um é, pois, julgado por Jesus. Ninguém é capaz de se julgar
a si mesmo, para bem e para mal. No entanto, este julgamento é verdadeiro
porque corresponde ao fundo da alma.
CAPÍTULO 3: O INFERNO[107]
(Coisa certa)
Tudo quanto descrevemos até aqui,
harmoniza-se perfeitamente com o que conhecemos de Deus por Jesus Cristo. Ele
quer salvar todos os homens e toma as medidas. Maravilhados diante de tanta
bondade, teríamos vontade de dizer: “Não pode haver ninguém no inferno. É
absolutamente impossível ir para lá porque, ao ver Jesus na hora da morte,
nenhum homem poderá resistir à sua atracção.” É verdade que não sabemos com
certeza se há homens no inferno, mas sabemos, por outro lado, que numerosos
anjos se condenaram. Poderia então retorquir-se: “Que um anjo se separe de
Deus, isso compreende-se, é de tal modo perfeito que o orgulho, mesmo através
da solidão, o atrai. Mas os humanos são fracos e mortais. Se o sofrimento da
vida terrestre não basta para lhes mostrar quanto têm necessidade do Salvador,
o seu aprecimento acaba de lho provar.” Tais argumentos têm com que convencer.
No entanto, através de todo o Evangelho, Jesus não parece tão seguro da
salvação de todos s homens. Algumas das suas palavras, onde transparece uma
verdadeira angústia por nós, são significativas: “Pois eu, digo-vos, não temais aqueles que matam o corpo e depois não
podem fazer mais nada. Temei antes aquele que, depois de ter morto o corpo, tem
o poder de lançar a alma na gehena. Sim, eu vos digo, esse temei-o[108]”.
Com este texto, queria proteger-nos do demónio que não pára de agir para nos
conduzir ao inferno. O inferno não parece, pois, ser uma simples teoria, mas um
risco real para cada um de nós.
Ao lerem o capítulo sobre a hora
da morte, alguns leitores disseram certamente para com eles: “Inútil cansar-se a fazer demasiado o bem
sobre a terra. Para nos condenarmos, é preciso verdadeiramente procurá-lo.”
Este capítulo visa desenganá-los. Os que pensaram assim, têm sem dúvida na
cabeça as antigas teologias onde o inferno era um caldeirão de fogo no qual um
Deus vingador precipitava as almas pecadoras. É verdade que este inferno de
temor não era senão uma imagem. Suscitava o medo mas não tinha valor senão
metafórico. O inferno que aqui vou descrever é pior: é atraente. Interessa aos
egoístas… porque lá é-se egoísta.
A fim de melhor compreender este
riso, eis uma história. Tem como propósito mostrar que não são os critérios
habituais dos nossos julgamentos exteriores humanos, que podem levar ao
inferno, mas apenas a perversidade do egoísmo e do orgulho.
“Passava-se na Idade Média. Toda agente
em França tinha fé numa vida depois da morte e a realidade de Jesus Cristo, não
estava mesmo mais em questão, para a grande maioria do povo. Estávamos em pleno
século XIII e a Igreja parecia ter atingido a sua idade de ouro. Por toda a
parte, sacerdotes pregavam o amor de Deus. Um homem novo, frequentando a Igreja
desde a infância, fez para si mesmo o seguinte raciocínio: “Sou baptizado.
Jesus Cristo morreu por mim. Está pronto a perdoar-me todos os meus pecados,
tantas vezes quantas forem precisas; basta que lhe peça perdão. Promete-me, em troca, o paraíso eterno!”
Então, feliz em saber desta boa nova, interpretou-a assim: “Vou viver para mim
próprio. Vou aproveitar ao máximo os bens da terra e, imediatamente antes de
morrer, converter-me-ei. Uma boa confissão e irei para o paraíso. Deus
perdoar-me-á certamente, uma vez que é bom.”
Esta jovem não era mau. Era simplesmente
tíbio e o amor de Deus não lhe dava um grande zelo para mudar a vida. Casou-se.
Teve filhos. Arranjou uma amante, sem dúvida porque a vida o havia dotado duma
natureza robusta. Mas tudo isto custava caro. Meteu-se, então, nalguns negócios
desonestos para arranjar o dinheiro que lhe era preciso. Passados anos, adquiriu inteligência e habilidade no
manejar da riqueza. Acontecia-lhe ainda rezar, sobretudo quando lhe vinham
pensamentos sobre o inferno. Os padres falavam muito disso, na época, e
descreviam-no com expressões assustadoras, diabos grotescos, caldeirões
escaldantes, um sofrimento físico intenso e tudo isto para a eternidade. Então,
depois de um dia em que se tinha portado de uma forma particularmente odiosa
com os parentes, acontecia-lhe pedir a Jesus
que o libertasse do inferno. Os anos passaram e o nosso homem envelheceu. Foi
tomado um dia de um mal-estar. Uma dor tinha-lhe apanhado o peito e impedia-o
de respirar normalmente. Percebendo que ia morrer, mandou chamar um padre.
Aterrorizado pelo pensamento do inferno, confessou todos os seus pecados.
Falou-lhe das amantes, das faltas e de todas as más acções de que se lembrava.
Omitiu, no entanto, o maior dos seus pecados, sem dúvida porque não tinha
consciência e que os seus, mantidos em submissão, nunca lho tinham dito: toda a
vida não tinha agido senão para ele, egoistamente.
O nosso homem morreu. Viu Jesus que o
acolheu. O Evangelho foi-lhe pregado e apercebeu-se que não o tinha
compreendido bem na terra. O paraíso não consistia num simples lugar de
felicidade onde cada um podia gozar da vida segundo os seus gostos. O inferno,
tal como o apresentavam os demónios, não era um lugar onde eles pudessem
torturar os homens para toda a eternidade. Tudo isto não passava de uma
linguagem simbólica que significava coisas bem mais profundas. No paraíso, a alegria e
o prazer são reais, mas encontram a sua origem no dom de si. No inferno, reinam
o sofrimento e a solidão, mas tudo isso é a consequência de uma divina
liberdade. Isso mudava tudo. O que o nosso homem percebia naquele dia, pelo
ensinamento de Satanás, era que nunca tinha verdadeiramente amado Deus. Não o
tinha amado senão por causa das vantagens que esperava receber. Mas, depois de
ter visto as condições requeridas para receber esses benefícios, o paraíso não
lhe parecia mais muito atraente. Agora, que compreendia o que era uma
verdadeira conversão, tudo lhe parecia bem diferente. Até aqui, pensava que bastava pedir perdão, imediatamente
antes de morrer, de cada uma das suas más acções. Não supunha que a entrada no
Céu implicasse também uma total viragem de coração, uma rejeição do egoísmo e
um dom, até ao esquecimento de si mesmo, a Deus e aos outros. Paralelamente, o
demónio sugeria-lhe que dissesse com ele um não firme a Jesus e à suas
exigências aberrantes. Convidava-o a encolher os ombros diante de uma tal
loucura.
O nosso homem pesou os prós e os contra
e, depois de tudo considerado, optou pelo caminho que correspondia melhor ao
seu ser: egoísta que era, egoísta continuaria a ser. Voltou então as costas a
Jesus, não podendo suportar mais tempo o seu olhar.”
Como é possível que este homem,
aparentemente semelhante aos outros, se tenha separado de Deus? A primeira
resposta a esta pergunta é que o inferno
é luz. Existe um verdadeiro bem no inferno, algo de atraente. Esta luz
chama-se liberdade e poder. É-se como um deus, faz-se o que se quer. Come-se à
saciedade da “árvore do conhecimento do bem e do mal”[109], segundo a promessa de
Lúcifer a Adão e Eva. Este bem não é senão aparente. Mas é porque os condenados
estão prontos a arder de solidão mais do que pensá-lo, que escolham o inferno.
A segunda resposta encontra-se no
coração do homem. Este homem, aparentemente igual aos outros, era no entanto
cristão e tinha recebido os últimos sacramentos. A razão é a procurar na raiz
que esteve, durante toda a vida, na origem dos seus actos. Como em todo o
homem, havia nele um desejo de felicidade. Como todo o homem, amava-se e
naturalmente procurava ser feliz. Não há nada de mais natural. O amor de nós
mesmos faz parte do nosso ser. No entanto, baseando-se numa concepção falsa da
fé cristã, pensou poder procurar a felicidade de uma forma egoísta. Mesmo
assim, esperava ser salvo, “uma vez que Deus é amor”. Tinha razão em pensar que
Deus não pode nunca ser o primeiro a rejeitar alguém. Mas esquecia que ele
próprio era capaz de rejeitar Deus. Viveu no egoísmo, não vendo a que ponto
tomava gosto a esta vida. Porque uma vida entregue ao pecado, engendra o amor
do pecado. Fez da mulher um meio de servir os seus desejos. Não a amou senão
por aquilo que lhe proporcionava. Foi este, sem dúvida, o mais grave dos seus
erros. Agiu igualmente assim para com os amigos e não se voltou para Deus, no
final da vida, senão para obter, uma vez mais, um bem para seu proveito. O egoísmo tornou-se cada vez mais a sua razão de
viver. Obviamente, escondido nos meandros do seu psiquismo, aquele que
pacientemente tecia os fios do pecado, chamava-se Satanás. Chegado diante de
Jesus, liberto de todo o medo e de todo o erro teológico, confrontado com a
verdade do Evangelho e com a do seu coração, não fez senão comportar-se como
habitualmente. Exaltou-se, revoltou-se e orgulhou-se diante dele, gritando-lhe
face a face: “O teu paraíso, eu quero, mas não sob tais condições. Prefiro mais
estar longe de ti a isso.” Agiu logicamente. Este homem condenou-se livremente.
Condenou-se para a eternidade. No momento da morte, tendo percebido tudo,
sabendo o que era o inferno e as suas penas, preferiu-o à conversão.
Eternamente, este homem repete, pois, com os demónios: “Tenho razão, tenho
razão, antes o inferno que o paraíso sob estas condições.”
Tomámos o exemplo de um cristão
semelhante a muitos de entre nós, a fim de manifestar a que ponto é perigoso,
sob pretexto do amor de Deus, brincar com o pecado. Tal atitude é imatura
porque desconhece a realidade do mal. O pecado assemelha-se a uma árvore de que
não vemos senão as múltiplas folhas. Cada folha tem um nome: luxúria, vaidade,
avareza, mentira, etc. São verdes e sedutoras porque, ao alimentar-se delas, o
homem recebe um prazer imediato que preenche os seus desejos. Mas todas estas
folhas, escondem na sua sombra, um tronco rugoso e duro que não pára de as alimentar
e engrossa ao alimentá-las: o orgulho.
Com efeito, o homem que vive no pecado é o seu próprio dono. Não tem
necessidade dos conselhos de ninguém, uma vez que ele próprio escolhe o que é
bem e o que é mal. Muitas vezes, quando se encontra diante de uma pessoa que
vive duma forma diferente, irrita-se com ela. Classifica-a de “moralista”
porque, sem mesmo o querer, esta pessoa parece aconselhá-lo a viver de outra
forma. O orgulho recusa todo o conselho (sobretudo os da Igreja).
Este tronco está ele próprio
fundado em raízes que se imiscuem até ao fundo do coração. Estão escondidas e
crescem insidiosamente. Agarram-se por todo o lado, ao ponto de se tornarem uma
segunda natureza. A raiz primeira da “árvore
do conhecimento do bem e do mal[110]”,
chama-se egoísmo. Com efeito,
ninguém peca senão porque se ama a si mesmo ao ponto de fazer de tudo
(incluindo Deus e o próximo) o instrumento da sua felicidade individual. Esta
árvore poderosa alimenta-se do pecado. A morte vem arrancar-lhe as folhas,
porque o homem não mais tem corpo para pecar. Mas deixa o tronco e as raízes
que, agarradas. Podem conduzir o homem ao inferno. Desta forma, aquele que vive
no pecado alimenta nele um tronco e raízes más (egoísmo e orgulho) que podem
fazer com que despreze o perdão oferecido no momento da morte. A árvore cai
sempre para o lado onde se inclina, comenta um provérbio.
A blasfémia contra o Espírito Santo
(Coisa certa)
Mas, recusar o perdão nesta hora,
constitui sempre uma blasfémia contra o Espírito, pecado sem remissão, segundo
Cristo:
“Digo-vos, todo o pecado e blasfémia
será perdoada aos homens, mas a blasfémia contra o Espírito Santo não será
perdoada. Quem disser uma palavra contra o Filho do homem, isso lhe será
perdoado, mas quem tiver falado contra o Espírito Santo, nunca lhe será
perdoado, nem neste mundo nem no outro.[111]”
A blasfémia contra o Espírito
Santo é, pois, o único pecado que nos conduz ao inferno. É importante
compreender com rigor a sua natureza.
No Evangelho, Jesus fala dela a
propósito de certos Doutores da lei que desejam perde-lo. Estes teólogos
tinham-no visto realizar grandes milagres[112]. Sabiam, por causa da
sua ciência teológica, que certos factos, como a ressurreição de um morto,
ultrapassam o poder dos demónios. Não podem vir senão de Deus, porque só Deus é
infinitamente poderoso. Podiam pois deduzir que o profeta Jesus, por quem estes
milagres se realizaram, vinha de Deus. Ora, estes homens amavam o seu poder.
Amavam-no tanto que, vendo Jesus ganhar influência sobre o povo, tiveram medo
de ser suplantados. Decidiram, pois, sabendo
explicitamente que ele vinha de Deus, faze-lo desaparecer[113]. De tal forma amavam a
glória que estavam prontos a matar o Messias, reconhecido como tal, para a
conservar. A blasfémia contra o Espírito
Santo consiste num amor de si levado tão longe, que é capaz de rejeitar lúcida,
voluntária e livremente, tudo quanto se lhe opõe, até ao próprio Deus.
Vemos que um pecado destes é raro sobre a terra. Com efeito, implica condições
tão severas que muito poucos homens são capazes. As condições são, segundo o
Concílio Vaticano II, em número de três: um conhecimento perfeito, um dotal
domínio de si, uma liberdade serena.
Nenhuma fraqueza deve estar na base do acto mas uma
escolha feita e reflectida. Deste modo, toda a pessoa que actua levada por uma
paixão que cega, não comete uma blasfémia contra o Espírito. Peca antes contra o Pai, uma vez que se atribui ao
Pai, na Trindade, tudo o que se relaciona com o poder. Da mesma forma, este
pecado não pode existir se a mínima
ignorância o acompanha. Os que pediram a morte de Cristo, ignorando
sinceramente a sua origem profética, não cometeram blasfémia contra o Espírito,
uma vez que “se tivessem sabido, nunca
teriam crucificado o Senhor da glória.[114]”
De igual forma, todo aquele que na terra peca contra os irmãos ignorando a
existência de Deus, não pode cometer uma verdadeira blasfémia contra o
Espírito. Comete antes, na sua ignorância, um pecado contra o Filho, uma vez que se atribui à segunda pessoa da
Trindade, tudo quanto toca ao conhecimento. Na terra, apenas os crentes que
conhecem um pouco a sua teologia, podem cometer este pecado irremissível. Mas,
no momento da morte, mostrámos que é completamente diferente. Fraqueza e
ignorância desaparecem. A blasfémia contra o Espírito Santo torna-se possível
porque, face a Jesus contemplado na glória, coração a coração, verdade a
verdade, ninguém pode agir doutra forma senão em plena liberdade.
Os seis caminhos da danação[115]
(Coisa certa, salvo, talvez, o
número seis)
Através de alguns relatos, vamos
tentar manifestar as seis grandes maneiras como é possível, no momento da
morte, cometer o pecado que conduz ao inferno. S. Tomás de Aquino dá, na sua Suma Teológica,
a lista destes seis pecados[116]. Esta lista permanece
válida e corresponde perfeitamente aos actos de um orgulho que se tornou
indestrutível:
Recusa
em acreditar na verdade suficientemente revelada,
Inveja
das graças fraternas,
Presunção,
Desesperança,
Obstinação,
Impenitência
final.
1- Recusa em acreditar na verdade suficientemente revelada
O primeiro destes
pecados acaba de ser descrito na atitude dos Doutores da lei denunciados por
Jesus. É nítido, pelo que diz o Messias, que alguns desejaram a sua morte, ao
mesmo tempo que sabiam muito bem que ele vinha de Deus. Ora, alguns anos mais
tarde, morreram. Entretanto, é provável que alguns deles tivessem tido tempo
para participar activamente em perseguições contra a jovem Igreja de Jesus.
Esta atitude é lógica. Aquele que leva o amor do poder ao ponto de eliminar
conscientemente um enviado de Deus, não tem razão para mudar a seguir, até à
hora da morte, uma vez chagado à presença de Jesus. É assim que funciona a
primeira destas blasfémias contra o Espírito Santo. A verdade e o amor
plenamente manifestos, não produzem nenhum efeito de conversão. O pecador já
fez a sua escolha duma forma tão definitiva e lúcida, que nem sequer se dá ao
trabalho de considerar o outro caminho. Não acredita nele… por escolha. Na sua procura exclusiva do poder, estes homens estão
prontos a negar para a eternidade. Para isso é preciso, é certo, um orgulho
desmedido. Sem este orgulho lúcido e forte, não pode haver inferno. Qualquer
outro pecado que não este, não resiste diante da doçura e da humildade de
Jesus.
A história dá-nos, parece, um
exemplo análogo mas muito mais recente. Trata-se, mais uma vez, de um
sacerdote. Chama-se D. Pedro Cauchon. É o juiz de Joana de Arc. Os documentos
do processo de condenação são fiáveis devido à honestidade do escrivão Manchon
que, arriscando a vida, recusava falsificar os textos. D. Cauchon é Doutor em
teologia, formado na Sorbonne. A guerra dos cem anos opõe Ingleses e Franceses.
Joana de Arc, jovem de 18 anos, sem cultura, tinha conseguido fazer sagrar o
rei de França, Carlos VII em Reims. Cauchon tinha tomado o partido dos ingleses.
Uma ambição secreta orientava o seu zelo: ser arcebispo. Virá a sê-lo,
efectivamente, durante dez anos, à custa de um pecado de que vemos mal as
circunstâncias atenuantes. Quando o destino o fez juiz de Joana, compreendeu o
que deveria fazer: convencê-la de feitiçaria por todos os meios. Ora, no
decurso do processo, tudo lhe indica que está não apenas face a uma jovem viva
e sã, plena de humor e de graça, mas a uma enviada de Deus. É inspirada com
respostas teológicas que ultrapassam o seu nível de cultura. Escapa às
armadilhas da dialéctica subtil. As profecias que tinha feito realizaram-se à
letra. Apesar desta evidência, o bispo Cauchon recusa-se a acreditar na evidência. Precisa da vida dela. A sua
promoção depende disso. Para tal, utiliza as astúcias mais sórdidas. Falsifica
a ciência teológica. Joana não pôde ser incriminada de feitiçaria ou de
impiedade[117].
Não é atacável senão interpretando à letra um texto sagrado que condena os
travestis. Não se veste de homem por vício, mas porque está rodeada de soldados.
Aproveitando-se duma fraqueza devida a uma intoxicação alimentar que ele
provocou, o bispo promete-lhe uma prisão guardada por mulheres na condição “
dela se submeter à sua autoridade e se vestir de mulher.” Os termos são
voluntariamente vagos. Cansada, aceita. Traindo a palavra, o bispo mete-a de
imediato na prisão guardada por homens, com os seus fatos de homem bem à vista.
No dia seguinte, não terá senão que constatar a sua recaída e a mandá-la
queimar como “relapsa”.
Trata-se de um pecado contra o
Espírito Santo? É impossível julgar o íntimo dos corações. Estas histórias não fazem senão ilustrar os pecados contra o Espírito
Santo e não se pronunciam com certeza sobre a realidade deste pecado e da
escolha definitiva das pessoas citadas. Mas a aparência desta história
ilustra bem o que é a recusa em acreditar na evidência. Este pecado é, na
verdade, uma vontade de não acreditar por
amor de outra coisa: prazer, poder ou riqueza. Este bispo teólogo é
necessariamente lúcido. Manifesta um grande controle de si próprio. É avisado
numerosas vezes pelos que o rodeiam. O seu escrivão é como que uma voz de Deus,
recta e discreta. Se tudo isto é verdade, se nenhuma fraqueza escondida não
motiva o comportamento do bispo, podemos legitimamente inquietar-nos com a sua
salvação. Na morte, D. Cauchon contentar-se-á em escolher com a mesma
determinação o inferno onde as ambições de poder são preenchidas[118].
2- Inveja das graças fraternas
A segunda blasfémia contra o
Espírito é mais fácil de compreender, porque mais próxima dos comportamentos
habituais. A inveja das graças do próximo é um estado de alam frequente que,
felizmente, não é a maioria das vezes senão fraqueza ou disparate. Tomaremos o
exemplo de uma pessoa que viveu. Não se
trata, mais uma vez, de nos pronunciarmos sobre a escolha eterna de quem quer
que seja, mas apenas de ser ilustrativo. Quando Adolfo Hitler se suicidou,
deixou este mundo carregando com a responsabilidade directa de dezenas de
milhões de vidas humanas destruídas, das quais, em particular, alguns milhões
de mulheres, de crianças culpadas de terem nascido acompanhadas pelo seu
desprezo. Formalmente, e sem entrar demasiado rapidamente na sua consciência,
Hitler não parece ter-se tornado culpado de uma verdadeira blasfémia contra o
Espírito Santo, antes da hora da morte. Recordemo-lo, as condições requeridas
para cometer este pecado são vertiginosas. Deus é justo e a mínima ignorância
determinante relativa ao sentido da vida na terra, é recebida como
circunstância atenuante. Ao contrário de D. Cauchon, Hitler ignora com toda a
evidência, a teologia e o coração de Deus. Não suspeita, nem por um só momento,
a que ponto é amado pelos biliões de seres humanos e angélicos, presentes junto
de Deus. Ninguém pode saber de antemão, como teria vivido se tivesse conhecido
o Senhor da glória[119].
Em qualquer caso, é certo que foi
acolhido na hora da morte pelo desenrolar de um incontável cortejo de santos. O
Céu inteiro mobilizou-se para salvar este grande pecador. Entre as almas
presentes, brilhavam as dos milhões de judeus que tinha mandado exterminar.
Viu-os um a um, durante um desses olhares profundos que pode oferecer o poder
de Deus no momento decisivo. Todas estas almas reunidas propunham-lhe[120] o seu perdão, sem
rodeios. É assim que se é no Céu. Ninguém pode entrar no Céu sem estar nesta
disposição de alma. É por isso que é uma certeza os judeus terem acolhido
Hitler desta forma. Viu o rosto de Jesus irradiando doçura e humildade. Viveu
do interior esta palavra do Evangelho, terrível para ele: “Tudo quanto fizerdes ao mais pequenino dos meus, foi a mim que o
fizestes.” O silêncio acolhedor de Deus, no momento da morte, é descrito
pela Escritura como o Dia da cólera (Dies
irae). Porque mais valia enfrentar a cólera de Deus que o seu perdão[121]. Mas, também o demónio
tinha direito à palavra, como convém nesta ocasião. Não é difícil, conhecendo
as obsessões de Hitler durante a vida na terra, reconstituir o tom. Satanás
sabe como falar para tocar uma alma no próprio centro da sua perversidade: “Eis estes judeus, estes ciganos que tu
desprezaste toda a vida e com razão. Olha para a atitude humilhante de
dependência que eles têm uns para com os outros. Olha para a realeza que
receberam de Deus. Se te convertes agora, não esqueças que tu, o Guia de
milhões de homens, serás mais pequeno que eles, por toda a eternidade. De
Senhor que eras, serás inferior porque cada um se faz servo de todos no mundo
deles. Não te convertas. Permanece fiel ao teu combate, sê Rei comigo, longe
dessa gente.”
Aqui se encontra a poderosa
tentação da inveja das graças fraternas.
Diz respeito a todos o homem que foi dominante face ao próximo, durante a vida.
É difícil renunciar ao poder. O eco destas palavras foi, sem dúvida, imenso,
num coração tal como o seu. Correspondiam a toda a sua vida. Não saberemos
senão no Céu, qual foi a escolha definitiva de Hitler naquele 30 de Abril de
1945. Implorou o perdão de Deus e dos seus irmãos[122]? Provocou no céu a maior
das alegrias? Cedeu, ao contrário, à inveja, segundo a inclinação adquirida em
toda uma vida alimentada de ódio? A inveja das graças fraternas, segundo pecado
contra o Espírito Santo, é sem remissão possível porque, cometido assim, na
lucidez da hora da morte, é o acto de uma pessoa que jamais voltará atrás.
Para compreender a presunção,
terceiro pecado contra o Espírito Santo, é preciso lembrarmo-nos da queda do
Anjo Lúcifer, tal como relatada na nota 1 da página 28 (Primeira Parte).
Actualmente, este anjo, como todos os demónios, não pára de reclamar a Deus a
Visão beatífica. Acha-se digno desta felicidade e considera-a como devida a
cada um na medida da nobreza da sua inteligência. A presunção é aqui: querer
possuir Deus recusando as condições queridas por ele, humildade e caridade.
Este pecado é tipicamente luciferino, porque implica um sentido inato da sua
própria grandeza. No entanto, ele é possível no ser humano, sobretudo no final
de uma vida repleta de honras e riquezas. Suponhamos que um homem chega diante
de Jesus na hora da morte e exige o paraíso excluindo as condições de pequenez
propostas pelo Salvador; suponhamos que mantenha firmemente esta atitude, em
plena lucidez, pronto antes a perder a vida eterna que a amar esse Deus que não
se dá senão ao amor, então condena-se a si mesmo ao inferno e isto para a
eternidade porque, eternamente, dirá a Deus: “Tenho razão.” Deus rejeita
activamente este homem porque ele tem a audácia de querer forçar a entrada na
visão beatífica. Daí estes textos[123]: “Os filhos do Reino serão lançados nas trevas exteriores. Aí haverá
choro e ranger de dentes.”
A desesperança, enquanto tal, é
um pecado contra o Espírito Santo e é mais difícil de compreender. Foi com
demasiada facilidade, no decorrer da história, que a confundiram com o
desespero psicológico que, quanto a ele, é incapaz de mergulhar um homem no
inferno. A história de Judas é significativa a este respeito.
Segundo os Evangelhos, o maior
defeito de Judas, foi a sua ligação ao dinheiro. Não apenas roubava dinheiro da
bolsa comum dos apóstolos, mas ficava doente à vista do esbanjamento
aparentemente autorizado por Jesus: “Porque
é que este perfume foi derramado no chão? Não devia ter sido vendido por
trezentos denários que se dariam aos pobres?[124]”,
repreende Judas a Jesus depois da passagem de uma mulher arrependida. Por causa
da sua avareza, não suportava mais Jesus. No entanto, escondia o seu jogo duplo
vivendo como os outros discípulos. Sem dúvida, tinha sido testemunha dos
milagres de Jesus. Não podia enganar-se quanto ao seu poder sobrenatural. No
entanto, não compreendia a sua mensagem demasiado espiritual, não
suficientemente realista. Jesus tentou tudo para o trazer a ele. O sinal do
pedaço de pão[125]
prova a amizade e a confiança. Ao aceitar este pão de comunhão, sem falar a
Jesus da sua perturbação, fechou-se na hipocrisia. O demónio não teve senão que
lhe sugerir que entregasse Jesus aos chefes dos Judeus, fornecendo-lhe muito
boas razões, o perigo político do Evangelho, a necessidade de um juízo de
discernimento da parte dos Doutores da lei, e o dinheiro a ganhar. Assim que
efectuou o seu gesto, sentiu-se primeiro aliviado. Mas, ao mesmo tempo que
desaparecia a tentação, teve subitamente um retorno de lucidez: todos os
milagres de Jesus lhe vieram à memória, assim como as profecias da sua Paixão.
Teve uma consciência brutal de ser o traidor, aquele que devia entregar o
Messias. Foi tomado por uma vertigem desesperante diante da enormidade do seu
crime: “Pecado imperdoável! Infeliz de mim” e foi suicidar-se.
Este suicídio é fruto de um
desespero assustador perante a consciência de um acto irreparável. Mas não
constitui ainda, parece, um pecado contra o Espírito Santo. Com efeito, o susto
de uma condenação sem remissão possível da parte de Deus, vem submergir o
pensamento ao ponto de entravar o discernimento. Ela é falsa e ligada a uma
falta de conhecimento de Deus. Deve, pois, ser rectificada por uma prova
gloriosa da bondade de Deus. Quanto à sua fraqueza, ligada ao pânico, a atitude
de Judas a comprova: corre a devolver o dinheiro, esperanto talvez duma forma
ilusória, libertar Jesus. Todos o pecado, por grave que seja, logo que esteja
marcado por erro teológico ou fraqueza, não pode constituir uma verdadeira
blasfémia contra o Espírito Santo. O suicídio de Judas revela, por outro lado,
uma capacidade de lamentar a falta cometida, ao mesmo tempo que não imagina o
perdão possível.
Teríamos nós agido de modo
diferente, no seu lugar? Tal desespero em tal situação é natural. Quem pode
esperar ser perdoado depois de uma traição tão grave? Quando o amigo traído é o
Messias de Deus, quem não pensaria no inferno?
Judas enforcou-se. Nesse mesmo
instante, Jesus (ou um anjo delegado por Jesus, segundo a hora em que praticou
o seu gesto) mostrou-se-lhe. Sem possibilidade de erro, a clareza desta
aparição manifestou a Judas o inimaginável: o seu pecado podia ser perdoado.
Bastava-lhe pedir perdão e lançar-se nos braços do Messias morto por ele. Mas o
demónio, sempre presente na hora da morte, gritava: “Pecado imperdoável!
Infeliz de ti, estás perdido.” Com esta palavra, tentava-o, não mais de
desespero, mas de desesperança. Não se tratava mais de o empurrar para um
desespero psicológico fazendo-lhe
crer falsamente na impossibilidade do perdão de Deus. A existência desse perdão
não podia ser ignorada naquela hora por Judas, diante da evidência da aparição
gloriosa do Enviado de Deus. Não, o demónio tentava convencer um homem calmo,
em plena posse das suas faculdades de ajuizar, conhecendo perfeitamente a Boa
Nova, a recusar o perdão oferecido: “Conserva
a tua dignidade. O teu pecado é demasiado grave, assume-lhe as consequências,
recusando o perdão.” Trata-se de uma desesperança querida e mantida firmemente, apesar do perdão evidente de Deus.
Este acto curioso é, com efeito,
uma subtil manifestação de um orgulho camuflado em dignidade: “Pequei
demasiado, vou-me embora.” Qual foi a escolha definitiva de Judas? Desesperança
voluntária ou abandono da sua alma ferida nos braços de Deus? Há uma palavra
terrível de Jesus a seu respeito: “Infeliz
daquele por quem o Filho de homem for entregue. Mais valia a esse homem não ter
nascido.[126]”
Não interpretemos demasiado depressa esta profecia como a prova da condenação
eterna de Judas. É preciso lembrar-nos que, pelo pecado, entregámos um dia o Filho do homem. Jesus não toma, aliás, este
nome de Filho do homem, senão para significar que todo o pecado contra um filho
de homem é contra ele. É preciso acrescentar como subentendido, a este texto:
“salvo se ele implorar o perdão.”
A desesperança, como blasfémia
contra o Espírito Santo, é concretamente uma escolha da inteligência e não uma
pulsão da sensibilidade. A distinção pode parecer subtil. Ela é fundamental se
queremos compreender o destino daqueles que se suicidam por desespero. Longe de
se condenarem para a eternidade, é preciso afirmar que o sofrimento destes
pobres filhos de Deus os dispõe a precipitarem-se com amor nos seus braços, de
momento que ouvem falar da sua existência[127].
A quinta blasfémia contra o
Espírito Santo, a obstinação, é fácil
de compreender. Todo aquele que, face a face com Jesus, se obstina em manter a
sua escolha definitiva e lúcida, no sentido do egoísmo, coloca-se livremente no
inferno. E o seu inferno é eterno porque, na luz de Jesus, a escolha é feita
para sempre. O inferno não tem fim, porque a pessoa obstinada quer permanecer
para sempre no seu pecado.
Quanto à impenitência final, foi
descrita no início deste capítulo. Chegado ao outro lado, o homem da Idade
Média não se arrepende porque, subitamente, o seu pecado parece-lhe bom. O
único motivo que o mantinha no receio, desapareceu. Não mais tem medo do
inferno.
Não devemos confundir o pecado
contra o Espírito Santo de impenitência final, com a impenitência que
observamos às vezes nos moribundos. Nos anos 1910, morria um homem político,
aderente do partido Radical socialista, bom esposo de uma mulher católica. Toda
a sua vida tinha professado ideias contrárias ao cristianismo. Tinha mesmo
aderido a um grupo filosófico do tipo da franco-maçonaria, tentando construir
um mundo marcado pelas ideias humanistas, liberdade, justiça social,
solidariedade. Estas três ideias não se opõem por si mesmas ao cristianismo,
mas acompanham-se de um ateísmo prático que se poderia traduzir assim: “Vivamos
livres e respeitemo-nos uns aos outros, a fim de vivermos felizes na terra
antes que a morte nos destrua.” A longo prazo, resulta daqui um respeito e uma
tolerância pelos outros que tem como fim… o amor de si mesmo, a fim de melhor
encontrar a felicidade individual. A religião cristã, já vimos, implica uma
filosofia inversa.
Para este homem, a religião
cristã, como todas as religiões, parecia-lhe conduzir ao fanatismo e ao
obscurantismo, e sabia, quando era preciso, prová-lo com exemplos bem
documentados, retirados da história. Depois, caiu doente e a doença revelou-se
sem cura possível. A esposa, angustiada pela sua salvação, pensou fazer bem ao
chamar um padre à sua cabeceira. Este veio e, sem o forçar, com toda a
delicadeza necessária, falou-lhe de Jesus, do perdão, da vida eterna. Mas o
homem teve um gesto terrível. Agarrando no crucifixo, deitou-o ao chão.
Voltou-se e morreu algumas horas depois. Os seus irmãos maçónicos, vieram ter
com a mulher e entregaram-lhe uma carta testamento, recusando um funeral na
Igreja.
Perante os sinais da sua impenitência final, a esposa
acreditou na sua condenação eterna. Ficou desesperada como se pode ficar por
uma marido ternamente amado. Escreveu a D. de Hulst, que na época era muito
conhecido pela qualidade da sua direcção espiritual. Sossegou-a, escrevendo-lhe
uma carta que merece ser citada, porque constitui historicamente a primeira
alusão de um teólogo à possibilidade de uma revelação na hora da morte.
“Neste último combate
da agonia, quando o pensamento está lúcido e a voz está muda, quando o mundo
exterior se extingue em volta do moribundo e o deixa só com o seu mundo
interior, quando o ouvido não mais ouve as suas palavras enganadoras destinadas
a sossegá-lo e que a alma escuta a resposta da morte que lhe diz a próxima e
terrível verdade, nesta hora de angústia e de clarividência, há certamente uma
solicitação suprema da misericórdia. Há uma aparição (emprego a palavra no
sentido metafísico e mais lato), uma aparição de Jesus. Há a recordação,
subitamente reanimada, desses fragmentos dispersos de instrução religiosa, esquecidos
desde a infância, de ideias religiosas espalhadas aqui e ali na sociedade e que
se encontrou outrora no caminho de indiferença. Tudo isto se reúne, tudo isto
revive como as ossadas de Ezequiel, tudo isto recompõe uma imagem da verdade
que se oferece à alma nos traços benditos do Redentor.”
Segundo D. de Hulst, esta graça
final que precede a morte é tão certa, que nunca devemos desesperar da salvação
de ninguém.
Na verdade, que aconteceu ao
homem de quem contávamos a morte? Foi salvo, e não apenas o foi como se tornou
grande no Céu, como se tornam aqueles que amam muito. É que o gesto para com o
crucifixo não era o de um homem perverso e obstinado na sua impenitência. Era o
de um não crente sincero: “Não julgueis,
afirma Jesus, e não sereis julgados.”
Segundo o nosso homem, depois de madura reflexão, Deus não podia existir. O
mundo com as suas desgraças, a própria natureza com as suas contradições,
pareciam-lhe com evidência o fruto de um acaso. De Deus, nada! O homem, neste
mundo desesperante, parecia-lhe mais infeliz que os animais, uma vez que tinha
consciência de tudo isto. Quando viu entrar aquele padre no seu quarto de
moribundo, tinha-o rejeitado com piedade, como se rejeita um vendedor de
esperança. Depois, tinha morrido, lamentando apenas não ter mentido
exteriormente à mulher para a sossegar. Mas, chegado ao Além, vendo de um só
olhar a Verdade, aderiu a ela imediatamente. Um homem de coração recto não
rejeita a evidência, sobretudo quando ela dá sentido aos escândalos mais
obscuros da vida na terra. Alegria diante da existência da salvação e lágrimas
pelos seus erros passados, tais foram as reacções deste homem justo. Não teve
mesmo que passar por um tempo de purgatório porque, tendo amado a esposa de
todo o coração, durante toda a vida, soube imediatamente amar Deus.
Completamente diferente é a
impenitência final. É a consequência de um homem endurecido voluntariamente no
seu pecado, que prefere friamente viver antes no inferno, que mudar, e isto
face à doçura de Deus. Todas as blasfémias contra o Espírito Santo são, aliás,
da mesma espécie. Todas são uma recusa reflectida de um casamento de amor
eterno proposto por Deus. Face a esta recusa, Deus não se revolta. Não impõe
nenhuma punição e respeita a liberdade daquele que o rejeitou. Não tenta mais
nada para o salvar, porque sabe que não existe mais nenhuma acção capaz de o
modificar.
(Coisa certa)
Deus criou o inferno? Ao criar pessoas,
portanto, seres livres, criou a possibilidade dessas pessoas rejeitarem o seu
projecto. A sua relação com a humildade e o amor, pode irritar alguns. Ora, o
inferno não é senão a rejeição do estado interior que reina nos habitantes do
paraíso. Neste sentido, Deus criou a possibilidade do inferno. Os condenados,
condenam-se a ele sozinhos, contra todos os esforços de Deus.
Qual é o lugar do inferno? Vou mostrar
que é provavelmente o mesmo que o do paraíso. Deus limita-se a respeitar a
escolha dos condenados, não se mostrando a eles e deixando-os ir onde bem lhes
parece. No entanto, é preciso mostrar que esta escolha é fonte de sofrimentos
múltiplos, tradicionalmente chamados penas do inferno. Seria mais rigoroso
chamar-lhes “as agruras” do inferno porque a palavra pena evoca uma punição que
Deus acrescentaria. Na verdade, estas penas não são senão as consequências
morais, psicológicas e, depois da ressurreição, físicas, de uma escolha de vida
egoísta, de uma alma criada para o amor.
A Sagrada Escritura não pára de
falar dos tormentos do inferno, do fogo, do verme roedor, do choro e do ranger
de dentes… Quando dizemos que Deus não impõe qualquer punição ao condenado,
entendemos com isto que ele não acrescenta nada mais àquilo que ele sofre. Pelo
contrário, os condenados são deixados verdadeiramente livres. Podem ir e vir
como entenderem, no universo, excepto
fazer mal aos habitantes da terra. A Escritura dá testemunho a propósito de
Satanás[129]:
“No dia em que o Filho de Deus se
apresentou diante de Javé, Satanás também se aproximou deles. Javé disse então
a Satanás: ‘Donde vens tu?’ ‘De rondar a terra, respondeu, e de me passear
nela.’”
Antigamente, teólogos, tomando
num sentido material os textos do Evangelho, imaginaram um fogo, caldeirões,
lava incandescente, no inferno. Como puderam pensar Deus à imagem de um
carrasco, delegando nos demónios por vingança, tal um chefe de campo de
concentração? Esta teologia, quando a relemos, constitui uma verdadeira
blasfémia. De facto, no inferno, nada disto existe, pelo menos não como se
entendia. Deus respeita a liberdade da sua criatura e não faz senão apagar-se
humildemente diante daquele que o rejeita.
É o pecado que constitui a fonte
de todas as dores do inferno. É possível descrevê-las uma a uma, como uma série
de cascatas que procedem de um único ponto: a privação de Deus.
O fogo do inferno existe
verdadeiramente. A Sagrada Escritura fala dele com nitidez. A sua natureza pode
ser rigorosamente descrita, através das leis da psicologia espiritual. Não é em
primeiro lugar um fogo material. Trata-se de um sofrimento espiritual ligado à
ausência de Deus. Toda a alma, como todo o anjo, assemelha-se a um vaso cuja
abertura imensa aspira a ser cheia de água pura. Toda a alma é criada por Deus
para ser cheia de Deus[131]. É preciso ir muito
longe para compreender. A nossa alma no seu próprio ser, é trinitária, quer
dizer, é feita para que aí venham alojar-se o Pai engendrando o Filho, no
Espírito Santo. Afastada daquilo para que é feita, a alma sofre como uma terra
árida à espera da água. Somos feitos assim.
As consequências desta
propriedade da alma, repercutam-se de forma consciente no espírito. O nosso
coração busca um amor infinito e esse amor não é senão Deus, mesmo se o
ignoramos. A inteligência busca o conhecimento do que é verdadeiro e essa luz
sem limites não é senão Deus. Na terra, não sentimos senão pouco, esta sede,
este fogo. Com efeito, devido a
múltiplas ocupações exteriores, é possível distrair-nos e pensar noutra coisa.
Aliás, muitos homens passam a vida a fugir desse fogo que sentem confusamente
prestes a aparecer[132].
O fogo que trazemos em nós,
quando estamos longe de Deus, é fonte das mais belas obras poéticas, porque os
artistas têm a capacidade de sentir a tensão para… “algo de ignorado e
ausente”: amor, beleza, eternidade, todas essas coisas sagradas que não são
senão Deus.[133]
Aqueles que se suicidam, são
muitas vezes empurrados por este fogo, que se tornou de tal forma consciente,
que se transforma em desespero: “o amor não existe”. Não temos que querer mal a
Deus por este sofrimento que corrói as nossas vidas. Ele não nos criou para sofrer,
mas para nos dar gratuitamente a Visão beatífica. Depois da morte, quando o
corpo desapareceu, não existe mais nenhuma forma de asfixiar este fogo. Toda a
ausência de Deus é sentida como uma dor, um mal-estar, um vazio, um fogo e um
oceano de gelo inacreditavelmente mais doloroso que tudo quanto possamos
imaginar na terra. É este fogo, como veremos, que purifica a alma no
purgatório.
No inferno, é também este fogo da
alma ligado à ausência de Deus, que tortura os condenados. Mas a situação é
completamente diferente do purgatório, onde se ama a Deus. Toda a natureza (a raiz do ser) dos condenados deseja
Deus. Permanecem homens, portanto, feitos por natureza para o Amor e a Luz. Por
isso, ardem de angústia e solidão. Mas a
escolha livre da consciência e da vontade está feita de tal forma, que
preferem antes sofrer esta tortura do seu ser eternamente, que arrependerem-se.
Decidiram de maneira definitiva e lúcida, jamais aceitar as condições da Visão
de Deus, a saber, a humildade e o amor. Não cedem e andam à volta do vazio das
suas vidas. O seu sofrimento explica-se por essa falta natural junta a essa recusa voluntária,
livre, de Deus.
Estas duas orientações são
contrárias. A liberdade opõe-se ao ser. O atrito destas duas orientações
contrárias, põe-nos em fogo.
Este fogo é profundamente
espiritual. É a pior dor que se possa imaginar, porque é uma ausência de
sentido da vida. O fogo não é sensível, senão em segundo lugar. Os mortos
conservam o psiquismo, dissemos. O fogo da alma espalha-se nos sentimentos, bem
antes da ressurreição, através de toda a espécie de paixões, angústias,
furores.
O verme roedor do remorso[134]
A primeira consequência do fogo é
que ele obceca sem cessar o pensamento dos condenados. Imaginemos a seguinte
cena, digna de Dante. Eis um condenado. Escolheu rejeitar Deus e o seu pedido
de humildade e de amor. Voltou-se para o inferno por obstinação, decidido a
jamais ceder no seguinte ponto: “Opto por
uma vida de prazeres eternos. Tenho direito a ela, porque fui criado livre. Mas
nunca, porque sou alguém de digno, me rebaixarei ao arrependimento, ao amor
para o obter no paraíso.” A sua escolha lúcida foi ratificada. Sabe o que o
espera no inferno.
Portanto, todos os dias corre
atrás da sua única vontade, os prazeres. Encontra um outro condenado, tão
egoísta quanto ele. Propõem-se mutuamente um acto de luxúria. Tentam-no. Mas o
prazer nunca vem. A sua fonte está como que seca. A cólera perpétua, a
obsessiva procura de si mesmos, torna a carne enrugada e triste. Tudo é
repugnante e se transforma em sofrimento.
Então, aparece o verme roedor do
remorso. O remorso é absolutamente diferente do arrependimento. Imediatamente
antes da sua execução, um padre perguntava a um criminoso se lamentava o
assassínio selvagem de uma miúda. Respondeu sim. O padre acreditou num primeiro
gesto de arrependimento. Estava enganado. O condenado acrescentou: “Deixei-me
apanhar. Se tivesse sido mais prudente, não estaria onde estou.” Igualmente, os
condenados lamentam amargamente sofrer (o remorso), mas não param de blasfemar
contra o Espírito Santo: “Antes voltar ao nada que amar dessa forma tão
humilde! (recusa do arrependimento). Para não confundir arrependimento e
remorso, basta imaginarmos os condenados como criminosos que lamentam ter sido
metidos na prisão, mas preferem antes lá ficar, que arrependerem-se do seu
crime.
O choro e o ranger de dentes[135]
Quando se trata de realidades
espirituais, a Escritura tem por hábito de se exprimir por metáforas. Torna
mais acessível aos homens, realidades que, por natureza, os ultrapassam. É
assim que “o braço de Deus” não
significa que Deus tenha uma braço como nós, mas que tem o poder de agir no
mundo. O mesmo se passa com o choro e o ranger de dentes. Exprimem, antes de
mais, sob uma forma sensível, um estado de espírito e do psiquismo dos
condenados, mesmo se, depois da ressurreição dos corpos, tomarem um verdade
própria, uma vez que os pensamentos e a sensibilidade das paixões se
repercutirão mesmo nos actos exteriores do corpo.
Antes, podemos dizer que os
condenados choram e rangem os dentes, de uma forma passional. Pelo choro, a
Escritura quer exprimir o sofrimento extremo provocado pelo fogo do inferno e
pelo remorso, porque é pelas lágrimas que se exprime habitualmente o
sofrimento. Pelo ranger de dentes, quer exprimir o estado permanente de revolta
e de rancor contra tudo o que se opõe à sua vontade perversa. Revoltam-se em
particular contra a pena do lugar material do inferno que, ao impedi-los de
prejudicar os vivos, impede-os de agir à vontade no mundo. Revoltam-se também
contra as vontades de Deus que sabem ser a causa primeira do seu
aprisionamento.
Como tudo quanto diz a Escritura
a propósito do inferno, as trevas exteriores significam, antes de mais, uma
pena espiritual, mesmo se tomam, depois da ressurreição da carne, um
significado corporal.
Assim, a luz e as trevas, são
relativas a um bem da inteligência, a saber, ao conhecimento que é uma luz para
o julgamento. Devemos, pois, dizer que os condenados, depois do seu julgamento,
conhecerão certas coisas e ignorarão outras.
Conhecerão tudo o que é
necessário à justiça da sua sentença eterna. Assim, um condenado tem de saber
porque é que foi condenado e a que pena está condenado. Esta ciência, os
condenados recebem-na antes mesmo do juízo final, e recebem-na em plenitude
pela aparição d humanidade Santa de Cristo. Sabem, pois, e não o esquecem
nunca, que Deus existe, uma vez que propõe aos humildes a visão da sua
essência, que reprova os orgulhosos e os castiga com as penas eternas do
inferno. Experimentam, aliás, estas penas na alma a cada instante. Sob esta
perspectiva, os condenados não está nas trevas.
Os condenados fogem da presença dos santos do Céu
No entanto, depois de terem sido
mergulhados na separação de Deus, os condenados não podem conhecer mais nada do
mundo exterior ao inferno, salvo se uma disposição particular da misericórdia
ou da justiça divina, decide provisoriamente doutra forma. Mesmo neste caso,
podemos dizer que estão nas travas exteriores porque, se vêem a felicidade dos
eleitos, são incapazes de lhe conhecer a causa, que é Deus. Esta visão é antes
fonte, para eles, de um acréscimo de sofrimento, por causa da inveja que os
devora. É por isso que não é dada a todos sem excepção, senão uma vez, na
altura do julgamento geral que manifestará aos olhos de todo o universo, os
segredos mais escondidos, o bem e o mal do coração de cada um. É pois por
misericórdia que Deus permite que os condenados fujam livremente da visão do
festim eterno dos eleitos, para não multiplicar inutilmente o choro e o ranger
de dentes.
… e a recusa em viver nos locais desertos
No entanto, os condenados não
desejam fugir para os locais desertos. Querem ocupar-se, agir, para escapar à
consideração eterna das suas obsessões. É esta ausência de Deus e o fogo que
daí resulta, que empurrou outrora os demónios a suplicar Jesus que os enviasse
antes para um rebanho de porcos, que para o inferno[136]. Toda a actividade
exterior, mesmo o facto de fazer mal, alivia os condenados da perpétua obsessão
da sua angústia; o inferno não é, de facto, senão o seu próprio coração vazio
que não consegue ser preenchido pela presença egoísta dos outros condenados.
O tanque de enxofre e o fogo físico[137]
O medo maior de um condenado, é
encontrar um santo do Céu. A humildade e a felicidade que irradiam os
companheiros de Deus, põem-no doente. A simples evocação dessa presença
dilacera-o. Há poucas hipóteses disso acontecer. O espaço é imenso na casa de
Deus. Antes como depois da ressurreição da carne, o lugar do além será o
universo no seu conjunto. Mas, por gigantesca que seja esta imensidão, os
santos não cessarão de percorrer, qual chamas rápidas, extasiando-se com as
maravilhas inventadas por Deus, acrescentando a isso as suas próprias
construções.
Os condenados estão, pois, no que
toca ao lugar da sua morada no outro mundo, dilacerados entre dois desejos:
ocuparem-se e nunca encontrar essa gente radiosa do paraíso, cuja humildade os
enraivece. Para evitar todo o encontro desastrado, onde se poderão refugiar os
condenados? Que recantos secretos procurarão para jamais serem confrontados com
o que os enraivece? Alguns teólogos de outrora, pensavam no coração inflamado e
tenebroso dos astros. Não é totalmente absurdo.
Se a psicologia dos condenados os
conduz a este extremo, então é a própria letra dos Evangelhos, no sentido mais
material, que será realizada: “A Besta
foi capturada, com o falso profeta - aquele que realizou ao serviço da Besta
prodígios com os quais transviava as pessoas que receberam a marca da Besta e
os adoradores da sua imagem -, foram lançados ambos, vivos, no tanque de fogo,
de enxofre em brasa.” Viverão num tanque material de fogo. “Porque, na
verdade, vos digo: antes que passem o céu e a terra, nem um i, nem um ponto do
i, não passará da Lei, antes que tudo isto não se tenha realizado.”[138]
Há muitas almas no inferno? Todas
as opiniões foram defendidas. Alguns afirmam, sem ambiguidade, que aqueles que
se condenam são a maioria, segundo esta palavra de Jesus: “É largo o caminho que conduz à perdição e são numerosos aqueles que
o seguem. Mas é estreito o caminho que conduz à salvação e muito poucos o tomam[140].”
É verdade que a experiência de todos os dias, parece confirmá-lo: entre os
próprios cristãos, quantos descobriram realmente a existência da oração,
condição imperativa para a existência de uma verdadeira Vida divina? Mas é
excessivo afirmar que todos aqueles que ainda não nasceram para esta vida ou a
esqueceram, são condenados para eternidade. Uma coisa é tomar o caminho da
perdição, outra a de aí permanecer obstinadamente, na hora da morte. Outros, ao
contrário, afirmam que ninguém vai para o inferno, que os próprios demónios
serão salvos um dia, porque Deus é amor. Esta opinião engana-se de perspectiva.
Não é Deus que quer o inferno, mas é o homem e o demónio que o criam e se
fecham nele. Mesmo que Deus se obstinasse a propor aos condenados o perdão,
perseguindo-os até ao fundo do seu egoísmo, não obteria senão desprezo. Esta
perseguição seria inútil e fonte para eles de sofrimento suplementar, porque é
justamente o facto de Deus ser amor, que os rói.
Parece que a verdade estaria
antes aqui. Se observarmos os homens, apercebemo-nos que entre os cristãos,
como entre os outros, muito poucos escolheram viver da procura exclusiva da felicidade dos outros (que
esse outro seja Deus ou o próximo). Os seres dotados duma tal bondade e
humildade são raros. Igualmente, muito poucos homens são capazes duma procura
exclusiva do que lhes sugere o egoísmo. Existe sem dúvida entre os crentes,
como entre os ateus, seres de coração definitivamente endurecido, mas a
maioria, a imensa maioria não vive do egoísmo senão por ignorância dos
projectos de Deus segundo esta palavra de S. Paulo[141]: “Comamos e bebamos, porque amanhã
morreremos.” Outros são levados pela fraqueza da natureza e tornam-se
escravos daquilo que supunham ser necessário à felicidade: prazeres, honras,
poder. Cada alma humana realiza-se em volta de intenções incessantemente
modificadas pela vida. A maioria de nós passa de um egoísmo atento aos outros,
a uma atenção aos outros misturada com a busca de si mesmo. Definitivamente,
somos tíbios.
Em conclusão, podemos dizer que
bem poucos homens vão para o inferno porque a blasfémia contra o Espírito Santo
implica um orgulho bem difícil de conservar no final de uma vida na terra e
diante da aparição gloriosa de Jesus. Bem poucos homens vão directamente para o
paraíso, porque a pequenez total é rara. Curiosamente, no entanto, ela é mais
frequente entre os pecadores esmagados pela vida, que entre os crentes demasiado
seguros da sua perfeição: “As prostitutas
e os pecadores entrarão primeiro no Reino dos Céus”. Com efeito, a
humildade, mesmo se tem a sua origem na humilhação e não na frequentação de
Jesus, dispõe à salvação. O mesmo se passa com todas as formas de bondade, quer
seja puramente filantrópica, budista, muçulmana ou marxista, porque segundo a
palavra de Jesus[142]: “O que fizerdes ao mais pequeno dos meus, foi a mim que o fizestes.”
No paraíso, veremos prostitutas cheias de uma glória imensa e teólogos da
Igreja serem muito pequeninos, por terem gasto demasiado temo com conversa.
Apenas Jesus nos pode salvar, mas ele não eleva senão os humildes.
Quanto à grande maioria dos
homens, salva-se, mas depois de um tempo de purificação. A maioria d nós
aprenderá no purgatório a amar com
limpidez, sem retorno sobre si mesmo. Todas as nossas obras que não tiverem
sido construídas com o ouro da caridade, mas com a madeira e a palha do pecado,
serão purificadas.
(Coisa certa)
A existência do purgatório excita
paixões, mesmo na Igreja católica. Desde os anos 1950, muitos teólogos da moda
deram-se ao prazer de ensinar que se tratava de uma invenção da Idade Média. É
nítido que foi no século XIV que os sucessivos papas o definiram solenemente. O
papa Clemente VI escreve[144]: “Acreditamos que é ao purgatório que descem as almas daqueles que
morrem em estado de graça e que ainda não satisfizeram pelos seus pecados,
através de uma completa penitência. Da mesma forma, acreditamos que aí são
atormentadas por um fogo durante um tempo e que, assim que purificadas, antes
mesmo do dia do juízo, alcançam a verdadeira e eterna bem-aventurança que
consiste em ver Deus face a face e a amá-lo.”
Martinho Lutero fez da negação do
purgatório um dos seus cavalos de batalha. Mas não o fez senão tardiamente, por
uma razão que pretendeu ligada à sua fidelidade à Bíblia. Da facto, foi por uma
razão muito diferente, teológica e não escriturária.
A Sagrada Escritura sugere, com
efeito, em vários sítios, a existência duma purificação possível depois da
morte. O Livro dos Macabeus não é reconhecido pela Reforma. No entanto, fala
dessa purificação explicitamente: “É um
santo e salutar pensamento, rezar pelos defuntos, a fim de que sejam libertos
dos seus pecados.[145]”
S. Paulo, na epístola aos Coríntios[146], tem uma linguagem mais
figurativa para a descrever: “Quanto ao
homem que construiu a sua casa com madeira, feno ou palha, será salvo, mas como
através de um fogo.”
Lutero era monge. Desde a
juventude, tinha vivido anos de angústia. Estava obcecado pela incapacidade de
destruir os seus pecados dominantes. Ora, acreditava sinceramente, apoiado na
palavra dos seus mestres, que não se podia ser salvo sem ser moralmente
perfeito. Era uma teologia “farisaica”. A experiência da confissão, praticada
no seu convento agostinho, não lhe trazia nada. Longe de o fazer descobrir a
misericórdia de Deus, colocava-o face à sua imperfeição. Confessava sempre os
mesmos pecados e, perante o pouco progresso, pensava-se condenado. Então,
encontrou uma palavra de S. Paulo:
“Porque nele a justiça de Deus se revela da fé à fé, como está escrito: O justo
viverá pela fé.” Foi a iluminação da sua vida. Baseou toda a sua relação
com Deus na intuição seguinte: “Para ser salvo, basta ao homem colocar a sua
confiança (a sua fé) em Deus. Nada mais lhe é pedido porque o homem não pode
fazer absolutamente nada por si mesmo.” A descoberta libertou-o de todas as
suas torturas morais. Finalmente, tinha aí encontrado a paz. “Pouco importa o
meu pecado, dizia ele, estou salvo porque Deus me salva. Basta-me ter aí a
plena confiança.”
Desenvolveu de seguida, toda a
lógica da teologia reformada. Rejeitou o purgatório, antes como depois da
morte, por causa da lógica da sua posição. Se o homem não pode fazer nada por
si mesmo, por causa do pecado que destruiu totalmente a sua capacidade de agir
em ordem à sua salvação, então não pode existir nenhuma purificação. O homem
foi reduzido ao estado duma criança e a sua única participação na salvação
consiste em deixar-se levar para o Céu, abandonando o peso de morte da sua
alma, com confiança, nas mãos de Deus que o agarra.
(Coisa certa)
Para os católicos e ortodoxos, a
salvação vem, sem dúvida, de Deus. É Ele o primeiro a vir buscar o homem. Mas,
ao comunicar-lhe a sua graça, volta a pô-lo de pé. Permite-lhe uma verdadeira
amizade. Esta amizade deve ser recíproca, com todas as qualidades
surpreendentes da amizade humana. Faz-se etapa por etapa, exactamente como num
casal, o amor não pára de evoluir e, normalmente, de se aprofundar. O jovem
cheio de delicadeza que não actua senão levado pelo prazer sensível que a
presença da sua amiga suscita, ama menos que o homem velho, fiel e indiferente
aos prazeres, quando está à cabeceira da esposa que adoeceu. Da mesma forma, no
final da purificação, o homem torna-se igual a Deus, no sentido em que Deus
escuta o seu amigo, como o amigo escuta Deus.
Esta teologia impressionou os
Padres da Igreja ao ponto de verem as etapas sucessivas que conduzem à amizade
perfeita por Deus, na imagem da escada de Jacob. O livro do Génesis conta que o
neto de Abraão, Jacob, teve um sonho[147]: “Eis que uma escada estava colocada na terra e o seu extremo atingia o
céu, e anjos de Deus subiam e desciam! Eis que Javé estava diante dele e lhe
disse: ‘Eu sou Javé, o Deus de Abraão teu antepassado e o Deus de Isaac. A
terra sobre a qual te deitaste, dou-ta a ti e à tua descendência.” Trata-se
aqui, segundo os Padres, da vida humana na sua progressão, passo após passo, em
direcção à visão de Deus.
(Coisa provável)
Ao escavar na tradição mais
longínqua da Igreja, conseguimos identificar a existência de seis moradas do
purgatório. Trata-se de seis etapas sucessivas. O homem não é obrigado a passar
por todas. O essencial é que, no final, a amizade (Ágape) por Deus e pelo
próximo, se tenha tornado perfeitamente humilde.
Os dois primeiros purgatórios são
caracterizados pelo facto do Céu e dos seus habitantes se esconderem. São os
purgatórios do “silêncio de Deus”[148], os purgatórios da sombra.
1. A primeira morada é a
vida terrestre. Sim, a vida na terra não é outra coisa senão o primeiro
purgatório e é onde estamos. É mesmo uma das mais terríveis, no sentido em que
o homem nem mesmo está seguro da sua simples sobrevivência depois da morte.
Está na ignorância total… excepto se aceita acreditar: “Feliz aquele que acredita sem ter visto”[149]
2. A segundo, é o domínio das almas errantes. É um lugar que a Bíblia chama “o país das sombras[150]”,
ou noutro local, o “sheol”[151]. O homem constata que a morte não conduz ao nada. Neste sentido,
não tem mais medo. Mas o sheol é uma grande provação, porque o homem vagueia
sem finalidade numa solidão que parece jamais ter fim. Está inquieto e treme
perante a ideia que Deus ou os deuses são forças hostis de que ignora a
natureza.
Os quatro últimos purgatórios (a
partir do aparecimento do Messias glorioso), são caracterizados pelo facto de
um conhecimento total da Revelação ser dado. São os purgatórios de luz. As almas que aí permanecem, estão enamoradas
por Deus. Estão conscientes da imensidão da sua indignidade. Sofrem de um
imenso arrependimento, por causa do seu grande amor. Deus falta-lhes, estão
loucas por causa da sua ausência, o que faz com que estes quatro purgatórios
sejam como um fogo. No entanto, estão na alegria, certas de que um dia, assim
que forem humildes, verão Deus.
3. O primeiro é vivido na hora da morte. Já o descrevi no
capítulo 1. Trata-se muito simplesmente da Aparição
de Cristo, acompanhado dos santos e dos anjos. O poder da sua visão,
provoca um tremor apocalíptico na alma, mais poderoso que tudo. À luz da pureza
da humildade e do amor do Messias, a alma fica chocada com as suas próprias
trevas. O efeito é a violenta purificação do que resta das suas ilusões.
4-5-6. Nos três últimos, entramos nos três purgatórios místicos descritos por Santa Catarina de Génova[152]. As almas, totalmente
enamoradas por Deus, passam da vontade de serem um dia dignas dele, à certeza
de que o não serão nunca. Tornam-se verdadeiras, quer dizer, humildes.
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7- Visão beatífica |
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6- «Senhor, eu não sou digno…» |
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5- Usura da espera |
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4- Vontade de ser digno da Vida |
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3- Aparição de Cristo |
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2- Limbo |
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1- Vida terrestre |
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Não é necessário subir um a um
todos os degraus desta escala. Duas regras, apenas, parecem absolutas:
1- A Visão de Deus, finalidade
desta passagem, não é dada senão àquele que se tornou perfeitamente humilde e
perfeitamente amor. Algumas almas alcançam esta pureza de coração na terra.
Outras, não conhecem nenhum momento de vida terrestre consciente. É o caso das
crianças mortas prematuramente.
2- Deus aparece a todos os homens
sob o véu da sua humanidade (etapa 3) antes de se dar sob a forma da sua
divindade (etapa 7). Ninguém escapa a esta etapa que permite uma escolha livre.
1. O primeiro grau do purgatório, a vida na terra[153]
(Coisa certa)
É de notar que estes seis
purgatórios estão marcados pelo selo da cruz, do sofrimento. Poucas religiões
dão uma explicação do sofrimento. O islão apela para a confiança e promete a
explicação para o além. O budismo dá sobretudo uma explicação filosófica e
panteísta. Quanto ao catolicismo, ao contrário das Igrejas protestantes, propõe
ao nível do Magistério romano e dos seus grandes santos, uma teologia unificada
(muitas vezes criticada pelos próprios fiéis).
O Evangelho eterno de Deus dá
sentido a tudo em teologia cristã[154]. Concretamente, ninguém
pode entrar na vida eterna nestas condições: a humildade e o amor exigidos são
impossíveis ao homem. É possível sermos um pouco humildes e capazes de amar,
por nós mesmos. Basta considerar com realismo a pequenez da nossa condição
humana. Mas é impossível ser totalmente humilde e totalmente amor, na medida
querida por Deus e revelada pela vida de Jesus. Ele morre por gente que
escarnece dele. Salva-os no próprio momento em que o desafiam “para descer da cruz uma vez que salvou
outros.[155]” Quem
é capaz de um tal amor? Mas, explica Jesus depois de uma pergunta dos
discípulos sobre este tema, não é impossível a Deus[156].
A primeira etapa utilizada por
Deus, consiste em fazer passar o homem pela vida na terra[157]. Esta vida é,
constatamo-lo, obrigatoriamente marcada pelo sofrimento, uma vez que é frágil,
dependente das vicissitudes do acaso e que termina pela morte. O acaso não
existe em Deus, para quem não há futuro. Todos os acontecimentos são conhecidos
por ele “desde sempre” e a cada instante. Mas quis que ele existisse no nosso
tempo, ao ponto de uma série de causas sem relação, poderem cegamente quebrar
existências. Além disso, a existência de Deus e de uma sobrevivência depois da
morte, podem ser postas em dúvida. O silêncio de Deus e do Céu, são uma das
provações mais espantosas da terra. Muitos, aliás, concluem, não sem um certo
bom senso: “Deus não pode existir e ser
amor. O mundo não seria assim”.
No entanto, se estudarmos com
atenção os escritos da maioria dos teólogos canonizados pela Igreja, a vida na
terra e os seus sofrimentos, explicam-se justamente pelo mistério da Trindade[158].
A humanidade inteira, pode ser
comparada ao Gólgota, quer dizer à colina do calvário onde foi crucificado
Jesus com dois bandidos. Uma parte de nós (a parte orgulhosa e egoísta) está
representada pelo mau ladrão.
Blasfema e insulta pelo seu sofrimento. Morre como os outros e, ao morrer, toca
com o dedo na miséria que verdadeiramente é. Esta humilhação tem hipótese de
criar nele um pouco de humildade, o que é já um primeiro passo para a salvação,
tal como expusemos acima. Desta forma, ao ser esmagado, apesar da revolta, o orgulhoso
que dorme em nós, pode ser um pouco humilhado. Não é isto uma disposição para a
humildade?
O bom ladrão representa o que é recto em nós. Com
efeito, ele já é justo: “Pago pelo que fiz. É justo.” No seu sofrimento,
volta-se para Deus e chama por uma salvação, apesar do seu pecado. É humilde.
Deseja a vida. O sofrimento aumenta-lhe o desejo duma salvação. Tê-la-á
certamente, imediatamente depois da morte, promete-lhe Jesus. O sofrimento
provoca no justo um apelo à esperança. É melhor que uma simples humilhação. Na
hora em que Cristo lhe aparece, o homem sedento precipita-se para ele, uma vez
que, sem o saber, é por ele que chamava.
Quanto a Jesus, representa os
cristãos, quer dizer, aqueles que sabem que não há senão um mandamento: “amar
Deus e o próximo” e que se esforçam para o viver. Ser cristão apresenta, no fim
de contas, uma única vantagem certa. Sabemos aonde vamos e vivemo-lo já. Poucos
retiram daí as consequências: fazer da vida um acto de oferenda a este amor.
Mas isto chama-se santidade.
O sofrimento é, pois, um mal, mas
o seu efeito pode ser um bem, afirma João Paulo II[159]. O sofrimento, mesmo
quando não aceite, aprofunda o coração no sentido da humildade (não sou nada) e do desejo (desesperado
por vezes) de um amor que salve.
Esta análise permite compreender
muitos dos ensinamentos de Jesus:
“Os primeiros serão os últimos”, pela mesma
razão. É difícil, quando recebemos a glória na terra, compreender que não somos
grande coisa (humildade).
“É mais difícil a um rico entrar no Reino de Deus que a um camelo
passar pelo buraco de uma agulha”. Aos olhos de Jesus, um rico
entende-se como um rico no plano do coração. A riqueza material, o poder, na
medida em que tornam arrogantes, são um perigo para a vida eterna. No fim de
contas, uma criança morta pela Sida no Ruanda, estaria melhor disposta à
humildade que um rico homem de negócios ocidental (no século XIX, em nome desta
teologia, certos patrões serviam-se deste tipo de afirmações para justificar a
escravatura dos operários). Vemos a que ponto a mensagem evangélica contém um
escândalo para a sabedoria natural dos habitantes deste mundo.
“Se não vos tornardes como estas criancinhas, não entrareis no
Reino de Deus”. Interpretação evidente no plano do simbolismo da criança.
Atenção, esta teologia é um escândalo,
diz S. Paulo[160]:
“Nós anunciamos um Cristo crucificado,
escândalo para os Judeus e loucura para os pagãos, mas para os que foram
chamados, Judeus e Gregos, é Cristo, poder e sabedoria de Deus.”
Em teologia cristã, isto parece
lógico. Mas, quando aplicado ao concreto do destino de cada um, torna-se
insuportável, ao ponto de S. Paulo falar do “escândalo
da cruz” e de Santa Teresa de Ávila dizer: “não admira que Deus tenha tão poucos amigos”. Eis, no exemplo do
martírio das crianças mortas por Marc Dutroux[161], no que isto se torna[162]: É possível dizer que
hoje, onde elas se encontram, as crianças não lamentam ter passado por tal
sofrimento, não por causa do sofrimento em si, que é um mal, mas por causa dos
efeitos de maturação do coração que ele produziu. O Apocalipse de S. João diz: “Não recordarão mais as lágrimas deste
mundo. Alegrar-se-ão com a acção de Deus porque lavou as nossas vestes no
sangue de Jesus”. No entanto, foram totalmente esmagadas pelo sofrimento.
Morreram na miséria, sem terem resposta de Deus à súplica das sua oração.
Podemos dizer que a sua morte se assemelha à de Jesus, uma vez que foram
totalmente destruídas no plano físico, psicológico e espiritual. Mas, no
preciso momento da sua morte, todo o Céu as veio buscar. Viram Jesus, acompanhado
dos anjos e dos santos, dos seus parentes já falecidos. Foi um acolhimento de
uma beleza e de uma ternura inauditas. Compreenderam o seu projecto, a razão
porque morreram e a razão do seu silêncio. Este amor, que nem mesmo mais
esperavam, inflamou-lhes o coração. Assim como sofreram o abandono, assim se
lançaram com força nos braços de Deus. O seu amor tornou-se intenso como o de
nenhum outro, porque a sua humildade e o seu desejo, suscitados pelo
sofrimento, tinham-se aprofundado consideravelmente. Na verdade, vemos Deus na
medida do nosso desejo de o ver (portanto, do nosso amor). Quanto mais o nosso
coração é grande (atraído pelo amor), mais ele pode ser preenchido por Deus.
Estas meninas são certamente grandes santas do Céu, junto de Deus.
Diante desta explicação, é
compreensível que alguns cristãos fervorosos se tenham podido revoltar,
rejeitar por momentos esta “paternidade de Deus”, ao mesmo tempo que lhe
compreendiam intelectualmente as razões. A sua atitude é justa. Pelo contrário,
dizia S. Paulo, é pouco inteligente esconder este escândalo da cruz.
Tenhamos cuidado: o sentido desta
teologia é facilmente deturpado. Esta teologia, quando se torna concreta, é tão
vertical e escandalosa, que poucos teólogos ousam ainda ensiná-la hoje. Apenas
o papa João Paulo II, face aos sofrimentos terríveis depois do atentado de
1981, se considerou no direito de falar dela. Por outro lado, como constitui o
cume da teologia cristã, é muito facilmente desviada do seu sentido. Podemos
compará-la a um crista entre duas vertentes duma montanha vertical: de um lado
está o sadismo, do outro o masoquismo.
Exemplo 1. Certos cristãos compreenderam mal esta
propriedade do sofrimento. Para se tornarem santos, impuseram-se sofrimentos e
múltiplas penitências. Santa Margarida Maria torturava-se voluntariamente para
ser mais humilde e para sofrer. Foi repreendida pelo seu confessor: “Isto não fomentará senão orgulho e
dureza”. Na verdade, longe de produzir humildade, um tal comportamento
produz uma impressão (inconsciente, primeiro) que somos santos, que nos
portamos bem. Isto chama-se orgulho.
Exemplo 2: O século XIX, viu uma parte do clero
pregar aos operários escravos e às mulheres espancadas, a aceitação da sua
sorte em vista da recompensa que viria um dia. Foi um erro grave que deu origem
ao marxismo e à sua condenação da religião “ópio do povo”. Produziu ainda a
ruína do casamento no século XX, fonte da escravatura feminina. Esses padres
cometiam um erro teológico, porque a vida não consiste apenas em amar Deus no
paraíso, mas em amar o próximo e a justiça na terra. Os operário não tinham de
aceitar a escravatura, e isto na qualidade de cristãos (ver a encíclica do papa
Leão XIII). As mulheres não tinham de se fazer servas submissas, mas esposas
complementares, isto pelo próprio amor ao marido.
À luz desta apresentação da vida
na terra, é possível compreender a que ponto o aborto voluntário provoca no
magistério da Igreja, uma verdadeira dor. Ao privar voluntariamente uma criança
da sua vida na terra, os cristãos pensam por vezes agir bem. Não são
dispensados de uma vida de sofrimento? As consequências para as crianças são,
no entanto, irrecuperáveis, em parte. Se a Igreja católica pelo seu Magistério,
se opõe com tanta força ao aborto, é que ela acredita com todas as suas forças,
que esse ser que fazemos desaparecer, se bem que dotado aparentemente de vida
biológica apenas, seguramente que já recebeu a sua alma espiritual. Essa alma,
sede da inteligência e do amor, não é outra coisa senão o que sobrevive à
morte. Abraão, Adão e Eva existem realmente, pensam e amam porque são “alma”. A
sua existência não pode ser posta em causa no plano da revelação. Cristo falou
disso várias vezes explicitamente, em particular, dizendo ao homem crucificado
à sua direita “hoje mesmo, estarás comigo
no paraíso” (subentendido: sem o teu corpo).
Uma dúvida subsiste, no entanto,
no ensinamento da Igreja: quando é que esta alma criada por Deus é dada à
criança? No século XII, S. Tomás de Aquino inclinava-se para o sexto mês depois
da concepção. Não foi esse o momento em que João Baptista, visitado por Maria,
tremeu no ventre da mãe? Se for assim, o aborto até ao sexto mês não seria um
“crime abominável”. Não seria um crime no sentido estrito, um homicídio, mas um simples pecado contra
a vida que está para vir e que ainda não veio. S. Tomás não tinha na época
todos os instrumentos da fé de que dispomos hoje. Em 1854, o Papa Pio IX
proclamava como uma certeza vinda do alto, a Imaculada concepção da Viragem
Maria. Esta revelação parece sem relação com o aborto. Não é assim. O facto de
Maria ser imaculada na sua concepção, significa que vivia, desde a concepção,
da presença de Deus, da mesma maneira que Eva vivia no jardim do Éden. Se Deus
estava presente, é porque Maria o recebia na sua alma. O facto, por outro lado,
da concepção da Maria ser festejada em 8 de Dezembro, ou seja, nove meses antes
do seu nascimento, não deixa qualquer dúvida sobre o que se deve entender por concepção. Maria é da raça humana, como
toda a criança que vai nascer. Tudo indica, pois, que, para ela como para nós,
a alma é dada por Deus no momento da concepção.
Nesta perspectiva, percebemos
como, para o Magistério, o aborto qualquer que seja, mesmo o da pílula do dia
seguinte, toma uma dimensão vertiginosa. Não é apenas um pedaço de carne que
desaparece, mas um verdadeiro ser humano que
dormia ainda, uma criancinha. Não há nenhuma diferença real entre os santos
inocentes do Evangelho (mortos por Herodes) e estas crianças. E mesmo se as
mães que praticam este acto não sabem o que acontece à criança, na realidade,
trata-se de um homicídio. Não há pecado da mãe se ignora o que faz, mas
trata-se de dar a morte a um homem.
Que acontece a estas crianças?
Santa Teresa de Lisieux dizia, com razão: “Uma criança, nunca vai para o
inferno[163].
Mostrava que a hipótese do Limbo eterno, proposta por Santo Agostinho,
engana-se sobre Deus. Deus não tem necessidade de que uma criança seja
baptizada com água para lhe dar o baptismo da sua presença. Ma todo o homem,
qualquer que ele seja (mesmo um embrião), entra no reino de Deus na medida
precisa do seu desejo de Deus. Quanto mais o coração do homem ama Deus e o
deseja ver, mais o vê. Ora, existe um caminho cuja utilidade é aprofundar o
desejo do coração do homem, é o da vida na terra. A vida na terra é portanto útil
aos homens. Se a vida na terra é querida por Deus, é que é útil. Quanto à
criancinha morta antes de ter vivido, quando é acolhida pelo mundo dos santos,
certamente que não o rejeita. Mas vai para lá com um pequeno desejo inocente,
com um coração que não teve tempo de ser preparado. A sua eternidade fica
directamente modificada. Permanece para sempre, num certo sentido,
subdesenvolvida ao nível do desejo do coração.
O mesmo se passa com o suicídio[164] ou a eutanásia. Quando
um crente sincero, chega às portas da morte, que o sofrimento físico e moral o
atingem, vai tentar aliviá-lo (não se trata de sermos masoquistas, o masoquismo
assim vivido é muito presunçoso…). Mas que motivo pode existir nele para
continuar a viver?
Como para todo o homem, pode por
vezes não mais existir motivo natural: amor à vida, presença dos parentes, etc.
Mas pode subsistir um motivo sobrenatural. A morte é escola de humildade.
Ninguém conhece verdadeiramente quem é, se nunca sofreu. O tempo que precede a
morte parece mesmo ser sentido por alguns santos, como a oportunidade última de
serem salvos do seu orgulho incontrolável. O exemplo do cardeal de Lubac, é
significativo. Este grande pregador do século XX foi afectado por deficiências
humilhantes, no final da vida, tal como incontinência. Escreveu ao seu
confessor jesuíta: “As minhas deficiências são a minha última tábua de
salvação. Graças a elas, compreendo agora a que ponto a minha alma estava em
perigo.” Tinha consciência, de tal forma o orgulho de ser conhecido o tinha
alimentado, de que poderia encontrar-se entre aqueles de quem Jesus fala: “Muitos me dirão nesse dia: Senhor, Senhor,
não foi em teu nome que pregámos? Em teu nome que expulsámos demónios? Em teu
nome que fizemos muitos milagres? Então, dir-lhes-ei na cara: nunca vos
conheci; afastai-vos de mim, vós que praticais a iniquidade.[165]”
Quer dizer que o cristão não pode
ser tentado a suicidar-se num caso destes? É evidente que não. O cristão é
homem. Não tem senão uma coisa a mais que o não cristão: sabe a Quem ama. Santa
Teresa do Menino Jesus foi atingida pela tuberculose asfixiante, separada de
toda a consolação vinda de Deus e das suas irmãs, esta pequena religiosa teve
vontade de se suicidar. Não o fez pela simples fidelidade à sua fé. É patrona
dos desesperados.
2. O Limbo das almas errantes[166]
(Coisa indecisa)
As religiões mais primitivas, do
Oriente ao Ocidente, eram animistas. Ensinavam que as almas dos mortos, longe
de partir para um outro mundo, permaneciam na terra onde andavam errantes sob a
forma de sombras. Assustados com estas presenças, os vivos confiavam aos seus
sacerdotes (os xamanes), o encargo de afastar os mortos. Utilizavam uma série
de ritos a fim de que instalassem a sua errância sem fim, nos lugares desertos,
nas florestas e nos vales afastados. Job testemunha esta crença em várias
passagens[167]:
“Como a nuvem se dissipa e passa, quem
desce ao Sheol não torna a subir. Não volta a habitar a sua casa e a sua morada
não o conhece.” Os antigos europeus conservavam esta crença. Quando eram
testemunhas de alguma fenómeno de casa assombrada, punham a hipótese da
presença de uma “alam penada”.
A Igreja católica não ignora esta
tradição. Não a ensina explicitamente pela voz do Magistério. Reconhece que se
trata de casos reais, uma vez que prevê no ritual a oferta de missas e de
orações especiais em casos semelhantes. Possui um procedimento específico face
aos fenómenos das almas penadas. O interrogatório precede a oração que liberta
as almas da andarem errantes. Segundo alguns teólogos, uma alma penada não é
senão uma alma submetida ao purgatório, no próprio lugar em que pecou. “Alguns
mortos não passam para o outro mundo, mas permanecem no próprio lugar onde
pecaram. Isto não diz respeito a qualquer pessoa, mas unicamente a um certo
número de homens particularmente rudes no plano moral.” Quer seja um miliciano
criminoso ou um monge infiel, Deus pode, pelo poder dos anjos, mantê-lo um
certo tempo em ligação com o nosso mundo.
O fenómeno do sheol é objecto de
revelações privadas dos santos. Encontramos indícios numa época recuada da
história da Igreja. S. Bernardo, na vida de S. Malaquias, cita um. Este santo
conta que viu um dia a irmã. Tinha morrido há algum tempo. Cumpria o purgatório
no cemitério. Por causa das sua vaidade, dos cuidados que tinha tido com a cabeleira
e o corpo, tinha sido condenada a habitar na própria cova onde tinha sido
enterrada, e a assistir à dissolução do seu cadáver. O santo ofereceu por ela o
sacrifício da missa, durante trinta dias. Expirado este prazo, voltou a ver de
novo a irmã. Desta vez, estava condenada a acabar o purgatório à porta da
igreja, talvez por causa das suas irreverências no lugar santo, talvez porque
tivesse desviado a atenção dos fiéis dos mistérios sagrados, para atrair a ela
a consideração e os olhares. Estava profundamente triste, coberta de luto, numa
extrema angústia. O santo celebrou de novo por ela, o sacrifício, durante
trinta dias, e por uma última vez, ela apareceu-lhe no santuário, a face
serena, radiosa, vestida com uma veste branca. O bispo reconheceu, por este
sinal, que a irmã tinha obtido a libertação.
Que pode acontecer a um morto
para que vaguei assim pela terra? A explicação é simples. Certas pessoas são
surpreendidas pela morte quando estão totalmente apegadas à terra. Uma parábola
de Jesus ilustra-lhes a mentalidade[168]: “Havia um homem rico cujas terras tinham produzido muito. E,
perguntava-se: que hei-de fazer? Porque não tenho onde guardar a colheita.
Depois, disse consigo mesmo: eis o que vou fazer. Mando deitar abaixo os meus
celeiros, construo uns maiores e guardarei aí o trigo todo e os meus bens.
Depois, direi à minha alma: tens uma quantidade de bens em reserva para vários
anos; repousa, come e bebe, festeja. Mas Deus disse-lhe: insensato, esta mesma
noite, virão buscar a tua alma. E o que acumulaste, irá para outros.”
Quando um homem destes morre, acontece-lhe o seguinte. Acorda bem vivo.
Continua a possuir um corpo, tem mãos, olhos para ver. Mostrámos que o
psiquismo e o corpo duplo, que é a sede dessas faculdades, não é destruído com
a morte[169].
Mas quando tenta apropriar-se das suas riquezas, elas escapam-lhe. O seu ouro
não é mais palpável. Os prazeres da carne fogem-lhe também, porque perdeu o
sentido do tacto. As honras tornam-se-lhe inacessíveis. Ninguém o vê. Nesse
momento, o céu abre-se para ele. A luz de Cristo aparece e começa a exercer a
sua atracção. Qualquer homem sensato compreenderia. Abandonando os bens,
voltar-se-ia para a passagem e deixaria este mundo pelo outro. No caso que
estamos a tratar, não é assim. O apego à terra é tão grande, que parece não ver
a Luz. Pelo contrário, em pânico com a ideia de tudo perder, a alma deste homem
põe-se a andar continuamente à volta dos lugares em que viveu. Então Cristo,
respeitando a sua cegueira, apaga-se. A sua Luz desaparece provisoriamente e o
morto fica entre dois mundos.
Vemos que esta atitude não é o
caso de qualquer um. Só as pessoas extremamente mundanas ou materialistas se
podem enganar desta forma. É preciso mesmo um forma neurótica, quer dizer, doentia, de ser mundano. É preciso um tal
apego à terra que se chegue ao ponto de esquecer a consideração da aparição
visível do Céu. Todo aquele que está um pouco sensibilizado às coisas
espirituais, escapa a esta etapa do purgatório[170]. Todo aquele que
encontra um motivo psicológico ou moral para fugir ao encontro com o Amor, pode
encontrar-se neste estado. Não se deve confundir o estado destes mortos com o
dos condenados. São pessoas psicologicamente
escravas dos seus vícios, ao passo que os condenados ligam-se, com uma
liberdade perfeita, a uma escolha da vontade. As almas errantes são neuróticas,
ao passo que os condenados irradiam uma liberdade má.
Nos tempos antigos, quando a
humanidade se debatia na sua infância[171], o fenómenos do sheol
era muito mais frequente. No entanto, não era universal. Alguns mortos entravam
já num certo paraíso, ainda não total, que a Bíblia chama “o seio de Abraão”[172]. A religião do Egipto
antigo, testemunha que nessa época recuada, o homem justo não permanecia
perpetuamente errante sobre a terra. Pelo contrário, era acolhido por um deus
misterioso, chamado Anubis, e que se parece muito com o anjo da morte.
Conduzia-o ao tribunal de Osíris, esse Deus morto e ressuscitado, e pesava-lhe
o coração. Osíris e a sua esposa enamorada, Ísis, eram um prefiguração evidente
de Cristo que viria. Se o coração fosse mais leve que a pena de Maât (a
rectidão), o homem era introduzido no paraíso[173]. Nos nossos dias, o
fenómeno não desapareceu. Parece mesmo em recrudescência, de tal modo o mundo
se materializou. Uma religiosa dotada de dons de vidência profética, Clémence
Ledoux[174],
visitava, nos anos 60, o castelo de Versailles. Ficou impressionada com a visão
de numerosas almas, vestidas à maneira do grande século: enchiam tristemente
esses lugares. Tal visão nada tem de espantoso. Luís XIV tomou consciência
demasiado tarde, no final da vida, da forma como o amor das aparências tinha
mergulhado os cortesãos numa mundanidade servil.
Para estas almas começa então um
tempo de purificação. Deus respeita a sua vontade de permanecer na terra até
que queiram compreender o seu erro. O caminho espiritual é em geral muito
rápido. Excepcionalmente, pode durar séculos. É preciso que enfrentem
brutalmente a incapacidade de possuir o bem sensível que constitui toda a sua
vida. “Aí onde está o teu tesouro, aí também
está o teu coração[175]”,
dizia Jesus. Tratando-se de honras, essas almas corriam a receber mais.
Rapidamente são informadas! Assistem ao seu funeral. Lêem no pensamento dos que
assistem a que ponto tudo aquilo não passa de vento. Algumas semanas mais tarde,
descobrem-se praticamente esquecidas. Esta experiência basta à maioria.
Perturbadas pela consciência da vaidade do que adoravam, voltam-se para o
Salvador que entreviram e chamam-no. De imediato, a sua luz aparece e as leva
para o outro mundo.
Alguns mortos, são muito mais
difíceis de convencer. Por vezes, não têm qualquer ideia do que é a vida
espiritual. Totalmente materialistas, instalam-se na sua errância. Rodam e
tornam a rodar à volta do lugar onde estava o seu tesouro. Não podendo ser
vistos pelos homens vivos (excepto caso excepcional) e obcecados pelas suas
antigas posses, a sua solidão é total.
Deus permite isto, não para
castigar, mas com um objectivo pedagógico e para salvar. Ele tem tempo. Os
séculos pertencem-lhe. Sabe que nenhuma alma pode viver uma tal dilaceração
sem, pouco a pouco, se educar. Na sua solidão terrível, o espírito do pecador
aprende pouco a pouco a vaidade dos bens da terra. Compreende que o único bem é
o Amor.
Para apressar a purificação, Deus
dispõe de vários meios. O maior deles é a comunhão
dos santos. Com efeito, entre os mortos como entre os vivos, existem
pessoas de coração delicado de que ele se vai servir, às vezes, sem elas
saberem. No decurso do seu vaguear no lugar onde viveram, as almas penadas são
incessantemente confrontadas com a presença dos vivos. A sua casa passa de mão
em mão. Observam-lhes a vida. Encontram muitas pessoas materialistas e tão
perdidas quanto elas. Mas acontece que encontrem almas puras, que amam e rezam.
Vêem muito bem o que pensam os habitantes da terra. Isso intriga-as cada vez
mais, à medida que a solidão e a tristeza as mina.
Excepcionalmente, acontece que
estas almas do purgatório apareçam ou se façam ouvir aos vivos. O fenómenos é
raro porque parece dever-se a um longo esforço para influenciar a matéria. É
tão difícil a um morto produzir um qualquer barulho numa casa, como um vivo
deslocar um objecto pela força do pensamento. A manifestação das almas errantes
é boa para os vivos porque, ao constatarem os seus sofrimentos, sentem-se convidados
à conversão[176].
Infelizmente, é para muitos causa de terror, mais do que de amor. Recordemo-nos
da reacção dos discípulos de Jesus, quando o viram aproximar-se deles
caminhando sobre as águas: “Pensaram que
era um fantasma e começaram a gritar[177]”.
O fenómeno das almas penadas, quando se produz, nunca deveria assustar. Como
ter medo dessas almas que gritam o seu sofrimento? A resposta imediata deveria
ser, pelo contrário, a assistência a uma pessoa em perigo: “Estava na prisão e fostes visitar-me[178]”.
A melhor resposta consiste na instrução e na oração[179].
A instrução, a explicação paciente do sentido da
vida e do erro onde se encontram estas almas, pode provocar uma verdadeira
conversão da inteligência. Acelera uma tomada de consciência que a experiência
que têm, demora muito a provocar.
Concretamente, quando se produz
um fenómeno destes, convém sentar-se, sem medo, e dizer mais ou menos isto:
“Ficou bloqueado entre dois mundos. É um erro. Não o vai conduzir a nada de
bom. O que o atormenta é coisa pouca. Não espere inutilmente para o
compreender. Cristo, a Virgem Maria, todos os que o amaram, estão à sua espera.
Basta que chame por eles. Virão buscá-lo.[180]
A oração obtém a sua evolução através do amor
que manifesta. Estas almas solitárias ficam comovidas pelo facto de se
preocuparem com elas. Alguns santos, canonizados pela Igreja, passaram a vida
inteira a oferecerem-se por elas. Tais orações ou sacrifícios têm uma eficácia
espantosa: a alma atribulada fica comovida, como ficaria um prisioneiro que,
pela primeira vez, recebesse uma carta. Este gesto é eficaz. É tanto mais
importante quanto vem de uma pessoa que vive num purgatório, num certo sentido,
mais difícil[181].
Pode, diante da sua beleza, compreender num instante a grandeza do amor e
chamar pelo auxílio de Cristo. De imediato se encontra liberta[182].
Todas as histórias de fantasmas,
não devem ser tomadas à letra, sem uma investigação aprofundada da parte das
autoridades religiosas. Uma imaginação desenfreada pode inventar muitos
fantasmas. Os nossos antepassados supersticiosos inventavam nos seus medos,
monstros como o Ankou com o seu carro (a
Morte na Bretanha), o vampiro sedento de sangue (Roménia), os Troll’s e os
duendes (Escandinávia). Cada povo tem as suas crenças de criança. É por isso,
que antes de nos lançarmos neste tipo de apostolado, convém estar seguro da sua
realidade. Uma investigação prévia é muito útil. O Padre Emanuel Solis, no seu
ermitério alpino, foi o primeiro homem de Igreja de quem recebi um ensinamento
teológico sobre o fenómeno das almas penadas. Confesso que antes de escutar o
seu testemunho, arrumava esta questão entre os mitos supersticiosos que abundam
nos nossos meios rurais. Fiquei extremamente surpreendido em saber, nesse dia,
que a Igreja tomava isso muito a sério.
Estávamos reunidos à sua volta e
escutávamos. Contou-nos, então, que no início da sua vida de ermita, tinha
recebido da parte dos habitantes da aldeia uma velha quinta abandonada, chamada
Adoux d’Oule. Arranjou-a um pouco e instalou-se. Logo na primeira noite, apercebeu-se,
vindo do solo, de uma espécie de gemido. No dia seguinte, os gemidos
tornaram-se mais fortes, tomando, no silêncio da noite, uma intensidade ainda
mais pungente. Não se parecia nem com um grito de animal, nem com o ulular do
vento. O gemido parecia humano. Extremamente intrigado, o Pe. Emanuel decidiu
fazer uma investigação. A Igreja pede que se actue deste modo antes de se
pronunciar sobre o carácter paranormal de um fenómeno. Desceu à aldeia para
interrogar as pessoas. Soube por elas, que Adoux d’Oule era uma antiga quinta.
Durante a segunda guerra mundial, tinha sido palco de acontecimentos trágicos,
porque os milicianos tinham aí torturado, e depois executado, resistentes
(antes de serem por sua vez liquidados, na libertação). Tudo isto impressionou
o Pe. Emanuel. Estando convencido da origem paranormal dos gemidos, decidiu
oferecer três missas por intenção das almas do purgatório. Desde aí, nunca mais
ouviu barulhos anormais no seu ermitério.
Os camponeses da zona, ouviram
falar desta história. Um deles veio ter com o Pe. Emanuel para lhe contar uma
história ainda mais misteriosa. Possuía uma granja em plena montanha. Desde há
séculos, uma tradição afirmava que se viam lá, em certas noites, desfiles de
sombras, semelhantes a uma procissão de monges em hábito religioso. Ora, o
camponês afirmava ter ele próprio sido testemunha do fenómeno, certas tardes em
que tratava dos animais. O Pe. Emanuel tomou a sério esta história, a partir do
dia em que soube que essa granja se situava não longe do sítio de um antigo
priorado beneditino. O priorado tinha sido fechado no século XII, pela Abadia
mãe, por causa da decadência notória da vida monástica. O Pe. Emanuel foi por
três vezes ao local celebrar missa. Teremos de admitir que, desde há oito
séculos, as almas desses monges andavam errantes naquele lugar?
3. A aparição de Cristo (Parusia), acompanhado dos santos e dos anjos
(Coisa certa)
Mostrámos que esta Parusia se
produz normalmente na hora da morte. Excepcionalmente, é diferida por causa da
necessidade deste tempo de errância. A aparição de Cristo é o mais poderoso dos
purgatórios. O dia do Senhor faz progredir os homens mais que tudo o resto. A
luz e o amor que irradiam da sua glória, provocam um tremor apocalíptico na
alma. Para aqueles que não o rejeitam, resultam efeitos únicos para a
inteligência e para o coração.
Num instante, quatro tesouros são
dados à inteligência:
-
A pessoa compreende todo o Evangelho,
todo o peso de Luz e de amor que ele contém.
-
Descobre porque sofreu na terra: “Felizes os que têm sede de justiça, porque
serão saciados”[183].
-
Tem a visão, como por comparação, da
verdade sobre a sua alma (o grandeza do seu pecado, em particular, mas também o
que é bom).
-
Finalmente, compreende a escolha que vai
ter de fazer: o amor do próximo até ao desprezo de si ou, ao contrário, o amor
de si até ao desprezo dos outros.
No plano do coração, se esta
pessoa é justa, inflama-se de uma só vez, totalmente, no amor de Deus. Quando
vemos o Céu, amamo-lo com toda a nossa capacidade ou rejeitamo-lo para sempre.
Não mais há lugar para a tibieza. É por isso que, ao longo de toda a vida
eterna, não poderá mais haver lugar para um progresso no amor[184]. Amar de todo o coração
não permite um amor maior, uma vez que, justamente, se ama de todo o coração[185].
4, 5, 6- Os três purgatórios que se seguem à aparição de Cristo
(Coisa certa)
Vou tentar descrever agora as
três moradas do purgatório místico (Santa Catarina de Génova)[186]. Pode ser difícil
compreender como é que o poder da aparição de Cristo não é sempre suficiente
para destruir os últimos obstáculos à visão de Deus. As páginas seguintes têm
por objectivo esclarecer este facto.
A partir do momento em que o
Messias se mostrou, as almas conhecem totalmente a revelação. As que escolheram
Deus e o seu mistério, jamais voltarão atrás. Estão enamorados por Deus. São,
pois, santas, no sentido mais forte
do termo. É por isso que se chama às últimas etapas que lhes resta transpor, os purgatórios da luz. Com efeito,
algumas não entram ainda na visão de Deus. Há certas coisas que ainda põem
problema na alma, coisas que a aparição de Cristo não cura sempre. Ninguém pode
entrar na visão de Deus antes de resolver dois problemas: a humildade e a justiça.
1- A humildade, porque Deus é humilde
Quando o homem se voltou para
Deus e escolheu o caminho do amor, permanece por vezes centrado sobre si mesmo.
Continua a misturar à sua forma de o amar, muita auto-suficiência, muito
orgulho. Ainda não integrou na carne, a que ponto é um nada. Numa palavra, se
bem que ame de todo o coração, ainda não é completamente humilde.
2- A penitência porque o homem quer
aparecer sem dívida diante do Criador
Convertido e modificado, aquele
que praticou o mal, tornou-se justo. Durante a vida na terra, destruiu pessoas
pelo seu pecado. Face a Cristo, aplica a si mesmo livremente, esta palavra do
Evangelho: “Despacha-te em pôr-te de
acordo com o teu adversário, enquanto estás com ele a caminho, não vá que ele
te entregue ao juiz, o juiz ao guarda, e que não te lancem na prisão. Na
verdade te digo, não sairás de lá sem pagares o último centavo”. Aceita
este facto com toda a sinceridade, reconhecendo que é justo.
Existem, pois, duas razões para a
existência do purgatório: a purificação do coração e a dívida a purgar pelo mal
cometido. No entanto, como bem se compreende, se a primeira razão é
indispensável (Deus é simples, a alma que o vê deve sê-lo), a segunda não é
senão uma conveniência da justiça.
4. Quarto purgatório - quando a alma amorosa diz: “um dia, serei digna de ti!”
Sigamos o caminho do soldado alemão Johann.
A sua conversão for a radical. O encontro do momento da morte fora tão
violento, que o tinha inflamado de uma só vez. Tinha visto tudo, compreendido
tudo. O coração tinha-se-lhe inflamado proporcionalmente ao seu estado. Era-lhe
impossível amar de outro modo que de todo o coração, de tal modo a aparição do
Céu, fora poderosa. O êxtase que tinha suscitado é descrito por Santa
Bernadette de Lourdes: “Quereria poder estar sempre ao pé dela.” Como o
trabalhador da última hora, tinha amado Jesus e recebido dele a promessa de
entrar como os outros na vida eterna[187].
Estava feliz. Sabia que estava salvo.
Acreditava-o com uma certeza que lhe vinha de Cristo.
… mas amava mal.
No entanto, no momento da morte, Johann
tinha percebido quanto lhe era preciso purificar o seu amor de todo o resto de
pecado que tinha cometido na terra. Via que subsistiam nele. Era mais forte que
ele. Queria amar Deus mas não parava de olhar para si, para ver se amava
verdadeiramente. A sua vontade tinha tomado demasiadamente o hábito de não
pensar senão nela. Estava, o que quer que fizesse, centrada sobre si mesma.
Tinha agora dificuldade em realizar, em toda a liberdade, o que queria. Algo
estava inscrito nela, uma espécie de vício, que a retinha e que não era senão o
resto do amor de si mesmo, que conduz o homem a olhar-se a si próprio antes de
se importar com os outros.
Johann queria amar Deus, mas não podia
pensar noutra coisa senão nele mesmo a amar. A generosidade de Johann
espanta-nos quando consideramos o SS que ele era[188]
alguns instantes antes. Johann disse a Deus: “Amo-te mais do que tudo. Um dia, por ti, serei digno de ti”.
Uma palavra destas não é humilde.
É própria de um homem sincero mas ainda seguro do seu valor. Ora, ninguém pode
ver Deus sem estar totalmente morto para si mesmo.
Johann não parava de pensar no mal que
tinha cometido na terra. A recordação daqueles que tinha ferido, queimava-o.
Via, em particular, diante dele, um soldado russo que tinha abatido quando este
acabava de se render. O homem sorria-lhe dizendo: “Não te preocupes comigo.
Claro que me mataste contra as regras da honra mas, depois do meu encontro com
o Messias, vi que não valia melhor sorte. Rezei por ti a fim de que esse pecado
te fosse perdoado. Não te preocupes mais com esse assunto.” Igualmente, o seu
anjo da guarda, dizia-lhe: “Há uma mulher russa que encontrou o teu corpo. Ela
transportou-o para o enterrar e rezou pela tua alma. Esta mulher perdeu todos
os filhos em Stalinegrado. Por causa da sua caridade, todas as tuas dívidas
estão remidas.” Johann acabava de beneficiar da indulgência pelas suas dívidas.
Tudo lhe tinha sido perdoado por causa do amor daqueles que as tomavam sobre
si.
Toda a teologia da Indulgência se
encontra aqui. Rezando pelas almas do purgatório, oferecendo por elas o que o
amor nos inspira, tomamos sobre nós as suas dívidas. Evidentemente que tudo
isto não é possível por causa dos nossos próprios méritos. Os nossos pobres
amores estão misturados de egoísmo. Não é possível senão por causa de uma
vontade explícita de Cristo na cruz, a sua vontade da comunhão dos santos[189]. Pela indulgência
plenária, se a alma está já totalmente purificada de todo o resto de pecado,
acabamos por ela o purgatório e abrimos-lhe as portas do Céu.
Johann ficou comovido por tanto amor
manifestado. Não desejou senão purificar-se ainda mais. Desejou restabelecer,
oferecendo orações por eles e sofrendo por eles. Deste modo, precisava em toda
a justiça, de reparar. Foi o que Johann experimentou. Foi por isso, por causa
destas duas lacunas, que aceitou voluntariamente separar-se provisoriamente dos
habitantes do Céu.
5. Quinto purgatório: quando a alma se gasta de esperar
(Coisa certa)
Então, completamente submisso à vontade
de Jesus, começou a viver o seu purgatório. Subitamente, viu-se sozinho. Toda a
presença afectuosa desaparecera. De repente, um grande fogo brotou dele: um
desejo ardente de Deus tinha-se apoderado dele. Era doloroso porque Johann
amava. A sua alma, totalmente feita para esse Jesus entrevisto no momento da
morte, gemia por causa da sua ausência. Não cessava de estar, ao mesmo tempo,
na alegria, porque sabia que essa ausência momentânea não tinha outra
finalidade senão a de queimar os restos do pecado.
O purgatório é, pois, por
excelência, uma experiência de amor. Não tem outra causa de sofrimento senão a
ausência de Deus. A alma arde no mesmo fogo que reina no inferno: o desejo de
Deus. Mas, longe de se opor a este desejo como o fazem os condenados, ama e
serve-se dele para amar.
Qual é a duração real do
purgatório? Como a alma não está ligada ao corpo carnal, ao ciclo do tempo e
das estações, não vive este tempo do purgatório, senão do interior, um pouco
como um espeleólogo, permanecendo meses inteiros sem horas, no fundo de uma
gruta[190].
Um minuto pode parecer horas e reciprocamente. Experimentamos todos esta
subjectividade do tempo interior: um minuto sob a broca do dentista é mais
longo que uma hora diante de um filme apaixonante. Assim, acontece que o
purgatório não dure senão um minuto em tempo da terra, mas pareça à alma, louca
de amor, tão longo como anos de prisão. Inversamente, para uma alma que ame
menos, anos desta separação não parecem longos senão porque, realmente, são
longos. Algumas revelações privadas falam de uma duração de vários séculos. Em
Fátima (1917), a Virgem Maria responde a Lúcia, a propósito de uma menina de 10
anos morta no ano anterior: “Está no purgatório até ao fim do mundo.”
É um sofrimento desconhecido da
terra porque nada vem temperar o fogo do desejo de Deus. Nenhuma ocupação
exterior vem distrair-nos. Para Santa Catarina de Génova, a alma sofre os
efeitos lancinantes do seu amor que nada vem distrair. Tem sede de Deus, à
imagem do rico que gritava[191]: “Pai Abraão, tem piedade e envia Lázaro molhar a ponta do dedo para me
refrescar a língua, porque estou atormentado nas chamas.” Então, lenta ou
rapidamente, sem que a alma faça nada, pelo o único poder deste sofrimento, o
amor purifica-se.
Era o que Johann experimentava. No
início, mergulhado na solidão, comportava-se como o homem da parábola.
Suplicava que alguém viesse dar-lhe um pouco de reconforto “que molhasse o dedo
na água do paraíso para matar-lhe um pouco a sede”. Não parava de sondar o
fundo da sua alma, perseguindo o mínimo resto de retorno para si mesmo. Segundo
Santa Catarina de Sena, a alma procura ser santa. Pelo desejo que tem de Deus,
agarra-se antes de tudo, a fugir do pecado. É bom. Mas não é perfeito porque,
sem se dar conta, permanece neste mesmo acto, demasiado centrada sobre ela. Ao
fim de algum tempo, laminada pela solidão e pelo desejo de Deus, Johann olhava
menos para si. Olhava cada vez mais para Deus.
É o segundo purgatório místico de
Santa Catarina de Génova. Já o amor se exerce com mais simplicidade, porque
Deus é cada vez mais olhado. A alma preocupa-se cada vez menos consigo mesma.
Tal é o efeito do sofrimento: simplifica o coração do homem desapegando-o dele
próprio.
6. Sexto purgatório: o átrio do Céu
(Coisa certa)
Finalmente, depois de ter esperado o que
lhe pareceu ser uma eternidade, Johann tinha mudado completamente. A sua alma
estava repleta de solidão. O tempo, que parecia nunca mais chegar ao fim,
tinha-o usado. Não se preocupava mais em ser digno de Deus. Não mais olhava
para si. Não mais vivia. Do fundo do ser, dava-se conta que, apesar de todos os
esforços, jamais seria digno de Deus. Sofrer era-lhe indiferente: só Jesus e os
seus parentes, contavam.
Tinha atingido o que Santa Catarina de
Génova chama o átrio do Céu. Nem mesmo se dava conta dessa pureza absoluta que
acabava de alcançar. Porque, na verdade, era agora humilde, totalmente morto
para si mesmo, sem ilusão sobre o seu nada diante da infinita pureza de Deus.
Mais nada agora o retinha naquele lugar de solidão. Então disse[192]
ao Senhor:
“Não sou
digno que entreis na minha morada.
Mas dizei uma só palavra e serei
salvo[193]”
Para concluir esta análise dos
três purgatórios místicos, é preciso comparar esta palavra com aquela que
Johann dizia no momento da sua entrada no purgatório: “Um dia, serei digno do teu amor”. Entre as duas, não há nenhuma
diferença quanto à intensidade do amor. A diferença vem doutro lado, da
humildade. No fim de contas, a entrada no paraíso é a coisa mais complexa do
mundo porque é… a mais simples. Esta análise permite compreender muitos
ensinamentos curiosos de Jesus: “As prostitutas e os pecadores antecedem os
sacerdotes no Reino de Deus”. É assim, porque as prostitutas, humilhadas na sua
feminilidade pela vida e pelos clientes, estão mais dispostas a desenvolver a
humildade, que um sacerdote reconhecido universalmente como um homem de bem[194]. Alguma vez se viu uma
antiga prostituta dizer, no momento da morte, a Jesus: “Um dia, serei digna de
ti”?
Então, Cristo apareceu-lhe. Como no dia
da morte, viu-o primeiro com o seu corpo glorioso. A sua alma humana
aparecia-lhe através da sua luz física. Estava rodeado de uma nuvem de anjos e
santos. Cristo disse-lhe: “Entra na alegria do teu Deus[195].”
Deu-se como que uma revelação, como “o véu
do templo que se rasgou de alto a baixo[196].
Cristo apareceu-lhe como que dentro dele. Continuava a ver a sua humanidade; e
viu a sua divindade, face a face. Viu o Pai, o Filho e o Espírito Santo, num
jorro de infinito e eternidade.
A existência do Limbo das crianças faz parte da fé da Igreja, mas não a sua eternidade
(Coisa certa)
Durante séculos, na sequência da
opinião de St. Agostinho e S. Tomás de Aquino anteriormente citada, os
católicos acreditaram que as crianças mortas sem baptismo[198] nunca iriam para o paraíso. Esta doutrina nunca foi ensinada pela
Igreja. O dogma que sempre foi ensinado não vai tão longe. É resumido nesta
frase do Concílio de Florença[199]: “As almas daqueles que morrem em estado de pecado original descem de
imediato ao inferno para aí serem punida por penas desiguais”. O papa Pio VI[200] precisa que este
inferno, habitualmente chamado “limbo das crianças” nada tem a ver com o
inferno dos condenados. As crianças não têm qualquer ódio a Deus[201]. Não têm pecado pessoal.
Implica uma separação de Deus (o dano)
mas nenhum sofrimento (não há a pena do
fogo), porque estas crianças são inocentes. Nada mais foi alguma vez
precisado.
O raciocínio de S. Tomás é o
seguinte: uma criancinha, por inocente que seja, está separada de Deus em
consequência da escolha de Adão e Eva, escolha lúcida feita em nosso nome e que
Deus respeita. Não é culpada de nenhum pecado pessoal. Mas, assim que é
concebida, não possui no coração a presença de amor da Trindade. Não vem
habitar nela familiarmente e a criança não pode responder com o seu amor. Os
primeiros pais da humanidade, Adão e Eva são, segundo a fé católica, um
verdadeiro homem e uma verdadeira mulher, não um casal simbólico. Eis poucos os
pontos relativos a eles que fazem parte da fé católica:
1. Foi o próprio Deus que criou o
homem e a mulher e lhes insuflou uma alma espiritual e imortal;
2. Os nomes de Adão e Eva, apesar
do sentido simbólico, designam um homem e uma mulher reais, os nossos primeiros
pais.
3. Adão e Eva foram criados
perfeitos: por causa do seu lugar de primeiros pais de todos os homens, Deus comunicou-lhes
dons naturais e dons preternaturais. Receberam também a graça sobrenatural que
os tornou totalmente próximos de Deus. Esta graça chama-se graça original.
4. O demónio aproximou-se deles e
seduziu-os. Revoltaram-se contra Deus e perderam, em consequência, a graça
original e os dons preternaturais que a acompanhavam.
5. Sendo responsáveis pela
humanidade aos olhos de Deus, separaram de Deus, pelo seu pecado, todas as
gerações que haveriam de nascer deles. É o pecado original.
O papa Paulo VI, no Credo que deu
à Igreja em 1968, escreve o seguinte: “Acreditamos
que em Adão todos pecaram, o que significa que a falta original cometida por
eles fez cair a natureza humana, comum a todos os homens, num estado onde
carrega com as consequências dessa falta e que não é aquele onde se encontrava
ao princípio, nos nossos primeiros pais, constituídos na santidade e na
justiças e onde o homem não conhecia nem o mal, nem a morte. É a natureza
humana assim caída, despojada da graça que a revestia, ferida nas suas próprias
forças naturais e submetida ao império da morte, que é transmitida a todos os
homens, e é neste sentido que todo o homem nasce no pecado”. A Igreja, na
sequência de S. Paulo, ensina uma verdade muito mais difícil de acreditar:
“Adão e Eva ao escolherem ser livres relativamente a Deus, ao separarem-se
dele, comprometeram-se POR NÓS”. Arrastaram-nos com eles, em todo o
conhecimento de causa. S. Paulo, exprime-o deste modo: “Por um só homem o pecado entrou no mundo e, pelo pecado, a morte, e
assim, a morte passou para todos os homens porque todos pecaram”. Isto foi
permitido por Deus porque ele sabia fazer sair daí um maior bem para a
humanidade inteira. Nos nossos dias, a humanidade e o seu sofrimento, vindo da
escolha de Adão e Eva, permitem uma santidade maior que aquela que seria sem o
pecado original.
As crianças são, portanto, todas
concebidas separadas da presença de Deus. Mas, ao menor desejo dos pais, a
escolha de Adão e Eva é anulada e, mesmo antes da criança nascer, o Espírito
vem habitar no seu coração. Não vemos, senão muito raramente, um efeito
exterior deste mistério, mas ele é uma realidade. Habitualmente, esta habitação
realiza-se pelo baptismo de água, imediatamente após o nascimento. Mas se a
criança morre antes, um simples desejo dos pais, expresso na sua oração, basta.
De imediato, Deus os escuta e vem suprimir neles a falta original. É uma forma
de baptismo de desejo[202]. A Igreja aproveita para
lembrar a responsabilidade dos pais. Mesmo se perdem o filho, é seu dever pedir
para ele o baptismo porque o Espírito Santo não vem às crianças senão em
obediência ao desejo dos pais.
Segundo S. Tomás de Aquino, se
uma criança for completamente abandonada pelos pai ao ponto destes não terem
rezado por ela, entra no outro mundo afastada de Deus. Está separada dele para a eternidade porque, é um dogma,
todo o ser morto sem esta graça está condenado para a eternidade. É certo que
não tem culpa. Portanto, não sofre da ausência de Deus. Permanece simplesmente
assim, sem mesmo desejar Deus de tal modo é pequenino, numa felicidade natural
chamada limbo.
Esta doutrina é lógica. O
raciocínio é perfeito. Não lhe falta senão um elemento: Deus é amor e - é
também um dogma -, propõe a todos o
seu amor. O Concílio de Quierzy confirma-o solenemente: “Deus todo poderoso quer que todos os homens, sem excepção, sejam
salvos, se bem que nem todos o sejam. Que alguns se salvem, é dom daquele que
salva; que alguns se percam, é o salário daqueles que se perdem.” Ora, as
crianças não merecem este salário. De forma alguma rejeitaram Deus. Ignoram
simplesmente o seu mistério.
É por isso que é preciso falar
doutra forma. Apoiando-nos na fé da Igreja, é possível descrever o que vivem as
crianças mortas sem baptismo. É impossível que sejam deixadas no limbo para a
eternidade. Recentemente, o Catecismo da Igreja Católica veio dar-nos
uma confirmação inesperada desta opinião: “As
palavras de Jesus nos evangelhos, permitem-nos esperar que haja um caminho de
salvação para as crianças mortas sem baptismo. Tanto mais premente é também o
apelo da Igreja para não impedir as criancinhas de aceder a Cristo pelo dom do
santo Baptismo.”[203]
Que acontece às crianças mortas sem baptismo?
(A investigação sobre a forma
como as crianças entram no paraíso não está decidida. Julgue o leitor)
“Sou um rapaz. A mamã concebeu-me. Seis
semanas depois, decidiu não me conservar. O meu pai tinha-a abandonado. Pensou
que mais valia eu não existir. Eu dormia. Não dei conta de nada. Soube a minha
história depois. Acordei quando já não estava no seu ventre. Já estava longe da
clínica. Voava por cima deste mundo. Pessoas luminosas estavam à minha volta.
Disseram-me que me adoptavam. Pediram a Deus que viesse. De imediato, senti em
mim uma doce presença.”
A alma das crianças é criada por Deus na concepção
Se a Igreja católica, pela voz de
Pedro se opõe com tanta força ao aborto, é que acredita com toda a sua
convicção que este ser que se faz desaparecer, se bem que dotado da aparência
de uma única vida biológica, já recebeu com certeza a sua alma
espiritual. Esta alma, sede da inteligência e da vontade, não é senão o que
sobrevive à morte. A sua existência não pode ser posta em dúvida no plano da
revelação.
Uma dúvida subsiste, no entanto,
no ensinamento da Igreja: quando é que esta alma criada por Deus é dada à criança?
No século XII, S. Tomás de Aquino inclinava-se para o sexto mês depois da
concepção. Não foi esse o momento em que João Baptista, visitado por Maria,
tremeu no ventre da mãe? Se for assim, o aborto até ao sexto mês não seria um
“crime abominável”. Não seria um crime no sentido estrito, um homicídio, mas um simples pecado contra
a vida que está para vir e que ainda não veio. S. Tomás não tinha na época
todos os instrumentos da fé de que dispomos hoje.
Em 1854, o Papa Pio IX proclamava
como uma certeza vinda do alto a
Imaculada concepção da Viragem Maria. Esta revelação parece sem relação com
o aborto. Nada disso. O facto de Maria ser imaculada na sua concepção,
significa que vivia, desde a concepção, da presença de Deus, da mesma maneira
que Eva assim vivia no jardim do Éden. Se Deus estava presente, é porque Maria
o recebia na sua alma. O facto, por outro lado, da concepção da Maria ser
festejada em 8 de Dezembro, ou seja, nove meses antes do seu nascimento, não
deixa qualquer dúvida sobre o que se deve entender por concepção. Maria é da raça humana, como toda a criança que vai
nascer. Tudo indica, pois, que, para ela como para nós, a alma é dada no
momento da concepção.
Que acontece a estas crianças?
Santa Teresa de Lisieux dizia com razão: “Uma criancinha nunca vai para o
inferno”. Mostrava que a hipótese do limbo, proposta por St. Agostinho se
engana sobre Deus. Deus não tem necessidade que uma criança seja baptizada com
água para lhe dar o baptismo da sua presença.
Para ser introduzido na salvação
ou, pelo contrário, rejeitá-la, são necessárias três condições:
1. Possuir a capacidade natural (inteligência e vontade activas) de se
dirigir para ela quando é proposta.
2. Que esta graça lhe seja proposta pela pregação do Evangelho e do
dom do Espírito Santo.
3. Responder concretamente sim a esta graça e dirigir-se a Deus e ao
próximo num acto de caridade.
Os inocentes são primeiro adoptados por dois pais do Céu. Depois, são baptizados.
(Coisa não decidida. Julgue o
leitor)
Quando uma criança morre e é
abandonada pelos pais ou pela Igreja da terra, é de imediato adoptada por
voluntários da Igreja do Céu. É verdade que a Igreja nunca dá a graça do
baptismo sem que os pais o peçam. Felizmente, milhões de homens e anjos, vêem essa
criança que desliza entre dois mundos. Trata-se do tempo do “limbo”. Dorme e
assemelha-se ao bebé Moisés flutuando no Nilo no seu cesto de verga. A sua
história é então semelhante sob todos os pontos, à do bebé Moisés[204] : “A filha do Faraó desceu ao rio para se banhar, enquanto as suas servas
se passeavam na margem do rio. Viu o cesto entre os juncos e mandou a serva
buscá-lo. Abriu-o e viu a criança: era um menino que chorava. Movida de
compaixão, disse: ‘É um dos filhos Hebreus.’” Da mesma forma, esta criança
é recolhida. O pecado original é nela extinto. Deus habita a sua alma.
A graça da presença de Deus,
distingue-se da glória, pela seguinte propriedade: pode existir sem que seja
exigido um acto livre. Comporta-se à maneira do amor não voluntário que um
homem pode experimentar por uma mulher porque isso se lhe impõe. Inversamente,
ninguém entra na glória sem um acto livre, da mesma forma que é impossível
casar validamente de surpresa.
O mesmo se passa com as
criancinhas mortas sem baptismo. Depois de adoptadas, a pedido dos seus novos
pais, são lavadas do pecado original e recebem de maneira verdadeira a graça da
presença de Deus. São santificados de forma passiva, sem vontade nem mérito da
sua parte, graças ao desejo dos seus novos pais. Deus não proporá às crianças,
senão num segundo tempo, a bem-aventurança da visão da sua essência, assim que
o obstáculo ligado à sua pessoa, quer dizer, a sua incapacidade de escolher,
desaparecer.
Quem adopta as crianças? Os
santos do Céu, todos são voluntários. No entanto, são designados uma pai e uma
mãe, bem como um anjo da guarda. A criança permanece um filho de homem e a sua
natureza exige que seja educado por um homem e uma mulher, por dois amores que
se harmonizem à maneira do Yin e do Yang dos taoístas. Trata-se do amor
“doçura” e do amor “autoridade”. Os pais adoptivos não são de maneira imediata,
Jesus e Maria. São-no de forma primeira, profunda e espiritual. Mas, como na
terra, delegam esse papel. Na Comunhão dos santos, onde reina a maior
delicadeza, pessoas que não puderam ter filhos na terra são provavelmente
colocadas à frente. No Céu, todos se apressam em adoptar uma criança que chega,
e a oração de milhares de pais e mães do Céu, provoca provavelmente que venha a
ela o Espírito Santo. Desta forma, se existem milhões de crianças que morrem
sem o baptismo sacramental, nunca se viu morrer um único sem o baptismo do
Espírito Santo.
A duração do limbo das crianças,
nunca foi definida pelo Magistério ordinário ou solene da Igreja. É provável
que as crianças mortas sem baptismo, não permaneçam mais que um instante
separadas da presença de Deus. Assim que passam para o outro mundo, são
acolhidas e baptizadas pelos habitantes do céu. Juntam-se então com as crianças
baptizadas pelos pais num lugar provisório cuja finalidade é permitir, através
de uma educação, um crescimento suficiente do seu psiquismo e, depois, do
espírito.
Podemos, pois, interpretar, as
imprecisões destes textos do Magistério da seguinte maneira. As crianças não
baptizadas estão no limbo, privadas de toda a presença de Deus até que sejam
adoptadas, isto é, um instante. Todas as crianças, qualquer que seja o modo do
seu baptismo, são então conduzidas a um lugar provisório, totalmente comparável
ao “seio de Abraão” de que falavam os
antigos judeus[205].
Não se trata ainda do outro
mundo. Mas aí reina a graça da presença de Deus, simbolizada pela “água” de que vivia o pobre Lázaro[206]. Trata-se de facto de um inferno no sentido etimológico de
“lugar inferior”, uma vez que ainda não vêem Deus face a face. As crianças
estão unidas a Deus por todos os bens que recebem dele. Vêem Jesus e Maria
acompanhados dos santos e dos anjos[207]. Trata-se realmente de
uma visão dos sentidos, porque possuem psiquismo. Ao mesmo tempo, a Parusia de
Cristo, revela-lhes a natureza do seu ser, o Evangelho, o mistério da caridade
e a glória que lhes é proposta. Trata-se de uma pregação do Evangelho que, num
primeiro tempo, lhes ilumina a inteligência sem que a sua escolha livre se
possa realizar. Familiarizam-se com esta revelação. O demónio está presente por
direito, uma vez que tem de fazer as suas propostas de orgulho. Além disso,
recebem de Deus bens sobrenaturais como a graça íntima e mística da sua
presença, depois, assim que são capazes, a caridade activa.
Desta forma, as crianças estão na
alegria e na ausência do sofrimento do fogo. Vivem no entanto de um fogo, na medida em que ele é um desejo, uma
vez que o seu espírito não repousa senão no fim para que foi criado. Assim que
o obstáculo provisório da natureza, isto é, a incapacidade natural de escolher,
desaparece, são introduzidas na visão plena[208].
Pode ser colocada aqui uma forte
objecção. Se é assim, que diferença há entre as crianças baptizadas na terra
pelos pais e as que não são? Neste relato, não mais se compreenderia a razão da
insistência da Igreja no dever dos pais apresentarem o mais cedo possível, os
seus filhos ao baptismo[209].
As crianças baptizadas antes da
morte recebem desde esse instante o perdão do pecado original que as mantinha
separadas da presença de Deus que as atrai. As crianças mortas sem baptismo,
recebem a mesma graça um pouco mais tarde, pela vontade dos pais do Céu, Jesus,
Maria, toda a Igreja dos santos. Mas os seus pais carnais ficam privados, por
causa da ignorância ou descuido, de uma graça: a autoridade parental. São
destituídos dos seus direitos e a criança é adoptada por duas outras pessoas
que serão junto delas, para a eternidade, o seu pai e a sua mãe. Não basta, com
efeito, para ser pais, dar fisicamente a vida. É preciso ainda mostrar-se digno
disso no plano da educação.
Deus dá aos inocentes a capacidade de fazer um acto livre
Ninguém pode entrar na graça e na
glória, ou mesmo ser conduzido ao inferno, sem uma escolha plenamente livre da
inteligência. Existe necessariamente, antes da entrada no paraíso, uma forma de
educação da psicologia e do espírito. As crianças começam a receber
conhecimentos que substituem o que a educação e o ensino teriam tido que
realizar durante a vida na terra.
Trata-se de saber como se realiza
esse desenvolvimento. É fácil de constatar que, no início, o espírito dorme e
não é capaz de nenhum exercício livre. A causa está na ausência do
desenvolvimento do psiquismo.
Normalmente, na terra, não é
senão provisoriamente, no decurso da infância, passando por etapas de progresso,
que a criança pode realizar o seu primeiro acto livre. Antes, terá aprendido a
servir-se da vida sensível, palpará, depois ouvirá, antes de acordar para
alguns desejos. É natural para o espírito humano, desenvolver-se através deste
tipo de caminhada progressiva.
Na morte, o psiquismo sobrevive à
morte do cérebro[210]. Isso não significa que
entrou na plenitude do seu desenvolvimento. Mas, apoiando-se no espírito que o
faz subsistir, ele é dotado de um novo modo de exercício, mais leve e eficaz.
Confrontado com a presença glorificada do corpo psíquico dos santos e com do
corpo que os anjos se moldam, destinados à criança, o psiquismo desenvolve-se,
depois, a inteligência e a vontade. Muito depressa se tornam capazes de uma
escolha livre. Portanto, as crianças crescem no outro mundo, em sabedoria e
inteligência. Uma vez realizados os progressos, banhados pela graça, as
crianças fazem a escolha da sua liberdade por Deus ou contra Deus[211].
Alguns disseram que a educação
podia ser realizada de uma só vez, tanto a beleza da glória dos santos do Céu
tem um poder de despertar os sentidos e o espírito[212]. Não está excluído,
ainda que pouco provável por causa do percurso e das etapas, que parecem mais
convenientes à natureza humana.
Todas as crianças[213] escolhem o paraíso
Como é que as crianças acedem à
visão beatífica? Exactamente da mesma forma que nós. Entram através de uma
escolha livre. Deus actua para com eles, com esse objectivo. Uma vez que faltam
às crianças três coisas, a saber, a capacidade de escolher (são muito
pequenas), a proposta de escolher Deus (não são baptizadas), e a escolha
efectiva (a caridade como amor recíproco e activo), faz-lhes os dois primeiros
dons de uma vez, em vista do terceiro que é o acto meritório da visão
beatífica.
Numa altura que Deus conhece,
tornam-se, por causa da Luz que vem de Deus, capazes de escolher o bem e o mal.
O demónio está presente mas impotente. Apresenta a liberdade do inferno. A
escolha da criança não deve ser perfeitamente livre? A sua tentativa não tem
efeito. Não há orgulho nem procura de poder no coração de um recém-nascido.
Dirigem-se naturalmente para onde
os conduz o coração, a saber, para o bem e a luz. A partir desse instante, são
introduzidos na visão de Deus. A partir do primeiro instante de capacidade de
praticar um acto livre, por causa do seu estado separado do corpo carnal,
dirigem-se completamente e sem erro para o objecto da sua escolha, sem que um
novo crescimento seja possível. Nenhuma espera lhes é imposta. Vêem Deus face a
face.
Todas as crianças escolhem o
paraíso? Algumas não são tentados pelo orgulho? Recebem através da educação do
céu, uma perfeição natural e uma harmonia psicológica maior que as crianças
educadas na terra. Têm, pois, mais possibilidade de se orgulharem com a sua
beleza e de se virarem para a liberdade do inferno. Portanto, alguns inocentes,
não mais o sendo, serão condenadas.
É provável que todas as crianças
sejam introduzidas na glória por causa da sua pouca propensão para se
orgulharem dos dons recebidos de Deus. É o que quer significar a festa dos
santos Inocentes, aquelas crianças mortas por Herodes na cidade de Belém.
Igualmente, o papa Inocêncio IV escreve, a propósito das crianças mortas depois
do banho do baptismo[214]: “Não são detidos por nenhum obstáculo e passam imediatamente para a
pátria eterna.”
O demónio está presente por
direito, uma vez que tem de sussurrar as suas propostas de orgulho. Tentativa
ridícula, se alguma existe, porque, afirma a Teresinha, “uma criança, nunca vai
para o inferno!” A presença do demónio tem pouco efeito sobre as crianças por
três razões. A primeira vem-lhes da natureza. Entre as criaturas espirituais,
permanecem os mais fracos em inteligência e vontade naturais. Constatam a sua
pequenez com evidência ao compararem-se aos seres espirituais que as rodeiam.
Têm poucos motivos de orgulho. A segunda vem da presença em seu redor, das
almas glorificadas e dos anjos, que irradiam paz e alegria. Eles correspondem
com harmonia ao seu coração, quer dizer à orientação inata da sua vontade.
Seguem-nos com toda a naturalidade. A terceira vem-lhes do próprio demónio,
cujo motivo de revolta lhes parece, na sua simplicidade, pouco atraente.
Reclamar a Deus uma hierarquia dos seres fundada na inteligência e no poder
natural, parece-lhes menos bem que a da humildade e do amor. Com tudo isto,
podemos dizer que não há inocente que escolha o inferno.
Como vimos, o único pecado que
conduz à condenação eterna sem que o perdão seja possível, é a blasfémia contra
o Espírito Santo. Tal pecado vem do amor de si mesmo e da sua própria
excelência levados até ao desprezo de Deus. É pouco provável que possam existir
numa criancinha. Na verdade, a sua imperfeição natural torna-as pouco
inclinadas ao orgulho. No entanto, temos de admitir que, do ponto de vista
teórico, a possibilidade de uma escolha que conduza ao inferno exista, sem o
que não haveria possibilidade de escolha.
A escolha de um recém-nascido é,
pois, feita rapidamente e eles deslizam como anjos para a visão de Deus a quem
são semelhantes.
O facto de não terem vivido a vida terrestre é para elas uma perda
Todo o homem, qualquer que seja
(mesmo um embrião), entra no reino de Deus na medida precisa do seu desejo de
Deus. Quanto mais o coração do homem ama Deus e deseja vê-lo, mais o vê. Se a
vida terrestre é querida por Deus, é que é útil. Existe um caminho cuja
utilidade é aprofundar o desejo do coração do homem, é o da vida na terra.
A vida na terra é feita para as
crianças. Ninguém tem o direito de lha recusar porque é uma caminhada de
maturidade na humildade e no amor.
Portanto, a vida na terra é útil.
É difícil, fonte de muito sofrimento mas, sobretudo, por causa desses
sofrimentos, é fonte de sede de amar e ser amado. Pela ausência de Deus, pelo
seu silêncio, pelas diversas provações que a semeiam, o coração do homem
aprofunda-se. A vida é feita de tal modo que é difícil sair dela sem uma
consciência profunda da nossa pequenez. A morte encarrega-se de o lembrar. Além
disso, a aparição de Cristo na hora da morte, depois de um tempo tão longo de
exílio, inflama o desejo de ver Deus, de uma forma inacreditável.
Quanto à criancinha morta antes
de ter vivido, quando é acolhida pelo mundo dos santos, de certeza que não o
rejeita. Mas dirige-se para ele com um pequeno desejo inocente, com um coração
que não teve tempo de se preparar. A sua eternidade é directamente modificada
por isso. Fica para sempre, num certo sentido, uma deficiente do coração. Morta
sem ter vivido, é certo que chega quase infalivelmente ao Céu. Mas não tendo
sido aprofundado o seu desejo de Deus, pelos diversos sofrimentos e faltas
deste mundo, fica eternamente como que subdesenvolvida do ponto de vista do
desejo e, em consequência, da visão de Deus. No entanto, não fica realmente
desfavorecida para a eternidade[215]. É o que explica a irmã
de Teresa Martin, que foi mais tarde Teresa do Menino Jesus: “Um dedal e um
jarro estão cheios de água. Qual dos dois está mais cheio? Nenhum. Ambos estão
perfeitamente cheios. O mesmo é no Céu. Todos os corações estão cheios na
proporção do seu desejo.”
Nesta perspectiva, compreende-se
que, para o Magistério, o aborto, qualquer que ele seja, mesmo o da pílula do
dia seguinte, tome uma dimensão vertiginosa. Não é um pedaço de carne que
desaparece mas um verdadeiro ser humano que
dormia ainda, uma criancinha. Não há nenhuma diferença factual entre os santos Inocentes do Evangelho (mortos por Herodes)
e estas crianças. E mesmo se as mães que praticam este acto não sabem o que
acontece à criança, realmente,
trata-se, para a Igreja, de um homicídio. Não há pecado da mãe se ela ignora o
que faz[216],
mas trata-se de matar um homem. Quando os homens deste século passarem para o
outro mundo, serão acolhidos pelas centenas de milhões de crianças abortadas. O
perdão ser-nos-á proposto. Mas, perdoaremos nós a nós mesmos?
Outrora, a sepultura cristã era
recusada aos suicidas. Mas tratava-se de uma prática pastoral com o objectivo
de evitar, sobretudo em épocas de medo, por um outro medo, epidemias de
suicídios. Baseava-se numa teologia.
Para o crente, a vida pertence a Deus. Ele deu-a como um presente. Recusá-la,
pôr-lhe voluntariamente fim, é um acto contrário à lógica da fé.
Mesmo se o fundo teológico
permanece sem modificação, as escolhas pastorais da Igreja transformaram-se
radicalmente. Os padres não recusam mais as orações litúrgicas por aquele que
se suicidou e, pelo contrário, a Igreja, submetida ela própria a sofrimentos e
pobrezas num mundo cada vez mais descristianizado, tem uma melhor compreensão
do que pode conduzir a um tal acto. Inversamente, para além destas duas
práticas, nunca a Igreja no seu Magistério oficial, se pronunciou sobre a sorte
da salvação ou condenação dos suicidas, que considera como o domínio do
julgamento de Deus.
O suicídio pode ter múltiplas causas morais
(Aspecto filosófico)
Como todo o acto humano, o
suicídio pode ter múltiplas causas morais. A maioria[217] daqueles que se
suicidam, fazem-no por causa de um grande desespero psicológico. Mas existem
muitas outras causas. Da mesma forma que existem actos maus, justos ou santos,
igualmente existem suicídios maus, justos, e mesmo, santos.
O suicídio pode ser um acto altruísta e, mesmo, de amor. O
exemplo mais nobre é o de um grande resistente francês, profundamente cristão
que, capturado pela Gestapo em 1941, se defenestrou para não falar sob tortura.
A Bíblia cita suicídios patrióticos e admira-lhes a grandeza[218]: “Como as tropas inimigas estavam prestes a apoderem-se da torre e a
forçar a entrada, tendo sido dada a ordem de pôr fogo e queimar as portas,
Razis, cercado por todos os lados, dirigiu a espada contra si próprio. Escolheu
nobremente morrer, antes que cair entre mãos criminosas e sofrer ultrajes
indignos da sua nobreza. Tendo falhado o golpe o sítio certo, na pressa do
combate, e as tropas desembocando no interior das portas, correu alegremente
para o alto da muralha e precipitou-se intrepidamente sobre a multidão.” É
um facto que tais homens morreram por zelo pelo próximo. “Ninguém tem mais amor que este: dar a vida pelos amigos[219].”
Há suicídios heróicos. Não constituem pecado. Não há que temer pela salvação de
tais homens, mesmo se, por vezes, resta um trabalho a fazer do lado da
humildade. A imperfeição na humildade, que é o defeito dos homens fortes, é
como o feno, a palha e as traves. Serão purificados no purgatório.
Em si mesmo, o acto do suicídio é
material. O valor e a culpa moral encontram-se fora dele. Quais as intenções
que o motivam? Assim, ao contrário do nobre Razis que defendia a cidade
injustamente atacada, podem existir suicídios motivados pelo mais obstinado dos
orgulhos. Podemos pensar em Hitler que, cercado também ele por todos os lados
pelas tropas soviéticas, enviava ainda adolescentes armados de Panzerfaust (armas anti-tanque). Era uma
loucura suicida. Mas, dizia eles, “a Alemanha não foi digna do seu Führer e não
pode sobreviver-lhe.” Arrastava-os na sua morte. O seu suicídio nada tem a ver
com o de Razis, porque a sua vida não teve o mesmo objectivo. Hitler,
visivelmente, ama menos a pátria do que a própria glória. Alguns discípulos de
Sartre mataram-se numa óptica de exaltação de si mesmos. Viam aí um sonho de
poder absoluto, no próprio momento da morte, onde nos sentimos impotentes, o
sonho de Prometeu entre os gregos ou de Adão e Eva na Bíblia: “Sereis como deuses”, com o direito de
vida e de morte. Não resistiram ao desejo de realizar de forma última a sua
liberdade. No capítulo dedicado ao inferno, tratámos desta obstinação que, se
for mantida em face da Parusia de Cristo, conduz certamente ao inferno. Mas
estes casos são raros. Para estes homens, Deus dispõe de uma última arma para
os salvar. Trata-se do purgatório dos errantes, onde se aprende que o orgulho é
um disparate[220].
O suicídio ligado ao desespero psicológico e espiritual[221]
A maioria dos suicídios,
sobretudo na nossa época, são motivados pelo
desespero psicológico e espiritual. É essencial compreende-los porque
afectam geralmente pessoas justas e amadas. A angústia das famílias merece uma
resposta.
Em alguns países Ocidentais, este
tipo de suicídio tornou-se a primeira causa de mortalidade entre os jovens. Mas
atinge também reformados, de forma terrível. Juntaram-se três razões para
provocar esta fragilidade.
1. A riqueza material que permite ter tudo muito depressa, desde a
infância. Uma criança demasiado mimada, perde o gosto pela vida, sobretudo se
lhe foi proposta como única motivação da vida, o que é material.
2. A ausência de paternidade. Toda a criança tem necessidade de dois
amores complementares: um amor doce que a admire e valorize, a maioria das
vezes simbolizado pela maternidade; um amor forte, que marque os limites e
ensine os valores. A criança que tem falta de paternidade, desenvolve para o
resto da vida, uma grande fragilidade psicológica. O Eclesiástico, com a sua
pesada experiência, ensina na Bíblia[222]: “Tens filhos? Educa-os e desde criança faz-lhes dobrar a espinha. Tens
filhas? Guarda-lhes o corpo, mas mostra-lhes um rosto severo.” Porque o pai
representava os valores, o esforço, o vencer-se a si mesmo, foi desvalorizado e
marginalizado depois de Maio de 68. Foi elogiado no seu papel de segunda mãe.
3. O ateísmo ambiente, erigido
como a filosofia segura e
demonstrada. “Não há nada depois da
morte. Vinde, pois, e gozemos dos bens presentes, usemos as criaturas com o
ardor da juventude[223].”
Aqui nasce a maior das fragilidades: aquela que toca o espírito porque “o homem não vive só de pão, mas de toda a
palavra que sai da boca de Deus”.
Um dia, confrontado com uma
infelicidade, por vezes com o simples absurdo de uma vida confortável, os mais
frágeis acham que a vida não mais é um presente que valha. Os limites que os
encerram tornam-se insuportáveis. “Bem
podem dizer, escreve uma jovem mulher antes de se suicidar, que não é assim tão grave, que tudo será
melhor amanhã, hoje o balanço é negativo: não há mais hipótese de abrir um crédito
à vida”. Na realidade, aqueles que se suicidam por desespero são os mais
frágeis ou os mais sedentos de
espiritual? Não são eles justos?
É esta a questão.
Todo o suicídio se explica por esta frase: “Onde estiver o teu tesouro, aí está o teu coração[224].”
Quando a vida não mais tem
sentido, é que o grande amor que a motivava desapareceu. Desta forma, na hora
da morte, é seguro que Jesus julga o pecado que representa cada suicídio, pela
sua causa. Sugere ao moribundo a pergunta seguinte: “que bem amavas tu? Não foi essa perda que fez com que a tua vida não
tivesse mais sentido?
Por vezes, os nossos amores são
materiais (prazer, dinheiro, glória). Pierre Bérégovoy, um primeiro ministro da
quinta República Francesa, suicidou-se. Tinha sido sempre um homem honesto.
Acusaram-no de ter feito com que lhe emprestassem dinheiro, usando do seu
prestígio. Preparou o acto e executou-o com a arma profissional do seu
guarda-costas. O seu bem último parece ter sido, mais que a esposa que deixou
sozinha, a sua honra.
Por vezes, os nossos amores são
profundamente humanos. Um agricultor bretão pôs a trabalhar a prensa da palha.
Passados alguns minutos de trabalho, assustou-se por não ver mais os seus três
filhos. Acabou por encontrá-los mortos. Tinham-se escondidos para brincar nas
instalações da prensa. O pai enforcou-se. “Onde
estiver o teu tesouro, aí está o teu coração”.
Por vezes mesmo, trata-se de um
amor cristão, mas que se tornou aparentemente impossível. S. Paulo escrevia[225]: “Sim, estou persuadido que nem a morte nem a vida, nem anjos nem
principados, nem presente nem futuro, nem poderes, nem altura nem profundidade,
nem qualquer outra criatura poderá separar-nos do amor de Deus manifestado em
Cristo Jesus nosso Senhor.” Mas Paulo esquecia neste texto, uma causa
possível, uma realidade que pode separar de Deus: o próprio Deus. Acontece que
Deus, para terminar a formação do coração dos seus santos e conduzi-los à
humildade mais total, os separe da impressão de que são amados por ele. O Pai
impôs esta provação ao seu filho Jesus[226]: “Meu Deus, Meu Deus, porque me abandonaste?” Trata-se de um
sofrimento desesperante para aqueles que não têm senão Deus e os místicos
qualificam-na de “noite do espírito”. Santa Teresa do Menino Jesus, viveu no
seu sofrimento uma crise de dúvida sobre a existência de Deus. Teve o
pensamento do suicídio. Não aguentou senão dizendo com a boca, à falta de
coração: “Creio”. Sinceramente entregue a Deus, afirmou depois, ter
compreendido o que vivem os ateus, porque é que alguns se matam.
O homem que perde o seu tesouro
pode, na sua dor, matar-se. O adolescente a quem nunca foi mostrado o
verdadeiro tesouro, pode também faze-lo:
“queria apenas dormir, estender-me sobre o asfalto e deixar-me partir”,
escreve Michel Berger numa canção que ilustra o mal do seu século. O desespero
pode ser brutal quando a dor se abate sobre a vida como a águia. Pode ser mais
reflectido e mais calmo, quando a infelicidade é simplesmente constatada, lenta
e inexoravelmente, no decurso de uma vida sem esperança no além.
A eutanásia faz parte, cada vez
mais num mundo ateu, deste tipo de debate interior. Vêem-se pessoas jovens, na
previsão de longas doenças ou da velhice, preparar depois de madura reflexão,
um pedido de eutanásia para o dia em que a sua vida estiver condenada.
No pensamento humanista sem Deus,
quando chega a morte e o que a precede, quer dizer, o sofrimento, a velhice,
que razão para empurrar um ser a prolongar a vida até ao fim? A presença dos
amigos? Estes mesmos esperam, por vezes, a morte daquele que sofre, como uma
libertação. Não suportam esse testemunho do seu próprio destino.
Objectivamente, não existe mais nenhum motivo. A ligação à própria vida, tomada
como um bem em si, desaparece quando o sofrimento e a solidão lhe retiram todo
o sentido. Com efeito, se imediatamente depois da morte, o ser humano se reduz
ao nada, à ausência de consciência, não serve para nada prolongar mais a vida.
Na perspectiva do humanismo sem Deus, recordemo-lo, a vida não tem sentido
senão por causa da liberdade que pode exercer-se na procura de uma bem na
terra.
É por isso que pareceu tornar-se
legítimo e necessário, em muitas nações ocidentais, legislar no sentido de uma
autorização da eutanásia. O legislador, ele próprio submetido às angústias da
natureza humana mergulhada no ateísmo, nem sequer produziu sempre um texto
impedindo os abusos (como o auxílio ao suicídio dos jovens desesperados, a
execução de doentes incuráveis, por vezes, de deficientes).
O acto da eutanásia é a maioria
das vezes praticado, não por causa do sofrimento físico mas “porque vale mais
extinguir o mais rápido possível o que, em qualquer caso, terminará no nada.” É
por isso que os cuidados paliativos (não apenas os medicamentos contra a dor,
mas também a presença dos amigos ou de pessoal remunerado para ser o amigo)
chegaram, mesmo num mundo ateu, a fazer desaparecer a eutanásia.
O desespero da não crença conduz
à eutanásia e é muito compreensível: apenas o crente ou o homem profundamente
religioso pode impregnar de sentido a sua agonia, uma vez que acredita que há
um sentido na agonia.
Que acontece aos desesperados?
(Julgue o leitor)
O suicídio e a eutanásia são um
só e único acto. A circunstância da aproximação da morte não muda radicalmente
a sua natureza em teologia cristã. Nos nossos dias, ninguém mais se permite
afirmar que aqueles que se suicidaram ou praticaram a eutanásia por desespero
psicológico ou espiritual, escolhem necessariamente o inferno. O suicídio
julga-se como qualquer outro acto humano. Quando Jesus era confrontado com um pecado,
quer dizer, com um acto que não era directamente motivado pelo amor do outro,
julgava duas coisas: o acto e a pessoa. À mulher adúltera, diz duas coisas[227]: “Também eu não te condeno. Vai e, doravante, não tornes a pecar.”
Julguemos primeiro o acto: Diante de
Deus, o acto do suicida, motivado pelo desespero, é certamente um pecado. Uma
vez que Deus existe, uma vez que a vida na terra é uma preparação para a vida
eterna, devemos com toda a verdade, afirmar que o suicídio é um acto que
desagrada a Deus. É preciso repeti-lo sem cessar: o tempo das lágrimas é
querido por ele.
Oseias fala de Deus quando salva
uma alma endurecida[228]: “1. Despi-la-ei até à nudez, pô-la-ei como no dia do seu nascimento;
ficará semelhante ao deserto, reduzi-la-ei a terra árida, fá-la-ei morrer de
sede. Conduzi-la-ei ao deserto e falar-lhe-ei ao coração. 2. Vou seduzi-la. 3.
Depois, dar-lhe-ei de novo as suas vinhas, e farei do vale de Akor uma porta de
esperança. Aí ela responderá como nos dias da sua juventude, como no dia em que
subia do país do Egipto.” Trata-se de uma descrição de toda a vida humana
nas suas três etapas principais: 1. o silêncio e o abandono aparente da vida
terrestre, 2. a vinda de Cristo que se dá a maioria das vezes na hora da morte,
3. o paraíso.
A vida na terra é útil para
empobrecer o coração. Mas não é senão passageira e prepara o tempo em que Deus
enxugará todas as lágrimas. Os mistérios dolorosos são seguidos dos mistérios
gloriosos. O homem que suprime a vida, mesmo por motivos muito desculpáveis
como a ignorância involuntária do projecto de Deus ou um sofrimento demasiado
grande, lamenta-o no outro mundo. Dá-se conta, objectivamente, infelizmente demasiado tarde, que o seu coração
poderia ter sido mais purificado e empobrecido. No purgatório do Céu, há certas
coisas que não mais se podem adquirir. Apenas o purgatório da terra permite,
por exemplo, aprofundar a sede de amar e ser amado, “morrer de sede”. Chegado ao outro mundo, face à aparição de
Cristo, o homem volta-se para ele com todo o amor de que é capaz, daí a
impossibilidade de crescer no amor depois da morte. Ora, é a medida desta sede
que nos valerá o ver Deus, e esta sede está ligada intimamente ao que o homem
tocou dele na terra.
Mas é preciso sobretudo julgar pessoas[229]. Que faz Jesus
das pessoas que se lhe apresentam depois de um suicídio? Não raciocina “objectivamente”, mas acolhe,
simplesmente, acompanhado pela corte celeste. “Também eu não te condeno.” Oferece a Boa Nova e o seu próprio
coração, o coração de uma multidão de irmãos e a promessa de uma vida eterna de
felicidade. Pede em troca a confissão dos pecados, desse pecado em particular
que é o suicídio, e o amor.
A esta luz, é possível dizer com
certeza o que segue: aqueles que se suicidaram por desespero espiritual,
morreram de sede num mundo que lhes fez acreditar que Deus e o amor não eram
senão um mito. Esses são salvos, por vezes mesmo sem passar por um outro fogo
purificador senão o olhar de Jesus. Com efeito, assemelham-se a St. Agostinho.
Era Deus a quem buscavam, mas tinham-lhe escondido o seu rosto. Ao verem a
imagem de Deus, vão infalivelmente a ele. Trabalhados pela cruz (uma das duas
cruzes que acompanharam Cristo no Gólgota, segundo que, no seu sofrimento
permaneceram justos ou se comportaram com dureza), reconhecem Cristo como o
objecto ignorado do seu desejo de sempre. Porque sofreram muito e, por esse
caminho, tocaram mais que qualquer outro a sua pequenez, estes desesperados
tornam-se a maioria das vezes, grandes santos no Céu.
Para ilustrar o destino destas
almas, eis a história de uma jovem. Catarina foi recebida nos Céus:
“Com um pouco mais de
vinte anos, nunca se tinha sentido bem neste mundo. No entanto, acreditava em
Deus e falava às vezes com ele. Também tinha amigos mas, ao voltar sozinha ao
seu apartamento, à noite, era tomada de angústias incompreensíveis que a
asfixiavam. Os pais preocupavam-se: porque é que a nossa filha não consegue ser
feliz? À força de não compreender, acabou por se concluir que era uma angústia
sem causa…
Uma noite de
Fevereiro, fazia muito mau tempo nos arredores onde residia. Voltou cansada do
trabalho. Meteu-se na cama de imediato, procurando um pouco de segurança
debaixo dos lençóis, como quando era pequena. Pensou que ninguém lhe iria
telefonar nessa noite e que estava muito só. De coração apertado pela angústia,
levantou-se e engoliu o conteúdo de uma caixa de sonoríferos. Pensou: “Perdão”
e adormeceu.
Algumas horas mais
tarde, Jesus veio acordá-la. Junto dele estava Maria. Então a jovem levantou-se
e, sem levar com ela o corpo, seguiu-os. Sabia que tinha agido mal. Teve uma
visão da mãe e do pai, que ficaram na terra, no sofrimento. O demónio acusou-a:
“Egoísmo! Cobardia!” Era verdade[230].
Mas, ela disse simplesmente para quem queria ouvir: ‘Não sou digna. Fazei de
mim o que quiserdes.’ Introduziram-na no paraíso. Viu Deus face a face. Satanás
protestava. ‘Inútil, responderam-lhe, ela é muito pequena, não te ouve.’”
Os outros suicidas, fazem a
sua escolha livremente, segundo o que é o seu coração. O orgulhoso obstinado,
instala-se no inferno; o tíbio, aprende no purgatório a humildade. O justo e o
santo, entram directamente no Céu. Tudo é julgado por duas coisas: a humildade
e o amor. Deus é Humildade[231]
e Amor.
CAPÍTULO 7: “A SÉTIMA PORTA”[232], A VISÃO BEATÍFICA
Precisamos recordar aqui, o
momento da nossa vida onde fomos mais felizes. Imaginemos que esse instante
pára e, sem nunca se gastar, torna a voltar vivo e a cada instante mais novo;
multipliquemos esta felicidade pelo infinito em paz, em alegria, em doçura e em
força; emprestemos-lhe um rosto e um sorriso, pensemos que esta beatitude é a
pessoa mais simples e mais amável possível imaginar e que o seu coração nos
pertença para sempre. No final deste exercício, podemos dizer que não
compreendemos nada da Visão de Deus. Este paraíso, ninguém pôde descrevê-lo,
nem mesmo Jesus no Evangelho. Quando Maria aparece a crianças, enquanto não
pára de ver Deus ao mesmo tempo que lhes fala, nunca lhes diz nada da sua visão
beatífica. Não há nada a dizer. É Deus e é tudo. Antigamente, a Igreja, para exprimir
esta visão, falava do repouso eterno. Esta expressão assustava as crianças que
tinham medo de ir para a cama para a eternidade. Depois, falou-se de Vida
eterna para significar que no Céu (o Céu é, primeiramente, a própria visão de
Deus) não se pára de correr, de dançar
diante do seu rosto[233]. Esta
expressão faz referência à actividade extrema de que se reveste a exploração
amorosa da Trindade. Mas, mais uma vez, a expressão não convinha a alguns e,
sobretudo, aos adultos cansados. Mais vale calarmo-nos e lembrarmo-nos que
seremos de tal forma saciados que não teremos mais desejos[234].
É preciso dizer antes que seremos um imenso desejo incessantemente saciado. A
Teresinha dizia antes da morte: “Não
vai poder surpreender-me, de tal modo o amo.” Agora, diz: “Surpreendeste-me,
meu Deus. Não sabia nada de ti.” A Teresinha é a maior santa dos tempos
modernos. A sua surpresa foi imensa. Que será para nós?
(Coisa certa)
Na visão beatífica, é a
própria Trindade, Pai, Filho e Espírito Santo que vem, como uma pomba na fenda
de um rochedo, aninhar-se na nossa inteligência. Faz-se o nosso próprio
pensamento e deixa-se compreender por nós na exacta medida em que o desejamos
pelo amor. Aquele que ama, deseja conhecer mais o seu bem-amado. Conhece-o e
fica saciado. Aquele que ama menos conhece menos bem Deus, mas fica saciado no
seu desejo. Santa Teresa, para explicar este mistério, recorda uma imagem
ensinada pela irmã: “Entre um grande
copo e um pequeno dedal, ambos cheios de água até às bordas, qual é o mais
cheio?” Compreendemos então porque é que é importante amar e amar cada vez
mais, durante a nossa peregrinação na terra. Compreendemos também porque é que
o sofrimento (a cruz da nossa vida) é útil, capaz, totalmente só por ela, de
aprofundar o coração a fim de o tornar imenso no desejo de Deus. Aquele que tem
fome, deseja mais a comida.
Na visão beatífica, o Filho
de Deus deixa-se ver sem qualquer intermediário criado. Enquanto na terra não
podemos compreender alguma coisa de Deus senão através da humanidade de Jesus,
no Céu compreenderemos a sua humanidade através da sua divindade. Com efeito, a
Trindade tornar-se-á límpida em si mesma e iluminará tudo o resto. A nossa
alma, feita à imagem de Deus, pôr-se-á a vibrar como ele. Seremos semelhantes ao
Pai e, contemplando como ele, veremos o Filho eterno. Seremos como o Pai e o
Filho, ao mesmo tempo que permanecemos nós próprios[235]
e, ao amá-los, amaremos o Espírito Santo.
Tudo é simples em Deus. Mas
é certo que, graças a esta visão face a face, não mais teremos nem a fé nem a
esperança: não teremos mais necessidade de acreditar numa quantidade de coisas
sobre Deus, uma vez que o veremos com os nossos próprios olhos[236].
Não teremos mais necessidade de esperar o que quer que seja relativamente a
Deus, uma vez que o possuiremos por completo e para sempre. Das três virtudes
teologais, não restará senão a caridade, e esta caridade transformar-se-á em
alegria. É o que ensina S. Paulo[237]:
“A caridade nunca desaparecerá. As
profecias? Desaparecerão. As línguas? Calar-se-ão. A ciência? Desaparecerá.
Porque imperfeita é a nossa ciência, imperfeita também a nossa profecia. Mas
quando vier o que é perfeito, o que é imperfeito desaparecerá. Portanto, agora
permanecem a fé, a esperança e a caridade. Três coisas permanecem, mas a maior
delas, é a caridade.”
Deus ocupa tão pouco espaço
numa alma, quando a enche, que é possível, sem nunca o perder de vista, ter uma
série de actividades ao seu serviço. Deixa-nos todo o lugar e todo o tempo, sem
o deixarmos, de rezar pelos nossos irmãos da terra ou do purgatório, da falar
(quer dizer, depois da morte, ver do interior o pensamento ou o coração de
outra alma ou do anjo, ao mesmo tempo que lhe desvendamos o nosso próprio
pensamento), de cuidarmos daqueles que estão na terra. Quando Santa Teresa do
Menino Jesus dizia que passaria o Céu a fazer o bem na terra, não eram palavras
vãs ou palavras mais ou menos místicas. Trata-se de um apostolado tão real
quanto eficaz, que será também o nosso no Céu. Estando unida a Deus como uma
esposa, tem todos os direitos. Tem a possibilidade, quando quer, de mobilizar
os poderes angélicos, para fazer o milagre que quer, para aparecer a quem quer.
Se parece aparecer muito poucas vezes, é que age exactamente da mesma maneira
que o seu esposo. Parece-lhe bom deixar, a maioria do tempo, os homens na fé,
para que a pobreza do seu exílio multiplique os desejos do coração. Não pensa
senão nas mesmas coisas que Deus: conduzir os seus amigos à caridade mais
elevada possível. Um dos apostolados mais intensos da Teresinha, consiste em
acolher todos os homens que um dia pensaram nela, na hora em que morrerem. Pelo
braço de Jesus, com o seu corpo psíquico transfigurado pela visão beatífica,
leva-os para o paraíso. Sozinha, exceptuando Maria e José, trabalha mais que todos
os santos, porque é chamada por todos. Não é ela chamada pelas gentes simples
“a Nossa Senhorasinha”, a mais bela imagem de Maria?
Nós próprios, no Céu,
teremos o mesmo poder real sobre Deus. Obedecerá aos nossos mínimos desejos
porque nos verá fazer o mesmo com ele. O nosso apostolado será sem comum medida
com o da terra.
Mas, que acontecerá quando
formos testemunhas da condenação de um dos nossos irmãos? Existe algum motivo
de dor no paraíso? Se for o caso, não devemos pôr em causa tudo quanto foi afirmado
mais acima, sobre a ausência de desejos, a beatitude perfeita? Parece mesmo que
existem provas dessa dor do paraíso, uma vez que Maria, nas suas aparições, não
pára de se mostrar em lágrimas pelos pecadores e pelos condenados. Para
responder a esta pergunta, é conveniente recordar o que afirmámos
constantemente sobre o inferno. Ninguém se pode condenar, senão por uma escolha
livre e firmemente mantida para a eternidade. Durante a vida na terra, Deus faz
tudo quanto é possível para preparar o homem a não fazer essa escolha no
momento da morte. Mas se a faz[238],
Deus alegra-se. Não se alegra porque alguém se separou dele, mas porque o faz livremente. Deus ama os condenados mesmo na
sua prisão, e porque os ama, respeita-lhes a liberdade. Poderia comparar-se a
sua atitude com a de um homem que ama uma mulher com tanta força que faz tudo
para que ela permaneça fiel. Mas, em desespero de causa, fica em paz se ela o
deixa, não porque ela se vai embora, mas porque escolheu o caminho que lhe
agrada[239].
O mesmo se passa com todo o Céu na hora em que os homens escolhem o seu destino
eterno. Qualquer que seja a escolha, tudo é paz[240].
No paraíso, tudo é amor
simples e pacífico, porque tudo é como Deus. Mas, para exprimir aos habitantes
da terra esta caridade eterna, Deus e Maria são obrigados a utilizar uma
linguagem compreensível. Assim, será que compreenderíamos a que ponto Maria
quer a salvação dos pecadores se na suas aparições permanecesse silenciosa e
sorridente? Não veríamos nisso indiferença? Então, Maria exprime a sua caridade
ardente pelo símbolo das lágrimas e, mesmo, lágrimas de sangue. No entanto,
Maria não sofre mais. A sua paz e alegria são tão profundas e estáveis como as
de Deus. Toda a linguagem da Bíblia é da mesma ordem. Deus não quer ver os seus
filhos egoístas: fala da sua cólera, do seu furor e do seu braço vingador. Mas
todos sabem hoje que Deus não se encoleriza como os homens e não tem braço.
Pelo contrário, age e faz tudo para salvar do pecado. Por vezes a sua acção é
forte. A consequência é, para nós, um certo sofrimento, pelo qual nos quer
conduzir primeiro à humildade, depois ao amor, e daí a analogia da cólera de um pai. Experimentamos então
a que ponto isso é parecido com a cólera.
(Coisa certa)
Antes do fim do mundo, o
nosso corpo carnal não nos será dado. Apenas Jesus e Maria o possuem[241].
Deveríamos sofrer com esta falta de uma parte de nós mesmos. Não somos apenas
alma, mas a alma é feita, por natureza, para dar vida não apenas ao psiquismo,
mas também à carne. Esta questão deixou na expectativa muitos teólogos. No
entanto, a solução deste problema parece ter sido encontrada desde os primeiros
séculos da Igreja. St. Agostinho diz:
“Possuir-te, Ó Deus, é ser rico de todos os bens; tudo ter estando longe de ti,
é nada possuir.[242]” Assim
é no Céu, no sentido mais literal. A visão beatífica alimenta a alma ao ponto
de a fazer esquecer o apelo bem real pelo corpo. A sua energia toda é sugada
por essas núpcias com o Cordeiro, ao ponto de não ter outra coisa senão ele.
Mostrámos, no entanto, que
o psiquismo subsiste, quer dizer, todas as faculdade da sensibilidade que são
comuns aos homens e aos animais. Sentidos novos aparecem e desmultiplicam-se,
depois do desaparecimento das consequências do pecado original. Um morto não é
um puro espírito como pensava S. Tomás de Aquino. Além de uma inteligência e de
uma vontade, dispõe dos sentidos, da imaginação, das recordações sensíveis do
passado. Assim, muito antes da ressurreição da carne, o morto é acolhido num
mundo adaptado ao seu psiquismo. É um mundo de imagens magníficas[243].
Quanto ao esposo, prepara
secretamente outras surpresas que não aparecerão senão à hora da ressurreição
da carne. Apenas ele conhece a data[244].
(Coisa certa)
O dia do Senhor, a sua
vinda gloriosa, visível de um extremo ao outro da terra, porá fim aos
nascimentos e às mortes. A terra, tal como é, não mais terá sentido nem
utilidade, tendo todos os homens, sem excepção, feito a escolha para a
eternidade. S. Paulo conta assim o que acontecerá então[245]:
“ Vou revelar-vos um mistério: nem
todos morreremos, mas todos seremos transformados. Num momento, num abrir e
fechar de olhos, ao som da última trombeta, porque ela há-de soar, os mortos
ressuscitarão incorruptíveis, e nós, os vivos, seremos transformados. Na
verdade, é preciso que este ser corruptível se revista de incorruptibilidade,
que este ser mortal revista a imortalidade.”[246]
As palavras de S. Paulo são
claras: se estivermos presentes na terra no dia da vinda de Cristo, não morreremos. Seremos
todos, sem excepção, dispensados da morte e será esse o primeiro presente de
núpcias da parte de Deus. Mostraremos[247]
que as últimas gerações da humanidade serão extremamente cultivadas e espiritualizadas,
mesmo se tiverem tendência a se entregarem a um culto anticrístico. A sua
sensibilidade será apurada, muito mais sensível ao vazio espiritual. É por isso
que a morte não terá verdadeiramente mais utilidade. O reino desesperante do
Anticristo e a vinda gloriosa de Cristo, serão acontecimentos de tal forma
poderosos, que serão suficientes para fazer com que todos os joelhos abanem. Os
condenados, eles próprios, serão dispensados de morrer, sendo a sua escolha
final perfeitamente lúcida e definitiva.
(Coisa certa)
O mundo será pois povoado
por duas espécies de humanos. Os antigos, aqueles que já passaram pela morte,
estarão presentes. Terão acompanhado Cristo ou o demónio no dia da Parusia. Mas
estas pessoas não terão o seu corpo de carne. Estarão face à última geração da
humanidade, que é bem de carne.
Antes da ressurreição da
carne, o homem está privado de uma parte do seu ser. Conserva, sem dúvida, a
sua parte essencial, o espírito, os pensamentos e as escolhas profundas. Mas
tudo parece indicar que conserva também a parte psíquica. Vê, ouve. Conserva,
apesar do desaparecimento do cérebro, com uma grande acuidade, todas as
recordações sensíveis acumuladas durante a vida na terra e que a velhice fez,
por vezes, esquecer. Esta descoberta da sobrevivência da vida sensível é
recente no Ocidente. Deve-se aos estudos do Dr. Raymond Moody sobre as pessoas
vítimas de uma paragem cardíaca. Pelo contrário, o corpo carnal desapareceu. A
sua ausência amputa o morto dos sentidos do tacto e do gosto que lhe estão
ligados. Esta falta é muito pouco incómoda. Os que já estão no Céu estão
perfeitamente felizes. Como poderia ser de outro modo, uma vez que vêem Deus?
No entanto, Deus não nos
deixará eternamente amputados de uma parte de nós mesmos. Nesse instante, soará a trombeta[248], diz
S. Paulo. Esta trombeta simboliza a voz de Cristo. Todo o poder lhe foi dado
por Deus. O Espírito Santo que repousa sobre ele, é descrito na Bíblia como uma
trombeta ou um trovão, por causa da sua força[249].
É a ele que pertence, através da sua humanidade, dar esta ordem.
Dará uma ordem aos anjos.
Eles, utilizando o seu poder natural sobre a matéria que modelam desde a
criação do mundo, colherão da terra e, a partir dos seus elementos,
reconstituirão o corpo completo, perfeito em plena juventude, de todos os
mortos. Será o seu próprio corpo, reconstituído rigorosamente, mas liberto dos
seus defeitos. Os deficientes renascerão em plena posse de todos as suas
faculdades, os trisomíacos não terão os estigmas da sua deficiência senão como
uma glória da sua alma mais humilde. Cada morto, num relâmpago, reintegrará o
seu próprio corpo de que reconhecerá cada uma das fibras.
Não queremos dizer com isto
que este corpo será feito com os mesmos elementos materiais que já foram
utilizados durante a nossa vida na terra (átomos, moléculas)[250].
Afirmamos que o nosso corpo ressuscitado será o nosso verdadeiro corpo físico, tão palpável
e capaz de comer como o de Jesus, depois da ressurreição.
A ressurreição da
carne faz parte da fé. A isso, poderíamos aparentemente objectar com o texto de
S. Paulo na sua primeira carta aos Coríntios[251]:
“Somos semeados na terra, corpo psíquico,
ressuscitamos corpo espiritual. Se há um corpo psíquico, há também uma corpo
espiritual…” A interpretação deste texto poderia conduzir a afirmar o
aparecimento de uma corpo que não mais é feito de matéria, mas que, de facto, é
o de um puro espírito. Os próprios anjos não arranjam por vezes, aparências de
corpos que se podem ver e tocar?[252]
Ora, os Evangelhos não param de nos recordar que S. Paulo não quis dizer isso.
Jesus prova a Tomé, na sua aparição, que tem um verdadeiro corpo. “Põe o teu dedo no meu lado, não sejas
incrédulo mas crente.[253]”
Com a sua autoridade infalível, a Igreja confirmou que se trata efectivamente
de uma ressurreição da carne, quer
dizer, de moléculas palpáveis que um fantasma não possui. Tratar-se-á mesmo o
nosso corpo físico mas será, tanto para os santos do Céu como para os
condenados, liberto de todos os defeitos. Esses defeitos não mais servirão para
nada, uma vez que a nossa escolha já foi feita. Os condenados e os santos
reintegrarão a perfeição do seu ser, a fim de que cada um possa viver como
deseja, longe de Deus ou junto dele. Já no tempo de profeta Daniel, os judeus
sabiam que todos os mortos, sem qualquer excepção, ressuscitariam um dia: “Uma multidão, aqueles que dormem no país do
pó da terra, acordará, uns para a vida eterna, outros para a reprovação e o
horror eternos.[254]”
Deus dará a cada um o seu corpo, respeitando mesmo nos condenados a liberdade
que os conduziu a escolher o horror eterno numa vida sem amor[255].
S. Paulo, ao falar de um corpo espiritual, queria significar que os santos,
como os condenados, reintegrarão o seu
corpo perfeitamente submetido e adaptado ao espírito.
O nosso corpo será
espiritual, no sentido em que obedecerá totalmente ao espírito. Os próprios
condenados, serão dotados dessa liberdade, excepto uma pequena diferença: o seu
espírito estará doente da ausência de Deus. Arderá do interior, com o fogo
dessa ausência. Assim, apesar de um corpo dotado de incorruptibilidade e
perfeitamente submetido à vontade, não tirarão proveito disso. Que serve ao
homem ter uma saúde física perfeita e um controle do seu psiquismo, se não é
feliz? Isso repercutir-se-á, aliás, na sua aparência. O corpo será dotado de
uma grande vitalidade, mas o rosto será sempre deformado pelos efeitos do
egoísmo escolhido. Toda a infelicidade lhes virá do espírito orientado para uma
escolha perversa. Não pensarão senão em si mesmos, na sua obsessão inclinada à
própria realização, mas não poderão realizar esse objectivo longe de Deus, que
apenas os poderia saciar. Espumarão de raiva. Todas as paixões más serão a sua
sorte quotidiana, uma vez que procurarão a felicidade, quer dizer, Deus, ao mesmo tempo que recusam a natureza e as
condições dessa felicidade. É uma contradição interna, escolha da liberdade,
que a Bíblia chama “o horror”.
Os humildes, quanto a
eles, receberão da parte de Deus este mesmo corpo, dotado da mesma perfeição.
Mas, para eles, tudo será sobrelevado em glória. Como poderia ser de outro modo
uma vez que vêem Deus? A Trindade lhes encherá o espírito, cumulando-lhes de
beatitude todos os desejos. Em consequência, a sensibilidade e o corpo estarão
mais do que submetidos ao espírito, depois do milagre da ressurreição.
Encontram-se glorificados, quer dizer, dotados de poderes vindos de Deus.
Propriedades novas e inimagináveis aparecerão[256].
S. Tomás de Aquino, ao olhar a forma como Jesus se comportava depois da
ressurreição, resume-as em quatro palavras: impassibilidade, subtilidade,
agilidade e clareza[257].
Significa a ausência
de todas as más paixões como tristezas, angústias e medos, desesperos. Serão
impossíveis uma vez que Deus, e os nossos amigos estarão presentes. Não
sofreremos com condenação dos maus, uma vez que, tendo-nos tornado simples como
Deus, respeitaremos a sua escolha e alegrar-nos-emos com a sua liberdade. Mas,
todas as paixões positivas serão dadas. Como poderia ser de outro modo junto de
Deus? Alegrias e prazeres sensíveis serão a sorte quotidiana da vida no
paraíso. Isso acontecerá sem qualquer busca de nós próprios, ao serviço
exclusivo e simples do nosso espírito entregue ao amor de Deus e do próximo.
Por causa da submissão completa do corpo ao espírito, jamais teremos que lutar
contra a tendência egoísta dessa sensibilidade. Antes mesmo do aparecimento do
novo mundo físico que Deus construirá como o mais genial dos realizadores,
saciar-nos-á os sentidos com o espectáculo de uma profusão infinita de vida e
de beleza. Não podemos imaginar as alegrias sensíveis, as emoções que suscitará
a vista, através dos nossos olhos de carne[258],
do Salvador, de Maria, a mãe de todos os nossos irmãos ressuscitados e vivendo
connosco no paraíso. Cada pessoa será como uma visão de luz, um paraíso ela
mesma, de cada vez novo e diferente do outro.
Representa para S.
Tomás, a propriedade que tinha o corpo ressuscitado de Jesus, de passar através
de obstáculos materiais. O mesmo acontecerá connosco. Transfigurada pela visão
de Deus, tornada deiforme, a alma receberá o poder natural de dominar cada
parcela do corpo, tornando-o subtil e capaz de contornar pelo interior os
obstáculos dos corpos compostos de átomos. Como se fará isso? Não sabemos. Mas
a ciência moderna conhece já algumas propriedade imensas dessa matéria criada
por Deus. Não se trata sem dúvida senão da parte visível de um icebergue de que
descobriremos as potencialidades, do interior, pela obediência total do corpo.
É a capacidade que
terá o corpo de se deslocar, à velocidade que quisermos e ao sabor dos desejos
da nossa liberdade. Para deslocar um corpo físico, qualquer que seja, mesmo se
revestido das propriedades da luz, é preciso energia. Não disporemos apenas,
como aqueles que escolheram viver longe de Deus, da poderosa vitalidade da
alma. Com efeito, ao vermos Deus, ao vivermos na sua Trindade, disporemos à
vontade de todo o seu poder. Ao menor dos desejos, obedecerá, porque será um
connosco. Poderemos, pois, deslocar-nos no universo e visitar-lhe todos os
recantos, todos os habitantes, sem jamais deixar Deus, à velocidade do
instante, do pensamento. A ciência, através de Einstein, demonstrou os limites
do que é a propriedade natural da luz. A sua velocidade não pode ser ultrapassada,
mas o tempo é uma noção relativa. Ultrapassar a velocidade da luz, é também
encurtar o tempo. Em Deus, tudo isto não fará mais sentido, uma vez que é um
esposo todo poderoso e presente em toda a parte. Poderá transportar-nos, como a
águia e a sua ninhada, a uma velocidade que está fora do tempo. Para que poderá
servir esta propriedade maravilhosa do nosso corpo? Para visitar o universo.
Perguntamo-nos muitas vezes porque é que Deus foi tão generoso na criação.
Porquê tantos mundos imensos que vemos, à noite, cintilar? O mundo novo nada
tem a ver com o miserável aquário que foi a terra. Deus, que é o mais poderoso
dos esposos, é capaz de oferecer a cada um dos seus bem-amados, um universo
inteiro. Há mais galáxias no céu, do que houve seres humanos na terra. Cada
galáxia é imensa ao ponto de um raio de luz levar cem mil anos a atravessá-la.
Passaremos a eternidade a visitar o infinito, sem nunca deixar a visão de Deus
e a presença dos nossos irmãos. Não está excluído que cada um receba, como
presente de núpcias, uma galáxia inteira. S. Paulo escreve[259]:
“Anunciamos o que os olhos não viram, o
que os ouvidos não ouviu, o que não subiu ao coração do homem, tudo o que Deus
preparou para aqueles que o amam.”
A mais bela
propriedade do corpo será sem dúvida a sua claridade.
Não se trata apenas de uma claridade exterior como a do corpo de Moisés depois
do seu encontro com Deus. Trata-se de uma claridade que vem do interior da
alma, irradia nos sentidos e dá ao corpo a juventude da sua santidade. Deste
modo, quanto mais uma alma estiver unida a Deus, mais nos parecerá jovem e
bela. Perguntamo-nos muitas vezes que idade terão os ressuscitados. A questão
está mal colocada porque ligada a uma biologia deste mundo. No outro mundo, ser
de idade, não terá mais o mesmo sentido. Todos, santos como condenados, terão a
plena vitalidade da juventude, mas com esse não sei quê que pode tornar um
velho, mais novo que um adolescente. No cimo de tudo, juntamente com Jesus, o
corpo glorioso de Maria atrairá todos os olhares: “A sua beleza inigualada não rivalizará com as belezas únicas dos seus
filhos”, diz Santa Teresa do Menino Jesus. Parecerá ao mesmo tempo
intensamente jovem e intensamente madura. Parecerá, ao mesmo tempo,
intensamente e intensamente madura.
Parecerá jovem pela pureza, madura pela sabedoria. Cada um dos nossos irmãos
constituirá um templo do Deus único, mas não feito pela mão do homem, onde a
Trindade habitará sem nunca se ir embora. Um único eleito contemplado na terra,
ultrapassará tudo quanto foi feito de belo pelos artistas, desde que o mundo
existe. O mais pequeno no Reino de Deus, o homem mais imperfeito, será tão
belo, que contemplá-lo bastaria para ultrapassar toda a beleza do mundo cá de
baixo.
Os condenados
beneficiarão da mesma qualidade do corpo. O pecado transparecerá através do
corpo ressuscitado. O corpo será, pois, “lustroso” de pecado. Serão velhos. Se
uma criança escolher o inferno, será uma criança velha.
Poderíamos
multiplicar as descrições imaginativas (portanto, bem aquém da realidade) dos
corpos ressuscitados. Tudo o que poderiam dizer os maiores poetas não seria
senão uma contrafacção do mistério. Mais vale deixar a Deus o cuidado de nos
surpreender. Ele prepara essa festa desde a eternidade.
(Coisa certa)
Quando o último homem
tiver acabado de purificar o seu amor através de um purgatório de solidão, tudo
será consumado. Não haverá mais que duas “moradas” no outro mundo, quer dizer,
dois tipos de homens. São simbolizados na Escritura pelo trigo e pelo joio[260].
Trata-se dos habitantes do paraíso e do inferno. Não devemos imaginá-las como
dois mundos separados fisicamente. Sendo uma escolha da liberdade, respeitada
por Deus, o inferno tem o mesmo lugar que o paraíso. É o universo todo e as
suas maravilhas. De facto, Deus dará aos condenados obstinados como presente,
tudo o que desejam. Receberão o poder ao qual aspiram. Terão a posse do
universo. Poderão fazer o que quiserem segunda a escolha da sua liberdade. Uma
só coisa lhes será recusada: a Visão sublime daquele que queria desposá-los.
Devemos então afirmar que as palavras da Escritura que os descrevem condenados
a um tanque de fogo[261]
são vãs imagens? Trata-se, pelo contrário, de uma triste realidade, pior ainda
que a letra do texto deixa imaginar. Com efeito, por causa da sua maldade
interior, toda esta liberdade e poder se voltará contra eles. Não aproveitarão
nada. A vista de uma flor ou de todas as maravilhas criadas por Deus, será
fonte de alegria para os santos[262].
Para os condenados, será mais uma farpa no seus coração invejoso. Mas, o grande
sofrimento será para eles a vista de um eleito. Não suportarão ver a humildade
e a glória que ela merece. Será para eles um objecto de raiva que lhes lembrará
dolorosamente a perda que sofreram. Fugirão,
pois, para o mais longe possível, para os recantos mais sombrios do
universo. Separar-se-ão para sempre de toda a presença viva e habitarão os
lugares desertos. De preferência a ceder ao amor e arrependerem-se, ruminarão o
ódio para sempre.
(Coisa certa)
O capítulo 7 já
descreveu, tanto quanto é possível, o que constitui a própria essência do paraíso: “Ver Deus face a face e não possuir mais
nada, vale infinitamente mais que possuir todo o universo e ter perdido Deus[263].”
No entanto, Deus prepara-se para oferecer aos seus amigos, além dele mesmo, um
universo inteiro. Não se trata de uma exagero literário. Dissemo-lo: “segundo o que está escrito, anunciamos o
que os olhos não viram, o que os ouvidos não escutaram, o que não subiu ao
coração do homem, tudo o que Deus preparou para aqueles que o amam[264].”
A partir daqui, abordamos as graças suplementares que Deus preparou[265].
É um trabalho com limites. Inacreditáveis surpresas nos esperam. Entre elas,
algumas são certas.
Depois da
ressurreição da carne, o homem reencontra a plenitude das faculdades físicas, o
sentido do tacto inclusive. Em boa lógica, a presença deste corpo deve ser
acompanhada pela recriação de um universo físico que lhe corresponda. Na hora
prevista, imediatamente depois da vinda de Cristo, conjuntamente à ressurreição
dos mortos, ele preparará a realização de bens inimagináveis, até na
sensibilidade e no corpo, até no mundo físico que transformará, para que
possamos admirar eternamente a sua riqueza e beleza[266].
Não podemos fazer uma
ideia da energia que empregará para nos cumular. Deus será parecido com um
noivo finalmente reunido à sua amada. Não sabe o que fazer por ela. Dá-se a ela
e isso chega. No entanto, acrescenta todas as loucuras que o amor pode
imaginar: vestes sumptuosas, reinos, amigos, flores, animais… Deus
comportar-se-á do mesmo modo, como um príncipe dos contos, à medida do seu
poder absoluto. Criará um universo grandioso de tal modo que a eternidade não
nos chegará ara o visitar. A vida eterna de felicidade, Deus faz corresponder
um universo infinito de beleza.
A destruição da terra e das suas escórias
(Coisa certa)
Começará a sua obra,
destruindo. S. Pedro descreve-nos a sua acção: “Ele virá, o dia do Senhor, como um ladrão. Nesse dia, os céus se
dissiparão com fragor, os elementos abrasados se dissolverão, a terra com as
obras que encerra, será consumida[267]”.
Como todos os textos apocalípticos, este texto fala em primeiro lugar da morte
individual. Mas descreve também o fim do nosso planeta. Deus não vai querer
deixar que subsista porque está totalmente manchado pelos restos dos nossos
pecados. Nada deverá ficar das imensas cidades onde o homem tão raramente viveu
para o próximo. Ninguém terá pena das catedrais góticas, que foram construídas,
como toda a obra humana, numa mistura de orgulho e santidade, onde se rezava
tão mal no tempo em que Deus se escondia na sua eucaristia. Ninguém quererá
conservar as imensas bibliotecas, uma vez que leremos as ciências, de livro
aberto, no rosto de Deus e na ciência dos anjos. Não deverá subsistir nada do
mundo antigo, não ficará pedra sobre
pedra[268],
porque o mundo novo o substituirá. Mesmo as obras feitas por Deus para esta
terra, desaparecerão. Os textos dos Evangelhos serão queimados pelo fogo de que
fala S. Pedro[269]:
Teremos o próprio Cristo presente diante de nós. “As profecias? Desaparecerão. As línguas? Calar-se-ão. A ciência?
Desaparecerá. Porque imperfeita é a nossa ciência, imperfeita também a nossa
profecia. Mas, quando vier o que é perfeito, o que é imperfeito desaparecerá.”[270]
(Coisa não decidida
tanto o poder de Deus nos ultrapassa. Julgue o leitor)
Depois da destruição
da terra, Deus começará a formar um novo universo. Tratar-se-á de um universo físico, tanto quanto o nosso corpo, mas
adaptado à sua vida nova. Será, pois, como ele, eterno, liberto de toda a
corrupção e geração, dispensado dessa lei de desagregação (a entropía) que
actualmente nos caracteriza. É o próprio Deus que, ao sustentá-lo como
sustentará o nosso corpo e o dispensará de se alimentar, o tornará
incorruptível. Compreenderemos nessa hora, a utilidade de biliões de mundos de
que nos apercebemos da luz, nas noites descobertas: existem biliões de estrelas
porque esses mundos estão preparados para nós depois da ressurreição. Poderemos
visitá-los e quem sabe o que Deus lá terá preparado de beleza, novidade e
deslumbramento? Estes mundos são habitados por criaturas espirituais? Nada na
revelação nos permite afirmá-lo ou negá-lo. Grandes teólogos responderam não a
esta pergunta, afirmando que éramos o centro do mundo: a prova deste facto
parecia-lhes saltar aos olhos, uma vez que o Verbo de Deus fez-se homem “por
nós”. A resposta é sólida, pelo menos na aparência. Mas esquece um detalhe: se
o Verbo encarnou[271],
é que é capaz de loucuras de amor de que ninguém é capaz de imaginar o limite.
Ninguém o impediu de criar os anjos e de os levar à visão beatífica num
instante, desde o primeiro acto do seu amor por ele. Do mesmo modo, quem pode
afirmar em seu nome que é seguro, que ele não pôs, em cada um dos biliões de
galáxias, seres dotados de vida espiritual que destina a serem nossos
companheiros de felicidade para sempre? Não podemos saber com certeza senão uma
coisa: se os criou, é que quer dar-se a eles como a nós e aos anjos, na
felicidade da sua presença. Como a nós e aos anjos, não pedirá senão uma
condição: humildade e amor oferecidos em troca.
Todas as artes, todas
as belezas da terra parecerão pálidas em comparação com a beleza do Além. Uma
vez que a beleza é o encontro vibrante de um objecto e de uma inteligência
sensível, uma vez que tudo será mais luminoso e que a própria sensibilidade
será sobrelevada, as músicas do paraíso tornarão cinzentas as antigas músicas
da terra. Que será, pois, a arte de João Sebastião Bach ressuscitado?
Impossível de imaginar-lhe a qualidade, mesmo ouvindo a sua música terrestre.
Mas a música estará lá bem presente.
(Coisa não decidida.
Julgue o leitor)
“Toda a criação geme
na expectativa da revelação dos filhos de Deus[273].
“Eis que estabeleço a
minha Aliança convosco e com todos os vossos descendentes depois de vós, e com
todos seres animados que estão convosco: aves, animais domésticos, todos os
animais selvagens, em suma, tudo quanto saiu da arca, todos os animais da terra[274]”.
Vamos agora tratar de
uma questão muito importante aos olhos das crianças, infelizmente declarada
como sem importância por gerações de teólogos, excepto os da grande Escola
franciscana (S. Boaventura): que prevê Deus para os animais?
Não vivem eles na
terra connosco, colocados por Deus ao nosso serviço? O seu papel é múltiplo. O
mais importante parece ser o seu testemunho involuntário, mas real, da riqueza
do Criador[275]
Mas, a par disso, alimentam-nos com a sua carne, fazem bem pela sua presença às
pessoas sós e angustiadas, às crianças em busca de equilíbrio. Servem de
material de experiência e, pelo menos quando aos animais superiores, fazem tudo
isto através de uma vida marcada de sofrimento físico e psíquico. Seria falso
negar o sofrimento dos animais, mesmo se ele não é “senão” sensível, e se o
facto de não terem espírito capaz de reflectir sobre o sentido da vida, os
dispensa dos sofrimentos espirituais.
Até aos anos 70, a
filosofia escolástica ocidental, afirmava que os animais não podiam sobreviver
depois da morte, no outro mundo. “Não têm
como nós uma parte deles mesmos capaz de sobreviver na ausência do corpo.
Portanto, desaparecem.” De igual forma, não são chamados por Deus à visão
beatífica: não receberam nenhum desejo dela, uma vez que Deus é Espírito e eles
não são feitos senão de carne[276].
Entretanto, a
descoberta da N.D.E.[277],
modificou consideravelmente os dados. Viu-se que, para além da lógica do
filósofo Aristóteles, a morte não destruía o “psiquismo”. Para Aristóteles, o
homem possui três graus de vida. O corpo
físico, palpável, é composto por carne. Decompõe-se com a morte. O psiquismo é sede das faculdades vitais
que nos são comuns com os animais. Segundo ele, as faculdades como os cinco
sentidos, a memória das coisas sensíveis, a imaginação, a intuição animal,
desaparecem necessariamente com a destruição do cérebro que constitui o seu
órgão. Para ele, apenas o espírito e
as suas duas faculdades próprias do homem (inteligência das coisas imateriais,
vontade livre) sobrevive, uma vez que ultrapassa o órgão do cérebro.
Ora, a vivência dos
moribundos mostrava uma coisa totalmente diferente. Sobreviviam fora do corpo e
viam, ouviam… Desde há vários milénios, as religiões antigas, tais como a do
Egipto antigo ou da Índia, conheciam a sobrevivência do psiquismo humanos. Uma
religião ainda mais primitiva como o animismo, que remonta aos caçadores,
ensinava os rituais para pedir desculpa aos “espíritos animais”, da necessidade
de os ter morto na caça. Desta forma, as futuras caçadas não eram perturbadas
pelo aviso dos animais mortos aos animais vivos. Tudo isto indica uma tradição
profunda e hoje filosoficamente acessível à razão[278].
Que acontece aos
animais? Para responder à pergunta sobre a sua presença no mundo novo, e para
ter com certeza a resposta justa, existe um método original mas eficaz. É
preciso perguntar a uma criança. Este método teológico não deve fazer sorrir. É
aconselhado pelo próprio Cristo, uma vez que afirma que as crianças que
souberam conservar uma alma de criança têm o seu anjo que contempla
incessantemente a face do Pai[279].
É preciso perguntar-lhe o seguinte: “Se tu estivesses no lugar de Deus e
tivesses o poder de deixar os animais vivos ou de os ressuscitar para
ornamentar o mundo novo, ao mesmo tempo que seriam incapazes de fazer mal aos
outros animais[280],
fá-lo-ias?” A resposta levanta tão poucas dúvidas que é inútil insistir mais.
Deus fará a mesma
coisa, não apenas por nós mas também por eles a fim de que possam receber uma
compensação e um agradecimento sensível
pelos sofrimentos sensíveis que
suportaram por nós na terra[281].
O paraíso deles não será a visão de Deus, mas a nossa presença. Como deveria
ter sido no paraíso da terra, serão atraídos pela doçura dos santos, como eram
já pela de S. Francisco de Assis ou St. António de Pádua.
Além disso, convém
que as criaturas materiais como os animais e as plantas permaneçam, a fim de
que nada falte à perfeição do outro mundo. Com efeito, este mundo novo, verá
cada coisa atingir a sua finalidade que é Deus, segundo uma hierarquia adaptada
ao modo de cada um. A ordem será fundada na caridade. Deus, que é o amor não
criado, estará no cimo. Depois, vêm as criaturas espirituais que participam na
caridade, quer dizer, os santos. E o mais elevado de entre eles, nesta
hierarquia nova da Jerusalém celeste, é Jesus que, na sua humanidade, é um com
Deus. Vem depois a Virgem Maria, cujo o amor de caridade ultrapassa o dos
anjos. Ela recebeu uma maior participação na glória. A ordem das criaturas
espirituais, quer dizer, dos anjos e dos homens, segue-se e não é medida pela
perfeição natural de cada um mas pela perfeição sobrenatural. Vêm depois os
seres que não participam na visão da Essência divina. Alguns estão excluídos
por natureza, como os animais, as plantas e o mundo mineral, uma vez que estas
realidades são desprovidas de faculdades espirituais. Outras realidades estão
excluídas da visão beatífica por causa da escolha da sua vontade. Os condenados
constituem os seres mais baixos, não por causa da sua natureza que ultrapassa a
do mundo material, mas por causa da escolha que os torna inferiores aos bens
que escolhem. É assim que, já na terra, vemos homens pervertidos comportarem-se
de maneira inferior aos animais. E, pela sua existência, proclamam, como o
resto da criação, a glória de Deus, que deixa cada um livre de se separar dele.
Em consequência, no mundo novo, nenhum dos elementos essenciais à sua perfeição
geral, faltará[282].
Mas Deus não se
contentará com as espécies que viveram na terra, embora numerosas e diversas.
Multiplicará à saciedade as maravilhas, ao ponto que cada parcela do universo
será… Mas, mais vale calar-nos e fazer silêncio. Deus prepara-se[283].
Um tal rigor sobre o
destino dos homens depois da morte, espanta. Onde é que o autor foi buscar isto
tudo? Teria conversas secretas com os mortos? Neste capítulo, queria explicar
àqueles que colocam a questão intelectual das minhas fontes, a que ponto o
teólogo faz um trabalho de burro de carga, mas burro de Cristo. Descobre por
caminhos abruptos e complicados o que os filhos de Deus sabem desde sempre,
simplesmente frequentando-o na oração.
Entre tudo o que foi
dito anteriormente, queria insistir num exemplo: como é que posso afirmar com
certeza que Cristo aparece diante dos olhos físicos[284]
de todo homem, com o seu corpo luminoso, na hora da morte. Se for um simples
crente, isto pôde parecer-lhe evidente. O coração dos fiéis assemelha-se ao de
João no evangelho: corre mais depressa que Pedro. Uma bretã, nascida nos anos
1930 na Finisterra, dizia: “quando era pequena, o nosso prior ensinava-nos no
catecismo que Cristo viria buscar-nos à hora da morte, acompanhado de Maria e
dos santos…” Se for teólogo, deve ter dado um salto. Não está enganado. Este
ponto concreto, é o fruto último de uma longa investigação e ela está longe de
ter chegado ao fim. O sucessor de Pedro ainda não lhe confirmou a verdade.
Os teólogos e a salvação dos homens: 2 000 anos de um laborioso labor
Quando Jesus, o Verbo
de Deus feito homem, completou a sua obra, os teólogos puseram-se a reflectir e
tiveram medo. A maioria dos homens parecia-lhes votada, depois da morte, ao
inferno eterno.
Eram realistas:
observaram a humanidade à luz da revelação e não puderam senão constatar o
seguinte facto. Mesmo entre os homens que tinham escutado a Boa Nova do amor de
Deus, muito poucos eram capazes de permanecer admiradores por toda a vida.
Muitos, depois de terem sido verdadeiramente tocados pela mensagem, acabavam
por esquecê-la. Não punham nisso má vontade mas deixavam-se, a maioria das vezes,
absorver pelas mil ocupações da vida. Estes cristãos não mais amavam. Viviam como os pagãos que os
rodeavam, à procura do bem-estar quotidiano. Esta constatação é surpreendente
e, no entanto, completamente prevista por Cristo. Lembremo-nos do seguinte texto:
“É largo e espaçoso o caminho que conduz
à perdição e há muitos que o seguem, mas é estreita a porta e apertado o
caminho que conduz à vida e são poucos os que o encontram[285]”.
Recordando-se que
ninguém pode entrar na Visão beatífica se não ama (Agape) Deus, estes teólogos puseram-se a contabilizar à sua volta,
aqueles que seriam eternamente condenados. Todo o homem em que se pudesse ver a
menor parcela de amor de amizade por Deus, parecia-lhes apto a ser salvo. Os
teólogos não ignoravam que Deus seria capaz, depois da morte, de purificar este
amor por fraco que fosse. Mas todo o homem que não amasse Deus desta forma, e
que morresse sem a caridade,
parecia-lhes perdido definitivamente. O primeiro, St. Agostinho, desenvolveu
esta tese, seguido por S. Tomás de Aquino. Com efeito, era certo, e isso ainda
continua a ser verdade, que o amor de caridade devia existir no homem antes da morte. Muito depressa, a
palavra do papa de Roma lhes confirmou a intuição: o tempo da escolha é a vida na terra. Depois da morte vem o tempo de
receber o salário. Podemos supo-lo: as portas do inferno estavam largamente
abertas. Estavam não apenas abertas para os pagãos, mas também para as crianças
mortas sem baptismo. A teologia dos Limbo, estabelecida por St. Agostinho,
mostra que estas crianças não podem senão estar separadas de Deus para a
eternidade, ainda que sem sofrimento, uma vez que morreram sem a presença de
Deus que lhes teria permitido salvar-se, quer dizer, desposar Deus.
Durante séculos, esta
visão terrível alimentou os cristãos. Parece que este erro (porque se trata de
um, dirá um dos sucessores de Pedro no século XX) agradava a Deus. Com efeito,
paradoxalmente, deu frutos salutares.
Muitos, assustados pela perspectiva do inferno, voltaram-se para Deus. O homem
é feito de tal forma que o medo o pode converter. Sobretudo, a evangelização
dos povos não se fez senão graças a esta teologia, pela mesma razão que impele
hoje as testemunhas de Jeová a gastarem-se no porta a porta. S. Domingos, por
exemplo, passava noites inteiras a chorar, suplicando a Deus: “Que vai ser dos pobres pecadores?” S.
Francisco Xavier, partiu a evangelizar as Índias para salvar alguns pagãos do
inferno. Até hoje, milhares de missionários cristãos (e muçulmanos) partem,
impelidos por este desejo de salvação dos seus irmãos com má sorte. Foram os
frutos positivos produzidos, no entanto, por uma teologia do medo.
Mas esta teologia é
verdadeira? No século XIX e, sobretudo, no século XX, grandes autores
teológicos, deram-se conta que muitos destes ensinamentos, embora habitualmente
feitos de cátedra desde há séculos, nunca tinham sido confirmados oficialmente
pela Igreja. Os papas, assistidos pelo Espírito Santo, que por causa da sua
ajuda não se podem enganar no ensino da fé, não falaram nunca, por exemplo, da
condenação das crianças mortas sem baptismo. Nenhum dogma se pronunciou sobre a
certeza da condenação dos pagãos! Os teólogos mostraram que, muitas destas
conclusões assustadoras, não eram senão a opinião de certas escolas da Idade
Média, opiniões lógicas, sem dúvida, com uma parte da fé, mas certamente não
com a totalidade da fé. Era o que cada vez melhor compreendiam os santos. A sua
oração e meditação, tornava-lhes cada vez mais evidente este aspecto
fundamental da fé: “Depois de morrer na cruz, como é que Deus poderia rejeitar
para a eternidade alguns dos seus filhos ‘culpados’ de nenhuma outra coisa
senão o não terem ouvido falar da sua existência durante a vida?” O Cura de
Ars, Marta Robin (que não é ainda uma santa canonizada. Por isso, os seus
escritos são citados a título de testemunho), para citar apenas alguns, não
pararam de se interrogar, mas não deram solução. Então, muitos padres que se
tornaram prudentes, fizeram a escolha de não mais falar dos mistérios do outro
mundo.
Como encontrar a verdade em teologia católica?
É uma atitude
excessiva, dissemo-lo no prefácio. A solução está ao alcance da mão. Está
necessariamente contida no Evangelho ou na Tradição da Igreja, uma vez que tudo
foi dito. É o que afirma o Apocalipse de S. João[286]: “Quem ousar acrescentar-lhe alguma coisa,
Deus o castigará com todos os flagelos deste livro!”
Como a encontrar?
Como estar seguro de dizer o que Deus disse? No povo cristão, depois do
Concílio Vaticano II, há vozes que tentam, mas vão demasiado longe, uma vez que
varrem de uma penada 2 000 anos de cristianismo: “Deus é amor, não pode rejeitar ninguém. Perdoará mesmo a Lúcifer. O
inferno não pode ser eterno.” A boa vontade deste clamores é evidente. Mas,
falta-lhes qualquer coisa. Não mais sendo formados em teologia, buscam em
direcções desde há muito manifestadas pela Igreja, como caminhos sem saída. O
pecado de Lúcifer nada tem a ver com o perdão de Deus[287].
Não é perdoado porque se ri de o ser.
Desta forma, para
evitar partir de falsos problemas quando queremos fazer teologia, é prudente
lembrar-se constantemente do que se segue: existe um método que permite evitar
a maioria dos erros. É o método que segui. Julgue o leitor.
O método: Escritura, Tradição e confirmação de Pedro
(Coisa certa e
fundamental)
A única autoridade
que de forma absoluta é certa em matéria de Revelação, é a palavra do Deus
único e eterno.
Está materializada na Bíblia em palavras humanas. Traduzir verdades infinitas pela
analogia com palavras limitadas é impossível. É, no entanto, a aposta que Deus
fez ao dirigir-se aos homens através das palavras de diversos profetas, depois,
fazendo-se ele próprio, homem. Servi-me dos textos explícitos da Bíblia de cada
vez que era possível. Mas, é preciso reconhecê-lo, nunca o fiz de forma
material. Nunca disse, por exemplo, que o fogo do inferno de que fala Jesus,
era um fogo material. Porque procedi deste modo? Porque a Bíblia é um
verdadeiro labirinto. Alguns textos são imagens. Outros falam no sentido
próprio. Os protestantes pensaram poder compreender por si mesmos, baseando-se
apenas no texto. Esperavam libertar-se da autoridade dos papas. Entregaram-se
de pés e mãos atados, às diversas interpretações dos seus diversos chefes.
Existe felizmente uma
segunda fonte. É uma ajuda prática que católicos e ortodoxos se unem em
reconhecer. Trata-se dos santos
canonizados e, em particular, dos
doutores da Igreja. Ninguém pode ser canonizado sem ter obtido de Deus,
depois da morte, algum milagre notório. Um milagre não é um simples prodígio
parapsicológico. É um fenómeno que ultrapassa as leis da natureza e que vem
necessariamente de Deus[288].
Se Deus manifesta que abençoa desta forma certos teólogos mortos, é que a sua
teologia deve ser preferencialmente boa e verdadeira. Foi desta forma que a
Tradição da Igreja não parou de se aprofundar. De cada vez que me foi possível,
baseei-me nesses santos. S. Tomás de Aquino para o conjunto da teologia, Santa
Catarina de Génova[289]
para o Purgatório, Santa Teresa do Menino Jesus para o destino das crianças
mortas, etc. Tudo isto parece simples e impossível de parar. Infelizmente, os
maiores santos teólogos, não pararam de se contradizer… Disseram tudo e o
contrário. S. Tomás de Aquino, dominicano, nunca acreditou que Maria era a
Imaculada Conceição. S. Boaventura, franciscano, ensinava-o na mesma época.
É por isso que um
último meio útil e prático foi previsto por Jesus antes da sua paixão: trata-se
da pessoa de Pedro. Há um carisma particular, dado a um homem marcado pelo selo
da autoridade, para confirmar os seus irmãos nas suas interpretações laboriosas
da Sagrada Escritura. Jesus afirma-o a Pedro, o primeiro papa: “Rezei para que a tua fé não falhe. Quando
voltares (da tua negação), confirma os teus irmãos[290]”.
Quer se acredite ou não, somos obrigados a admitir que mesmo os papas
corrompidos permaneceram infalivelmente fiéis à mesma fé. Estabeleceram
fielmente os dogmas da Igreja, às centenas: “Esta afirmação é verdadeira. Podes
basear-te nela sem medo.”
Sendo católico, fiz a
aposta de escutar a Igreja. Não está na moda, nos nossos dias. No entanto, na
intersecção de três caminhos (Ensinamento dos santos, Escritura e confirmação
de Pedro), encontrei algo de único: aí, a Luz e o Amor, que são as marcas de
Deus, uniam-se.
Alguns dogmas, é
preciso reconhece-lo, são difíceis de compreender e aceitar. Assim, o da
eternidade do inferno, punha problema. No entanto, e é o que caracteriza a fé,
é preciso ter a audácia, em toda a confiança, de aderir à verdade deste
ensinamento. Se Pedro falou, é que o Espírito Santo confirmou pela sua boca. Releiam
o capítulo sobre o inferno. Mesmo o inferno proclama que Deus é amor. É bom
sinal, porque nada, no Evangelho, se compreende fora deste amor.
A verdade relativa à salvação, particularmente, a hora da morte
(O teólogo é um
investigador da verdade total)
Baseado neste método,
eis como é possível descobrir que “Cristo
virá na sua glória julgar os vivos e os mortos”, não apenas no fim do
mundo, mas na hora da morte de cada um.
No decurso da sua
história, Pedro confirmou centenas de verdades sobre a fé. Entre elas, quatro
são notórias. Os grandes teólogos do passado, St. Agostinho e S. Tomás de
Aquino, já as conheciam.
1- Primeira verdade segura: Só a caridade abre o Céu
“A vida eterna, é conhecer-te a ti, o único verdadeiro
Deus, e aquele a quem enviaste, Jesus, o Cristo[291]”.
Em termos simples,
não entraremos na Visão de Deus senão o desposarmos. Tratar-se-á de um
verdadeiro casamento, com pleno conhecimento e por amor, unicamente por amor.
Face à crise da
Reforma que ensinava que a confiança em Deus era suficiente para a salvação, a
Igreja católica foi conduzida, durante o Concílio de Trento[292],
a pronunciar-se definitivamente sobre as condições da entrada na visão de Deus.
Daí saiu um texto cujo rigor esclarece sem ambiguidade este problema. A Sagrada
Escritura mostra que ninguém pode entrar
no Reino de Deus se não renascer da água e do Espírito Santo[293].
Que significa este banho de regeneração sem o qual o homem permanece separado
de Deus, afastado da adopção filial que ele propõe? A resposta é segura, precisa
o Concílio[294]:
é de amor que se trata, mas não de qualquer amor. A confiança de Lutero (a fé)
é necessária, mas não basta. Deus quer fazer de nós a sua esposa. Ele não casa
com uma serva mas com alguém que experimente por ele uma verdadeira amizade: íntima, recíproca e de uma ternura
de igualdade.
2- Segunda verdade segura: Deus propõe a todos a salvação
Antes de nos
debruçarmos sobre as confirmações solenes trazidas pela Igreja, eis um texto da
Sagrada Escritura: “Então, toda a carne
verá a salvação de Deus[295]”.
A verdade desta Palavra de Deus não teria outra necessidade de demonstração
senão o Evangelho. Ela é o Evangelho. Aquele que medita na cruz de Jesus, vê
através do acto redentor de Deus feito homem, a evidência desta proposição[296].
Isto permite rejeitar
sem equívoco as teorias tradicionais de St. Agostinho ou de S. Tomás de Aquino,
sobre o Limbo eterno das crianças mortas sem baptismo e sobre a condenação dos
pagãos. É impossível que estes humanos sejam separados de Deus apenas por causa da sua ignorância do Evangelho. Ele quer, efectivamente,
propor a salvação a todos os homens, portanto, revela-se numa altura ou noutra
a todos os homens. Não seria capaz de tolerar que um ser por ele amado, ficasse
eternamente na ignorância do que ele quis para ele. Resta saber de que forma
Deus procede para salvar todos os homens. Neste início do terceiro milénio,
Pedro não respondeu doutra forma senão por esta frase elíptica: “por um modo só de Deus conhecido.”
A ausência de espaço
de tempo entre a separação da alma e do corpo (a morte), e o julgamento
particular pelo qual Deus dá à alma o que ela merece, é uma verdade de fé que
não deixa aos teólogos nenhuma outra alternativa[297].
Devemos este dogma a uma definição solene do papa Bento XII, na sequência da
controvérsia com o seu predecessor João XXII[298].
Este documento é “ex cathedra” (solenemente marcado de
infalibilidade).
Citamos os excertos
que interessam o nosso objectivo:
“Pela presente constituição, que permanecerá para sempre em
vigor, e pela nossa autoridade apostólica, definimos que, segundo a disposição
geral de Deus, as almas de todos os santos que deixaram este mundo, estão no Céu
com Cristo imediatamente depois da morte e a purificação de que falámos,
para aquelas que tiverem necessidade, antes mesmo da ressurreição do corpo e do
Julgamento geral, e isto depois da Ascensão do Senhor e Salvador Jesus Cristo
ao Céu.
Além disso, definimos que, segundo a disposição geral de
Deus, as almas daqueles que morrem em estado de pecado mortal descem imediatamente
depois da morte ao inferno, onde serão atormentadas pelas penas infernais.”
O rigor da linguagem
escolástica deste texto e a solenidade da sua apresentação, não deixam qualquer
dúvida sobre a verdade do que define. Portanto, fazemo-lo nosso e admitimos que
não existe nenhum espaço de tempo entre a separação da alma e do corpo (a
morte, no sentido teológico do termo) e a aquisição da orientação eterna da
alma. Na época de S. Tomás de Aquino ou de St. Agostinho, se este dogma não
fora ainda solenemente confirmado por Pedro, nem por isso era menos conhecido.
Parecia evidente aos antigos que o homem não era plenamente homem senão com o corpo.
É fácil compreender agora, como chegaram a concluir, muitas vezes sem poder
explicar, mas por fidelidade à sua fé, a condenação eterna de milhões de pagãos
e de recém-nascidos. Se toda a pessoa humana que morre sem a caridade é de imediato conduzida ao inferno eterno,
não há mais esperança a ter para os não crentes e as crianças não baptizadas. A
ausência de espaço tempo, a impossibilidade aparente de uma última pregação na
hora da morte (a inconsciência do agonizante estando, segundo eles, experimentalmente
provada), devem conduzir a esta conclusão.
Mas, será que não
esqueceram uma peça do puzzle, que tornaria tudo límpido e simples? Não podemos
deixar de admirar, ao mesmo tempo que rejeitamos a tese, a fé de St. Agostinho
e S. Tomás de Aquino, que os leva a aderir a um mistério que a sua caridade não
compreende.
Este dogma não é
senão a consequência dos anteriores: se Deus propõe a todos a salvação, através
da “pregação” do Evangelho[299],
uma vez que esta salvação consiste numa caridade escolhida (Trento), uma vez
que, por outro lado (Bento XII), a alma recebe o que merece, é que o Evangelho
lhe é pregado antes da morte.
Infelizmente, não
dispomos nos Evangelhos, em apoio desta verdade, senão de textos de tipo
apocalíptico. A dificuldade destes textos é que englobam numa só perspectiva,
realidades diversas como a ruína de Jerusalém, a morte individual, o fim das
sociedades, o fim do mundo. Entre os textos deste género, podemos citar Mateus
24,14: “Esta Boa Nova do Reino será
proclamada no mundo inteiro, como testemunho, à face de todas as nações. E
então virá o fim.” Aplicado à morte individual, poderia ser traduzido
assim: o Evangelho será pregado a todo o homem, depois virá a sua morte. A
constituição de Bento XII, iluminada pelos outros pontos da fé que
desenvolvemos, permite concluir, com uma certeza que dá a confiança no amor de Deus (que não seria capaz de
permitir que um homem fosse condenado sem liberdade) e na verdade de Deus (que não seria capaz de permitir que o
Magistério da Igreja se tivesse enganado tão gravemente sobre o “imediatamente depois da morte”), a
afirmação seguinte: todo o homem recebe durante a vida na terra, a proposta explícita da salvação.
Se a nossa confiança
em Deus adere a esta última verdade, fá-lo com grande dificuldade, por causa da
enorme contradição aparente que a experiência parece mostrar. O próprio Cristo
manifesta que é uma contra verdade (aparente), pelo menos para os homens que
viveram antes da sua vinda: “Na verdade
vos digo, há muitos que gostariam de ter visto um só dos meus dias que vós
vedes e não viram”.
Aqui se encontra a
dificuldade da fé dos fiéis e dos teólogos atentos à salvação dos seus irmãos:
na verdade, Deus cala-se. Muitos
morrem não suspeitando nada do seu amor. No entanto, é preciso admitir com
realismo o escândalo. Se ignoram a possibilidade da caridade, é que morrem sem
terem entrado na salvação, segundo S. Paulo: “Como o invocar sem primeiro acreditar nele? E como acreditar nele sem primeiro o ouvir? E como
ouvir sem pregador?[300]”
Mesmo imaginando que, depois da Encarnação de Cristo, todas as nações da terra
tenham ouvido falar da Boa Nova, o problema não ficaria resolvido: como
explicar o atraso entre o pecado original e a Redenção? Nessa época, todos os
homens, salvo excepção notória, morriam ignorando absolutamente tudo da caridade
de Deus. Era-lhes, bem entendido, impossível amá-lo de caridade em troca, e
entravam na morte com um grande terror da injustiça e da dureza “dos deuses”.
Igualmente, nas cristandades mais fervorosas, quem podia pretender ter captado
toda a urgência da mensagem? A vida é longa, as preocupações são muitas e Deus
bem longe. S. Tomás de Aquino fazia, na sequência de Aristóteles, esta reflexão
desiludida: “a maioria vive no sensível[301]”.
Uma perturbação que estimula o teólogo na sua investigação
Esta tensão entre a
fé que ensina solenemente que Deus propõe a todos os homens a salvação durante
a vida na terra e a constatação experimental do facto inverso, é fonte de
perturbação. Recordemos a perturbação análoga que se apoderou da reflexão
judaica no Antigo Testamento, onde uma fé ensinava sem ambiguidade que “Deus enche de bens os homens de coração
recto e manda embora os ricos de mãos vazias”, e a constatação quotidiana
do inverso. Foram necessárias várias ruínas e deportações de Israel, para que
alguns compreendessem que Deus não tem a lógica do homem. É assim que o teólogo
procede. A oposição aparente entre fé e realidade, longe de ser uma tortura,
constitui o lugar das descobertas. Dizíamos antes, que a fé e a experiência não
podem entrar em contradição, Deus sendo Criador de tudo o que é conhecido pela
fé ou pela experiência. Daí brota a luz.
A verdade sobre a hora da morte
O próprio S. Paulo,
escreve na epístola aos Romanos[302],
que um homem não pode tornar-se discípulo de Cristo, sem que um missionário lhe
tenha previamente pregado este mistério. Em consequência, uma vez que o
Evangelho não é pregado a todos os homens naquilo que vemos da sua vida na
terra, mas que é certo que é pregado, é, pois, que esta pregação tem lugar no
que não vemos da vida na terra, a saber, à hora da morte, nos instantes que
precedem a separação da alma e do corpo.
Temos de admitir que
todo o homem recebe, antes da morte, a revelação que lhe permite escolher e
amar Deus. Se não a recebe durante o tempo que vemos da sua vida na terra, é
porque a recebe no tempo que não vemos: a hora da morte.
O esquema seguinte, resume
as etapas da vida:
visão beatífica
Concepção nascimento vida
terrestre morte e vinda de Cristo escolha
(-9 meses) (primeira morte) inferno (segunda morte)
Tudo isto lhe pareceu
complicado. É assim. O teólogo encontra o que é evidente, desde há muito, ao
simples crente. Se faz o seu trabalho de intelectual, humildemente, acaba por
receber de Deus uma confirmação. Uma simples criança vem mostrar-lhe que fez um
bom serviço. É preciso citar, por exemplo, os escritos de Santa Faustina[303],
uma simples religiosa polaca, sobre este tema:
“Acompanho muitas vezes as almas
agonizantes e obtenho-lhes a confiança na misericórdia divina. Suplico a Deus
que lhes dê toda a graça divina, que é sempre vitoriosa. A misericórdia divina
atinge mais do que uma vez o pecador, no último momento, de uma forma estranha
e misteriosa. No exterior pensamos que tudo está perdido, mas não é assim. A
alma iluminada por um poderoso raio da graça suprema, volta-se para Deus com um
tal poder de amor, que num instante recebe de Deus o perdão das suas faltas e
dos seus castigos. Não nos dá no exterior, nenhum sinal de arrependimento ou de
contrição, porque não reage mais às coisas exteriores. Ó, como é insondável a
misericórdia divina!
Mas, horror! Também há almas que
voluntária e conscientemente rejeitam esta graça e a desdenham. É já o exacto
momento da agonia, mas Deus, na sua misericórdia, dá à alma no seu mais íntimo,
esse momento de claridade. E se a alma quiser, tem a possibilidade de voltar a
Deus. Mas às vezes, há almas de uma tal dureza de coração, que escolhem
conscientemente o Inferno. Fazem com que falhem não apenas todas as orações que
outras almas dirigem a Deus por sua intenção, mas também mesmo os esforços
divinos[304]”.
Marta Robin (que não
é ainda uma santa canonizada. Por isso, os seus escritos são citados a título
de testemunho) afirmava que a morte compreendida assim, podia durar muito
tempo, até três dias, e que era preciso rezar pelos defuntos nessa hora,
porque, para eles, tudo se jogava.
É à volta desta
teologia tão concordante com o que até aqui dissemos de Deus, que descrevemos o
que acontece na morte e o que se lhe segue.
Basta
amar
Cristo ensina que não haverá mais casamentos no outro mundo[305].
Esta palavra causa por vezes problemas àqueles que se amam. Podem ficar
descansados. Ela não significa que a mulher não amará mais o marido, no Céu, ou
a mãe, o filho. Bem pelo contrário, estes amores e o seu motivo terrestre
permanecerão, como permanecem hoje entre Maria, José e Jesus. Mas, na Visão
beatífica, o coração de cada um irá abrir-se ao infinito, ao ponto que o amor
que une cada um será mais belo que o mais belo dos casamentos da terra. Seremos
de facto infinitamente casados com
todos, cada um sendo amado por si mesmo, em Deus. Cada próximo será amado por
cada um, como se fosse único. É uma realidade celeste, absolutamente impossível
na terra. Longe de destruir o amor da terra, este amor divino transfigurá-lo-á
em proporções infinitas. Esta comunidade perfeita, a Igreja do céu, será uma
verdadeira Comunhão dos santos.
“E
verão a sua Face
E
o seu Nome será inscrito na sua fronte.
Não
haverá mais noite.
Não
mais será preciso lâmpada para iluminar
Porque
o Senhor Deus espalhará a sua luz,
E
serão Reis pelos séculos dos séculos.[306]”
Este anexo
permite ao leitor fazer uma ideia do que a Igreja definiu oficialmente como a
sua fé e de o comparar com o que pode dizer acerca do assunto um teólogo,
escutando não apenas os santos canonizados mas também a sua fidelidade à
Igreja, unida à razão.[307]
Animais: Nos textos do Magistério da Igreja, nada
foi dito quanto à hipótese da sua sobrevivência depois da morte ou da sua
presença no mundo novo. Uma coisa é certa: não têm espírito, portanto, nenhum
desejo de vida espiritual (visão beatífica). Apenas alguns santos falaram do
assunto para negar a sua presença (S. Tomás de Aquino) ou afirmá-la (S.
Boaventura). Uma inteira liberdade é deixada a cada um. C.I.C. nº 1046 “Quanto ao cosmos, A revelação afirma a profunda comunidade de
destino entre o mundo material e o homem: ‘Na verdade, as criaturas esperam
ansiosamente a revelação dos filhos de Deus … com a esperança de que as mesmas
criaturas sejam também libertadas da corrupção que escraviza … Sabemos que toda
a criatura geme ainda agora e sofre as dores da maternidade, e não só ela, mas
também nós que possuímos as primícias do Espírito, gememos interiormente,
esperando a adopção filial e a libertação do nosso corpo.’” (Romanos 8,19-23)
C.I.C.
nº 2416 “Os animais são criaturas de Deus. Deus envolve-os na sua solicitude
providencial (cf. Mateus 6,26). Pelo simples facto de existirem, eles o
bendizem e lhe dão glória (cf. Daniel 3,57-58). Por isso, os homens devem
estimá-los. É de lembrar com que delicadeza os santos, como um S. Francisco de
Assis ou S. Filipe Néri, tratavam os animais.”
Blasfémia contra o Espírito Santo: C.I.C. nº 1037 “Deus não predestina ninguém para o
inferno (cf. DS 397; 1567). Para ter semelhante destino, é preciso haver uma
aversão voluntária a Deus (pecado mortal) e persistir nela até ao fim. Na
liturgia eucarística e nas orações quotidianas dos seus fiéis, a Igreja implora
a misericórdia de Deus ‘que não quer que alguns venham a perder-se mas que
todos se possam arrepender’ (2Pedro 3,9).” C.D.C nº1031 “pelo que diz respeito a certas faltas leves, deve crer-se que
existe, antes do julgamento, um fogo purificador, conforme afirma Aquele que é
a Verdade, quando diz que se alguém proferir uma blasfémia contra o Espírito
Santo, isso não lhe será perdoado nem neste século, nem no século futuro
(Mateus 12,31). Desta afirmação podemos deduzir que certas faltas podem ser
perdoadas neste mundo e outras no mundo que há-de vir (S. Gregório Magno, Dial.
4,39).”
Caridade possuída durante a vida na
terra: C.I.C. nº 2001
“A preparação do homem para acolher a
graça, é já obra da graça. Esta é necessária para suscitar e sustentar a nossa
colaboração na justificação pela fé e na santificação pela caridade.”
Condições da salvação: Ver sexta
sessão do Concílio de Trento: “A fé dispõe
à salvação, bem como a humildade, o arrependimento, a esperança. Esta é
necessária para suscitar uma amizade recíproca com Deus, fundada na fé, faz
entrar na salvação e merece a vida eterna.”
Inferno: C.I.C. nº1033 “Não podemos estar em união com Deus se não o amarmos
livremente. Mas não podemos amar a Deus se pecarmos gravemente contra Ele,
contra o nosso próximo ou contra nós mesmos: ‘Quem não ama permanece na morte.
Todo aquele que odeia o seu irmão é um homicida; ora vós sabeis que nenhum
homicida tem em si a vida eterna’ (1João 3,15). Nosso Senhor adverte-nos de que
seremos separados dele, se descurarmos as necessidades graves dos pobres e dos
pequeninos seus irmãos (cf. Mateus 25,31-46). Morrer em pecado mortal sem
arrependimento e sem dar acolhimento ao amor misericordioso de Deus, é a mesma
coisa que morrer separado dele para sempre, por livre escolha própria. E é este
estado de auto-exclusão definitiva da comunhão com Deus e com os
bem-aventurados que se designa pela palavra ‘inferno’.”
C.I.C.
nº1035 “A doutrina da Igreja afirma a
existência do inferno e a sua eternidade. As almas dos que morrem em estado de
pecado mortal descem imediatamente, depois da morte, aos infernos, onde sofrem
as penas do inferno, ‘o fogo eterno’ (cf. DS 76; 409; 801; 1002; 1351; 1575);
(cf. SPF 12). A principal pena do inferno consiste na separação eterna de Deus,
único em quem o homem pode ter a vida e a felicidade para que foi criado e a
que aspira.”
Fogo do inferno: C.I.C.
nº 1034 “Jesus fala muitas vezes da
‘gehena’ do ‘fogo que não se apaga’ (cf. Mateus 5,22.29, 13,42.50; Marcos
9,43-48), reservada aos que recusam, até ao fim da vida, acreditar e
converter-se, e na qual podem perder-se, ao mesmo tempo, a alma e o corpo (cf.
Mateus 10,28). Jesus anuncia, em termos muito graves, que ‘enviará os seus
anjos que tirarão do seu Reino … todos os que praticam a iniquidade, e hão-de
lançá-los na fornalha ardente’ (Mateus 13,41-42), e sobre eles pronunciará a
sentença: ‘afastai-vos de mim, malditos, para o fogo eterno’ (Mateus 25,41).”
Hora da morte: A Igreja
católica através do seu Magistério romano, afirma que os pagãos e os não
cristãos podem ser salvos, mesmo se morrem factualmente sem a fé, portanto, sem
a graça santificante e a caridade teologal. Ela afirma que isso se faz de “um modo só de Deus conheciso” (Concílio
Vaticano II). A minha hipótese sobre a Parusia de Cristo no momento da morte
(não depois da morte) pretende
resolver este mistério (Ver também a salvação dos pagãos).
Juízo particular: C.I.C. nº 1021 “A morte põe termo à vida do homem, enquanto tempo aberto à
aceitação ou à rejeição da graça divina, manifestada em Jesus Cristo (cf.
2Timóteo 1,9-10). O Novo Testamento fala do juízo, principalmente na
perspectiva do encontro final com Cristo na sua segunda vinda. Mas também
afirma, em muitos passos, a retribuição imediata depois da morte de cada qual,
em função das suas obras e da sua fé. A parábola do pobre Lázaro (cf. Lucas
16,22) e a palavra de Cristo crucificado ao bom ladrão (cf. Lucas 23,43), assim
como outros textos do Novo Testamento, (cf. 2Coríntios 5,8; Filipenses 1,23;
Hebreus 9,27; 12,23) falam dum destino final da alma (cf. Mateus 16,26), que
pode ser diferente para umas e para outras.”
C. D.C.
nº 1022 “Cada homem recebe, na sua
alma imortal, a retribuição eterna, logo depois da sua morte, num juízo
particular que põe a sua vida na referência de Cristo, quer através duma
purificação (cf. Concílio de Lyon: DS 857-858; Concílio de Florença: DS
1304-1306; Concílio de Trento: DS 1820), quer para entrar imediatamente na
felicidade do Céu (cf. Bento XII: DS 1000-1001; João XXI: DS 990), quer para se
condenar imediatamente para sempre (cf. Bento XII: DS 1002). No entardecer da
nossa vida, seremos julgados sobre o amor (S. João da Cruz, Ditos, 64).”
Limbo das crianças: Concílio de Lyon: “As almas
daqueles que morrem apenas no estado de pecado original, descem imediatamente
ao inferno onde recebem, no entanto, penas desiguais.” C.I.C. nº 1261 “Quanto às crianças mortas sem
Baptismo, a Igreja não pode senão confiá-las à misericórdia de Deus, como o
faz no rito do respectivo funeral. De facto, a grande misericórdia de Deus, que
quer a salvação de todos os homens (cf. 1Timótei 2,4), e a ternura de Jesus
para com as crianças, que o levou a dizer: ‘Deixai vir a mim as criancinhas,
não as estorveis’ (Marcos 10,14), permitem-nos esperar que haja um caminho de
salvação para as crianças mortas sem baptismo. Por isso, é mais premente ainda
o apelo da Igreja, a que não se impeça as criancinhas de virem a Cristo, pelo
dom do santo Baptismo.”
Mundo novo: C.I.C. nº1024 “No fim dos tempos, o Reino de Deus
chegará à sua plenitude. Depois do Juízo final, os justos reinarão para sempre
com Cristo, glorificados em corpo e alma, e o próprio universo será renovado:
‘Então a Igreja alcançará na glória celeste, a sua realização acabada, quando
vier o tempo da restauração de todas as coisas, e quando, juntamente com o
género humano, também o Universo inteiro, que ao homem está intimamente ligado
e por ele atinge o seu fim, for perfeitamente restaurado em Cristo’ (Concílio
Vaticano II, L.G., 48.”
C.I.C.
nº 1043 “A esta misteriosa renovação,
que há-de transformar a humanidade e o mundo, a Sagrada Escritura chama ‘os
Novos Céus e a Nova Terra’ (2Pedro 3,13; cf. Apocalipse 21,1). Será a
realização definitiva do desígnio divino de ‘reunir sob a chefia de Cristo
todas as coisas que há nos Céus e na Terra’ (Efésios 1,10).”
C.I.C.
nº 1044 “Neste ‘mundo novo’
(Apocalipse 21,5), a Jerusalém celeste, Deus terá a sua morada entre os homens.
‘Há-de enxugar-lhes dos olhos todas as lágrimas, a morte deixará de existir, e
não mais haverá luto, nem clamor, nem fadiga. O que havia anteriormente
desapareceu’ (Apocalipse 21,4; cf. 21,27).”
C.I.C.
nº 1047 “O universo visível é, pois,
também ele destinado a ser transformado, ‘a fim de que o próprio mundo,
restaurado no seu estado primitivo, esteja sem mais nenhum obstáculo ao serviço
dos justos’, participando na sua glorificação em Jesus Cristo Ressuscitado’
(Santo Ireneu, Haer. 5,32,1).”
Morte cristã: C.I.C.
nº1012 “(cf. 1Timóteo 4,13.14) É
expressa de modo privilegiado na liturgia da Igreja: ‘Para os que crêem em Vós,
Senhor, a vida não acaba, apenas se transforma; e, desfeita a morada deste exílio
terrestre, adquirimos no Céu uma habitação eterna’ (MR, Prefácio dos
defuntos).”
C.I.C.
nº 1013 “A morte é o fim da
peregrinação terrena do homem, do tempo da graça e da misericórdia que Deus lhe
oferece para realizar a sua vida terrena segundo o plano divino e para decidir
o seu destino último. Quando acaba ‘a nossa vida sobre a terra que é só uma’
(Concílio Vaticano II, LG 48), não voltaremos a outras vidas terrenas. ‘Os
homens morrem uma só vez’ (Hebreus 9,27). Não existe ‘reincarnação’ depois da morte.”
C.I.C.
nº 1014 “A Igreja exorta-nos a
prepararmo-nos para a hora da nossa morte. ‘Duma morte repentina e imprevista,
livrai-nos, Senhor’ (Ladaínha de todos os Santos); a pedirmos à Mãe de Deus que
rogue por nós ‘na hora da nossa morte’ (Oração da Avé-Maria); e a confiar-nos a
S. José, padroeiro da boa morte: ‘Em todos os teus actos, em todos os teus
pensamentos, havias de te comportar como se devesses morrer hoje. Se a tua
consciência estivesse tranquila, não terias que ter grande receio da morte. Mais
vale acautelares-te do pecado do que fugir da morte. Se hoje não estás
preparado, como o estarás amanhã?’ (Imitação de Cristo 1,23,1). ‘Louvado sejas,
meu Senhor, pela nossa irmã, a morte corporal, a que nenhum homem vivo pode
escapar. Infelizes os que morrem em pecados mortais; felizes os que ela
encontrar a cumprir as tuas santíssimas vontades, porque a segunda morte não
lhes fará mal’ (S. Francisco de Assis, Cant.).”
Paraíso: C.I.C. nº 1023 “Os que morrem na graça e amizade
de Deus, perfeitamente purificados, vivem para sempre com Cristo. São para
sempre semelhantes a Deus, porque ‘o vêem tal como Ele é’ (1João 3,2), face a
face (cf. 1Coríntios 13,12; Apocalipse 22,4).”
C.I.C.
nº1024 “Esta vida perfeita com a
Santíssima Trindade, esta comunhão de vida e de amor com Cristo, com a Virgem
Maria, com os anjos e todos os bem-aventurados, chama-se ‘Céu’. O Céu é o fim
último e a realização das aspirações mais profundas do homem, o estado de
felicidade suprema e definitiva.”
C.I.C.
nº 1025 “Viver no Céu é ‘estar com
Cristo’ (cf. João 14,3; Filipenses 1,23; 1Timóteo 4,17). Os eleitos vivem,
‘nele’, mas nele guardam, ou melhor, encontram a sua verdadeira identidade, o
seu nome próprio (cf. Apocalipse 2,17): ‘Porque a vida consiste em estar com
Cristo, onde está Cristo, lá está a vida, lá está o Reino’ (St. Ambrósio, Luc. 10, 121; PL 15, 1834A.)
C.I.C.
nº 1026 “Pela sua morte e
Ressurreição, Jesus Cristo ‘abriu-nos’ o Céu. A vida dos bem-aventurados
consiste na posse, em plenitude, dos frutos da redenção operada por Cristo, que
associa à sua glorificação celeste aqueles que nele acreditaram e permaneceram
fiéis à sua vontade. O Céu é a comunidade bem-aventurada de todos os que estão
perfeitamente incorporados nele.”
Parusia de Cristo : A Igreja tem fé nela desde as primeiras
elaborações do Credo. Mas pensa habitualmente no fim do mundo, não na hora da
morte. C.I.C. nº 1040 “O juízo final
terá lugar quando for a vinda gloriosa de Cristo. Só o Pai sabe o dia e a hora,
só Ele decide sobre a sua vinda. Por seu Filho Jesus Cristo, Ele pronunciará
então a sua palavra definitiva sobre toda a história. Nós ficaremos a saber o
sentido último de toda a obra da criação e de toda a economia da salvação, e
compreenderemos os caminhos admiráveis pelos quais a sua providência tudo terá
conduzido para o seu fim último. O juízo final revelará como a justiça de Deus
triunfa de todas as injustiças cometidas pelas suas criaturas e como o seu amor
é mais forte do que a morte (cf. Cântico 8,6).”
Purgatório: C.I.C. nº1030 “Os que morrem na graça e amizade
de Deus, mas não de todo purificados, embora seguros da sua salvação eterna,
sofrem depois da morte uma purificação, a fim de obterem a santidade necessária
para entrar na alegria do Céu.”
C.I.C.
nº 1031 “A Igreja chama Purgatório a esta purificação final dos
eleitos, que é absolutamente distinta do castigo dos condenados. A Igreja
formulou a doutrina da fé relativa ao Purgatório sobretudo nos Concílios de
Florença (cf. DS 1304) e de Trento (cf. DS 1820, 1580). A Tradição da Igreja,
com referência a certos textos da Escritura (por exemplo, 1Coríntios 3,15;
1Pedro 1,7), fala dum fogo purificador.”
Ressurreição da carne: É um dos dogmas
apostólicos: “Se Cristo não ressuscitou,
vã é a nossa fé.” (S. Paulo aos 1Coríntios 15,14). C.I.C. nº 988 “O Credo cristão - profissão da
nossa fé em Deus Pai, Filho e Espírito Santo, e na sua acção criadora,
salvadora e santificadora - culmina na proclamação da ressurreição dos mortos,
no fim dos tempos e na vida eterna.”
C.I.C.
nº 992 “A ressurreição dos mortos foi
revelada progressivamente por Deus ao seu povo. A esperança na ressurreição
corporal dos mortos impôs-se como consequência intrínseca da fé num Deus
criador do homem total, alma e corpo. O Criador do Céu e da Terra é também
Aquele que mantém a sua aliança com Abraão e a sua descendência. É nesta dupla
perspectiva que começará a exprimir-se a fé na ressurreição. Nas suas
provações, os mártires Macabeus confessam: ‘O Rei do Universo ressuscitar-nos-á
para uma vida eterna, a nós que morremos pelas suas leis.’ (2Macabeus 7,9) ‘É
preferível morrermos às mãos dos homens e termos a esperança em Deus de que
havemos de ser ressuscitados por ele’ (2Macabeus 7,14; cf. 7,29; Daniel
12,1-13).”
C.I.C.
nº 993 “Os Fariseus (cf. Actos 23,6)
e muitos contemporâneos do Senhor (cf. João 11,24) esperavam a ressurreição.
Jesus ensina-a firmemente. E aos saduceus, que a negavam, responde: ‘Não
andareis vós enganados, ignorando as Escrituras e o poder de Deus?’ (Marcos
12,24). A fé na ressurreição, assenta na fé em Deus, que ‘não é Deus de mortos,
mas de vivos’ (Marcos 12,27).”
Salvação dos pagãos: C.I.C.
nº 1260 “’Com efeito, já que por
todos morreu Cristo e a vocação última de todos os homens é realmente uma só, a
saber, a divina, devemos manter que o Espírito Santo a todos dá a possibilidade
de se associarem a este mistério pascal, por um modo só de Deus conhecido’
(Concílio Vaticano II, GS 22, Cf, Concílio Vaticano II, LG 16, AG 7). Todo o
homem que, na ignorância do Evangelho de Cristo e da sua Igreja, procura a
verdade e faz a vontade de Deus conforme o conhecimento que dela tem, pode
salvar-se. Podemos supor que tais pessoas teriam
desejado explicitamente o Baptismo se dele tivessem conhecido a
necessidade.” A minha hipótese sobre a Parusia de Cristo no momento da morte
pretende resolver o mistérios desse “modo
só de Deus conhecido”.
Visão beatífica: C.I.C.
nº 1027 “ Este mistério de comunhão
bem-aventurada com Deus e com todos os que estão em Cristo ultrapassa toda a
compreensão e toda a representação. A Sagrada Escritura fala-nos por imagens:
vida, luz, paz, banquete de núpcias, vinho do Reino, casa do Pai, Jerusalém
celeste, paraíso: ‘o que nem os olhos viram, nem os ouvidos escutaram, nem
jamais passou pelo pensamento do homem, o que Deus preparou para aqueles que o
amam’ (1Coríntios 2,9).”
C.I.C.
nº 1028 “Em virtude da sua
transcendência, Deus não pode ser visto tal como é, senão quando Ele próprio
abre o seu mistério à contemplação imediata do homem e lhe dá a capacidade de o
contemplar. Esta contemplação de Deus na sua glória celeste, é chamada pela
Igreja ‘visão beatífica’: ‘Qual não será a tua glória e a tua felicidade quando
fores admitido a ver a Deus, a ter a honra de participar nas alegrias da
salvação e da luz eterna na companhia de Cristo Senhor teu Deus, … gozar no
Reino dos Céus, na companhia dos justos e dos amigos de Deus, das alegrias da
imortalidade conquistada!’ (S. Cipriano, epístola 56,10,1; PL 4, 357B)”
PROPOSTA DE
CONTRACAPA
Deseja conhecer o que
se passa do outro lado do véu. Não deseja a palavra deste ou daquele teólogo,
mas a da Igreja católica na maior profundidade das suas riquezas. Este livro é
feito para si.
Existe nos tesouros
revelados, toda uma riqueza de ensino sobre os acontecimentos futuros. Estes
acontecimentos contam-se de forma
simples. Constituem o final da história de cada um, o capítulo que falta para
compreender a frágil vida cá de baixo. Na escola de três grandes fontes que são
para a Igreja a Escritura, os santos e os
papas, eis o relato da continuação da nossa história, aquela que não se vê.
Estamos na véspera de uma outra vida, de
um outro espírito, de uma outra linguagem, de uma maior amor a Deus. A
intensidade das maravilhas que nos esperam é inimaginável. Mas o essencial da
sua natureza, foi-nos revelado.
Faltam algumas peças
neste relato, como um vitral de que algumas partes estivessem ainda cobertas.
Podemos citar em particular “esse modo só
de Deus conhecido”, de que fala o Concílio Vaticano II, pelo qual a
salvação é proposta a todos os homens, mesmo aos pagãos. O autor tentou
reconstituí-lo. Para isso, colocou-se na escola do espírito do maior dos
doutores católicos, S. Tomás de Aquino. Ele
era o mestre que unia a fé e a razão. Confiava na filosofia quando ela
trazia um melhor conhecimento do real, sem nunca deixar a Revelação ensinada
pela Igreja.
A certeza do que está
para vir chama-se, em teologia, esperança.
Aqui, a esperança é contada.
Arnaud Dumouch é casado e pai de
família. Ensina a religião católica na Bélgica. Trabalha na preparação de uma
tese de teologia: “Na hora da morte e no fim do mundo?” Este livro é um dos
seus frutos. Perguntas e observações: a.dumouch@freeworld.be
[1] Tradução: Maria do Carmo Borges Silva
[2] Um documento
romano recente «Ad Tuendam fidem»,
publicado em 18 de Maio de 1998, recorda que a canonização dos santos
compromete a autoridade infalível da Igreja (Ver comentários do Cardeal
Ratzinguer, § 11). Melhor ainda, a Igreja afirma que, numa canonização, é o
próprio Deus que se compromete com a sua autoridade, uma vez que o processo
necessita da existência de milagres provenientes dele. O desprezo em que por
vezes são tido os escritos dos santos é mais que um erro teológico, é uma
loucura. Portanto, o seu ensinamento não é para colocar ao mesmo nível que o
dos simples teólogos, mesmo se não estão isentos de erros.
[3] Quer dizer, dos
papas ou dos concílios unidos ao papa.
[4] Mateus 24,27.
[5] Donde o Nihil
Obstat e o Imprimatur obtidos por este livro.
[6] … que é uma
santa canonizada. Por esta razão, os seus escritos têm uma certa autoridade de
grau muito inferior, bem entendido, ao da Sagrada Escritura ou do Magistério da
Igreja. “Acompanho muitas vezes as almas
agonizantes e obtenho-lhes a confiança na misericórdia divina. Suplico a Deus
que lhes dê toda a graça divina, que é sempre vitoriosa. A misericórdia divina
atinge mais que uma vez o pecador no último momento, de uma forma estranha e
misteriosa. Pelo exterior, pensamos que tudo está perdido, mas não é assim. A
alma, iluminada por um poderoso raio de graça suprema, volta-se para Deus com
um tal poder de amor, que num momento recebe de Deus o perdão das faltas e dos
castigos. Não nos dá no exterior nenhum sinal de arrependimento ou de
contrição, porque não mais reage às coisas exteriores. Ó, como é insondável a
misericórdia divina!
Mas, horror! Há também almas que voluntária e conscientemente
rejeitam esta graça e desprezam-na. É já no próprio momento da agonia, mas
Deus, na sua misericórdia, dá à alma, no seu mais íntimo, este momento de
claridade. E se a alma o quiser, tem a possibilidade de voltar para Deus. Mas,
por vezes, há almas de uma tal dureza de coração, que escolhem conscientemente
o Inferno. Fazem com que falhem não apenas todas as orações que outras almas
dirigem a Deus por sua intenção, mas mesmo, também, os esforços divinos.” Journal
de Soeur Faustine, edição Hovine, 1985, p. 542.
[7] João, 16,13
relata uma palavra de Jesus: “Mas quando ele vier, ele, o Espírito da verdade,
introduzir-vos-á na verdade total, porque não falará de si mesmo, mas do que
ouviu dizer, e vos mostrará o que está para vir.” Esta frase constitui a
explicação da lenta redescoberta no decurso da história, de verdades que, no
entanto, tinham sido ensinadas em plena luz aos primeiros cristãos e aos
apóstolos. Penso que Jesus manteve voluntariamente escondida, no coração da Revelação,
durante 2000 anos, a forma como salva os pagãos. Se as
missões tivessem sabido que Cristo vinha, ele próprio
pregar o Evangelho à hora da morte, não se teriam angustiado com a sorte dos
pagãos. E, sem esta angústia de amor, o seu zelo missionário teria sido tão
forte?
[8] As famosas N.D.
E., Near Death Experience,
assinaladas pelo Dr. Raymon Moody, A vida depois da vida.
[9] 9 Janeiro de
1949, Clémence Ledoux, fundadora da Fraternidade de Maria Rainha Imaculada,
1888-1966.
[10] O seu verdadeiro
nome teológico é “o Não Nascido, o Verbo e o Amor”.
[11] Certos teólogos
negam que Deus possa ser humilde, ele que é Todo-Poderoso. Não estão errados.
Deus não é humilde. É humilde “até à loucura”. Com efeito, a humildade é uma
certa verdade que faz com que cada um se situe no seu justo lugar. Desta forma,
um homem humilde reconhece com verdade as suas qualidades e os seus efeitos,
sem se elevar nem se rebaixar excessivamente. Dizer, por exemplo: “Sou menos
dotado que tu para a matemática”, quando não é verdade, não é senão aparência
de humildade. Neste caso, uma forma de vaidade escondida provoca um complexo de
inferioridade.
Segundo esta
definição, sendo Deus a infinita perfeição de todas as virtudes, seria humilde
se dissesse: “Os homens são nada diante de mim”. A teologia dos muçulmanos é, a
este respeito, muito justa e rigorosa. No entanto… recebemos uma outra
revelação: Deus considera-se como menos que nós, ao ponto de se abaixar não
apenas tornando-se homem, mas a perder a aparência humana… Já não é mais
humildade, é loucura! Um texto precioso confirma-o, no Evangelho de João: “Eu sou mestre e Senhor, diz Jesus a
Pedro (João 13,15). Se, pois, vos lavei
os pés, eu, o Senhor e Mestre, vós também vos deveis lavar os pés uns aos
outros. Porque foi um exemplo que vos dei, para que façais, vós também, como eu
vos fiz.” Nesse dia, para grande escândalo de Pedro, Jesus revelou aos
homens o outro mistério escandaloso do coração de Deus, além do seu amor
infinito, a sua humildade: “Ele, de
condição divina, não reteve ciosamente o lugar que o igualava a Deus. Mas
aniquilou-se a si mesmo, tomando a condição de escravo, e tornando-se
semelhante aos homens. Tendo-se comportado como um homem, humilhou-se ainda
mais, obedecendo até à morte e morte de cruz!” Filipenses, 2,6.
[12] O mesmo se passa
com este amor interno à Trindade. A Revelação mostrou-nos que não é “normal”…
Amar os amigos é coisa normal. Ora, Deus vai até ao ponto de dar a vida… pelos
seus inimigos. Isto rompe com toda a lógica habitual, filosófica.
[13] Certas tradições
acrescentam que Deus criou seres intermediários dotados de espírito e de um
psiquismo, mas desprovidos de carne. São os «djinns»
do islão.
[14] Outras virtudes
são importantes: a confiança, a verdade, etc.. Mas, de uma forma ou de outra,
estão resumidas nestas duas.
[15] 1Reis 19,13.
[16] Mateus 19,25:
“Ao ouvir isto, os discípulos ficaram confundidos, e diziam entre si: quem se
pode salvar? Fixando neles o olhar, Jesus disse-lhes: Aos homens é impossível,
mas a Deus nada é impossível.”
[17] Tanto quanto
possível a uma criatura limitada.
[18] Aquilo a que a
Escritura chama: “Baptismo na água e no espírito” (João 3,5). Jesus respondeu:
“Em verdade, em verdade vos digo, quem não nascer da água e do Espírito, não
pode entrar no Reino de Deus…” De igual forma, a água e o sangue que saíram do
lado de Cristo simbolizam estas duas qualidades. Trata-se, pois, de um mistério
central da Revelação.
[19] Estas poucas
frases resumem a teologia do sofrimento. Apresentadas doutra forma, poderíamos
dizer: “O sofrimento é um mal. Não é ele que é procurado, mas o seu efeito, que
pode ser um bem, a humildade. A humildade é a primeira disposição para aquilo
que Deus espera do homem, o amor verdadeiro, o amor que se sacrifica porque
coloca o outro em primeiro lugar”
[20] Apocalipse 5,1
[21] Passagem de
«Starmania», Michel Berger. Esta sabedoria de Deus acerca dos homens de boa
vontade não desapareceu nos nossos dias. Há justos, no sentido bíblico do
termo, homens rectos que não receberam a graça da fé.
[22] Lucas 23,42
[23] Não no sentido
dos «perfeitos», mas daqueles que receberam a graça de saber o que fazem na
terra. É neste sentido que a Igreja da terra é santa.
[24] É preciso tornar
a dize-lo: outras virtudes são importantes, como a confiança, a verdade, etc..
Mas, de uma forma ou doutra, resumem-se àquelas duas.
[25] Isaías 65,17
[26] Apocalipse 7,14
[27] O sentido do
sofrimento humano, 11 de Fevereiro de 1984, “Salvifici Doloris”.
[28] “Cristo, de novo há-de vir no fim do mundo,
para julgar os vivos e os mortos”. Penso que por “fim do mundo”, deve
entender-se não apenas os acontecimentos da última geração, mas também a morte
de cada um. Penso que é a razão pela qual Jesus pôde afirmar quando estava na
terra, falando do seu vinda (Mateus 24,34): “Estas
geração não passará antes que tudo isto tenha acontecido”. Muitos afirmam que
ele enganou. Na verdade, parece que ainda não veio. Olhar exterior! Nem 100
anos passados depois destas palavras pronunciadas, toda a geração que o tinha
conhecido, tinha-as visto realizarem-se com poder. Todos estavam… mortos. Sou,
juntamente com D. Glorieux, no século XIX, um dos únicos a ensiná-lo. Não se
trata, pois, da fé oficial da Igreja, mas de uma simples opinião de um teólogo,
à qual a Igreja não se opõe mas que deixa a cada um o cuidado de julgar. Uma
santa precedeu-me e permitiu-me esta audácia. Trata-se da Irmã Faustina,
canonizada por João Paulo II e citada no final deste trabalho.
[29] Para saber como
a teologia católica pode alcançar tal precisão, reporte-se à terceira parte
deste trabalho.
[30] Mateus 24,38-40.
[31] Mas não
necessariamente os dois para o Céu.
[32] Histórias como a
de Johann não são colocadas no mesmo plano que a Sagrada Escritura. Mas
permitem ilustrar de forma viva o seu conteúdo.
[33] Jean-Jacques
Goldman.
[34] Teresa nasceu na
Normandia, numa família de católicos fervorosos, no final do século XIX. Perde
a mãe muito jovem, mas as suas duas irmãs mais velhas, encarregam-se de lhe dar
ternura e educação. Muito pequena, é
embalada pela presença de Deus que preenche a vida de família. Aos quinze anos,
atiçada pelo desejo de se entregar totalmente a Deus, entra para o Carmelo de
Lisieux. Toma o nome de Irmã Teresa do Menino Jesus e da Santa Face. A sua
extrema sensibilidade é fonte de provações. Quando o pai perde a razão, tem a
tentação de se culpar desta desgraça, por causa da sua partida de casa,
demasiado precipitada. Experimenta provações espirituais terríveis: Deus
torna-se-lhe como que ausente do coração. Atingida pela tuberculose, morre aos
vinte e quatro anos sem nunca duvidar do amor de Jesus. Deixa para trás uma
autobiografia que será publicada pelas religiosas do Carmelo. A sua vida tão
simples comove, em alguns anos os cristão, e é proclamada santa. É uma das
maiores santas de toda a história da Igreja. É Doutora da Igreja.
[35] Mateus 12,14.
[36] Como veremos no
decurso deste trabalho. É a existência desta revelação feita a todo o homem,
qualquer que seja a sua religião, qualquer que seja o seu pecado ou a sua boa
vontade, que permite compreender quanto o Senhor é justo, ele que não permite a
danação eterna senão àquele que recusou a sua salvação face a ele. É esta
aparição gloriosa de Jesus no momento da morte que dá a chave a tudo quanto a
Igreja e a Sagrada Escritura ensinam sobre a entrada no paraíso ou a danação
eterna.
[37] Este fenómeno
psíquico é frequentemente mencionado por aqueles que se aproximam da morte. Guy
de Larigaude (Etoile au grand large) conta a experiência que teve antes
da segunda guerra mundial: “Para
impressionar as minhas amigas, mergulhei do alto da falésia. No espaço de um
instante, entre o promontório e a minha chagada água, tive a impressão de ter
feito má pontaria. Ia-me esmagar nos rochedos lá em baixo. Tive então uma série
de percepções ao mesmo tempo nítidas e rápidas sobre recordações de infância.”
O tempo encurta-se. A memória, sem dúvida estimulada pela certeza da iminência
de morte, faz votar acontecimentos que supúnhamos esquecidos. Não se deve
confundir esta reacção do psiquismo com um outro fenómeno muitas vezes narrado
pelas vítimas de uma N.D. E (Experiência de morte iminente). Relatam uma
espécie de passagem em revista do bem e do mal que cometeram durante a vida,
com a assistência de um Ser de luz e de amor. Trata-se então de uma experiência
mística e espiritual.
[38] Gaudium et Spes,
22.
[39] S. Domingos
chorava de noite, ao pronunciar estas palavras.
[40] O grande teólogo
S. Tomás de Aquino encoraja a pôr ao serviço da fé, todos os aportes da
ciência: De cada vez que a razão filosófica e a revelação se unem para abordar
um mesmo tema, vale mais seguir a razão, porque a fé, neste caso, não é dada
senão por misericórdia por aqueles cuja razão tem falta de acuidade. Dois temas
principais estão implicados: a existência de Deus e a sobrevivência da alma
depois da morte. São os dois principais «preambula Fidei».
[41] Raymond Moody,
“A vida depois da vida”, Caravela.
[42] Ver os
comentários do Dr. Keneth King.
[43] É contado a propósito de Santa Teresa do Menino
Jesus. Imediatamente antes do seu último suspiro, as suas irmãs viram-lhe o
rosto iluminar-se. Alguém parecia vir ao seu encontro.
[44] St. Agostinho tinha ouvido falar de várias casos
de Experiência de Morte Iminente, já bem descrita na sua época. Reconhece no
seu Comentário literal do livro do Génesis, Livro 12, capítulo 32, que
estas pessoas que experimentam um rapto para fora dos sentidos, e que estão quase mortas, conservavam “uma certa semelhança com o corpo”, pelo
que podem ser levadas a lugares físicos: “Não
vejo, diz ele, como poderia ser de
outra forma: a alma conserva algo que se assemelha a um corpo quando, estando o
corpo estendido, privado de sentimento, mas sem estar morto, vê o que uma
quantidade pessoas que voltaram à vida, depois de terem experimentado este tipo
de rapto, contaram que tinham visto; não vejo porque não veria, uma vez que,
pela morte corporal, deixou completamente o corpo”. É preciso notar que, no
mesmo texto, St. Agostinho afirma que, quanto a ele, não acredita que a alma
leve consigo um organismo físico… O debate sobre a natureza do corpo psíquico
é, pois, antigo, na Igreja.
[45] No Egipto
faraónico, fala-se do corpo físico, do Ka
(duplo) e do Ba, representado sob a
forma de um pássaro que leva a cabeça do morto (o espírito). A grande e última
viagem começa pela separação do Ka
espiritual do corpo material. O Ka é
o corpo duplo do defunto, que sai do seu cadáver. Com ele, o Ba, alma do homem, é desligado da vida
terrestre e roda em volta do cadáver, desorientado. A compadecida Ísis (esposa
que ama o deus da morte, Osíris) acolhe-o sob as suas grandes asas afectuosas e
confia-o ao sábio deus Anúbis (representado com uma cabeça de chacal), a fim de
que o console e lhe sirva de guia, e de apoio até ao julgamento divino. Sob
forma de imagens, trata-se da mesma realidade.
[46] Sem dúvida que,
os animais superiores são dotados de uma inteligência que S. Tomás de Aquino
chama “estimativa”. Longe de terem o objecto da inteligência humana que,
potencialmente, pode conhecer TUDO, é limitada a encontrar meios em vista da
sobrevivência e da reprodução. Ela “estima” o útil e o prejudicial. Nos anos
1970, uma mulher americana quis provar o contrário, educando da mesma forma o
seu recém-nascido e um bebé chimpanzé. O animal, comunicando por linguagem de
sinais, bateu a criança durante dois anos nos domínios do jogo, da esperteza.
Mas a criança foi a única a partir de uma certa altura, a colocar perguntas no
domínio dos inteligíveis, como: “Que fazemos nós na terra?”
[47] Segundo eles,
reencarna-se através dos tempos. Segundo a tradição monoteísta e personalista
do ocidente, a reencarnação nunca acontece.
[48] Isto não passa
ainda, bem entendido, de uma explicação hipotética, uma pista de investigação
que deveria no entanto esimular a ciência a interessar-se pelo fenómeno. Com
efeito, se o corpo astral existe e é material, deve haver forma de lhe medir a
presença.
[49] Podem conceber o
bem, o verdadeiro, podem potencialmente compreender tudo quanto existe, não
apenas os corpos mas também os espíritos. Tudo isto ultrapassa a matéria.
[50] A teologia
católica fala da vinda de Cristo no “seu corpo glorioso”. Veremos mais adiante
que se trata exactamente disso. A carne mão esconde mais o espírito. Revela-o.
As testemunhas da morte iminente parecem realizar a profecia de Job 19,25:
“Porque eu sei que o meu Defensor está vivo e aparecerá, finalmente, sobre a
terra; e depois que a minha pele se desprenda da minha carne, eu mesmo o
contemplarei, na minha própria carne verei a Deus.”
[51] Ver capítulo
sobre os milagres
[52] O primeiro critério está manifestamente
verificado. É justamente no sentido de um retorno ao religioso, que se sentiram
levadas as pessoas marcadas por esta experiência. Podemos mesmo afirmar que a
maioria delas, mesmo se não se tornam cristãs, fazem-se sem o saber, discípulas
de Jesus Cristo, quando ele dizia: “Dou-vos
dois mandamentos: amarás o teu Deus com todo o teu coração, toda a tua alma e
toda a tua força, e amarás o próximo como a ti mesmo”.
O segundo critério, também está
verificado A teologia católica fala da vida depois da morte: baseada na Bíblia
e na Tradição, estas duas fontes, pelas quais o Espírito de Deus se dá ao
homem, a Igreja pôs à disposição dos fiéis, uma série de detalhes sobre o que
vivem depois da morte. O seu olhar profundo vai bem mais longe que a iminência
de morte, tal como pensam tê-la vivido os sobreviventes. Vai até para além
dessa barreira que nenhum deles ultrapassou. O Magistério solene da Igreja,
ajuda preciosa para o teólogo, afirma:
1. Acreditamos na
vida eterna.
2. No momento da
morte, a alma encontra-se na presença da humanidade Santa de Jesus.
3. Esta visão de
amor é o começo daquilo que se chama o julgamento particular.
4. As almas
mortas em estado de pecado mortal são imediatamente conduzidas ao inferno. As
outras, seja que ainda tenham que ser purificadas no purgatório, seja que desde
o instante em que deixam o corpo, Jesus as leve para o paraíso como fez com o
bom ladrão, tornam-se o povo de Deus no além da morte.
5. O paraíso
consiste na visão de Deus face a face.
A N.D.E. parece indicar que todo o
homem, no preciso momento da morte, quer seja baptizado, judeu, pagão ou ateu,
encontra-se face a um ser que irradia
três virtudes: a verdade, o amor e, quando é necessário, o humor. Não será um
retrato, uma imagem do que é Deus? Poderia mesmo ser que o ser de luz fosse a
humanidade Santa de Jesus. Nenhuma oposição parece surgir relativamente ao
dogma católico. Se compararmos agora, a teologia tradicional aqui descrita com
o relato daqueles que se aproximaram da morte, somos obrigados a admitir que
não existe nenhuma oposição entre os dois. Bem pelo contrário, a fé parece
descobrir nestes relatos uma espantosa confirmação. Os critérios 1 e 2 parecem-me,
pois, perfeitamente verificados.
[53] Epístola de S.
Paulo 2Coríntios 12,2-4. Ana Catarina Emmerich (citada a título de simples
testemunho, sem que lhe seja atribuído autoridade), uma estigmatizada do século
XIX, teve a visão de S. João quando ele morreu. Parece assistir ao fenómeno de
descorporização. “Enquanto João
pronunciava uma última palavra, uma grande luz apareceu sobre ele. No momento
em que desfaleceu dando o último suspiro, vi no meio da auréola que o rodeava,
uma forma luminosa inteiramente semelhante a ele, que se desfazia do seu corpo
como de um envelope grosseiro e desaparecia de seguida, coma a luz.”
(Visões de Ana Catarina Emmerich sobre a vida de Jesus, Tomo 3, Téqui, p. 555).
[54] 2Coríntios 12,7
ss.
[55] 1João 2,16.
[56] É o que a
teologia designa por pecado mortal.
[57] Isaías 25,8.
[58] Certas pessoas
reagem pela revolta, ao sofrimento na terra, por vezes, mesmo, se são crentes,
por uma rejeição explícita de Deus. À primeira vista, o efeito da cruz é então
o inverso do que foi descrito anteriormente. Não é senão, a maioria das vezes,
uma aparência exterior. No fundo da alma, é na verdade a origem de um desejo de
justiça e de verdade (portanto, de Deus, tal como ele verdadeiramente é) que
suscita a rejeição de Deus que ainda não foi compreendido neste mundo (tal como
ele não é). Mas no Dia em que a sua verdadeira natureza se revela àquele que
morre, o efeito real da cruz surge em plena luz: “Procurava-te e não te
conhecia”.
[59] A escolha, tal
como a vou descrever aqui, também nunca foi descrita pela Igreja (excepto pela
irmã Faustina, através de uma visão relatada no final deste trabalho). É fácil
de compreender. Sem a descoberta da existência de uma “Parusia” de Cristo na
hora da morte, não vemos onde se pode situar esta escolha. Os antigos teólogos,
incluindo St. Agostinho e S. Tomás de Aquino, na sua fidelidade à Igreja,
sabiam que existe necessariamente uma escolha livre relativamente ao inferno ou
ao paraíso (trata-se, com efeito, de um dogma solene que conheciam). Mas sabiam
também que essa escolha se devia fazer durante
a vida terrestre (também isto, a Igreja tinha definido com força). Ora, não
viam nada ocorrer neste mundo, exceptuando uma vaga escolha frágil e repleta de
ignorância, reservada às poucas nações cristãs. Não imaginaram que na morte,
quer dizer, neste mundo, há uma undécima
hora, quer dizer, um tempo para
escolher em plena liberdade. Estavam obrigados a pôr no inferno todos os pobre
pecadores, incluindo aqueles que viviam longe de Deus por fraqueza ou
ignorância. Faziam-no lamentando-o, encurralados literalmente por contradições
intelectuais. Com efeito, ensinavam também que apenas seis pecados podiam
conduzir ao inferno, as seis blasfémias contra o Espírito (ver capítulo sobre o
inferno). Ora, os pagãos são absolutamente incapazes de tais pecados, uma vez
que eles implicam um perfeito conhecimento do amor de Deus e a sua rejeição.
[60] Apocalipse 1,3.
O Dr. Moody relata o testemunho de uma vítima de N.D.E.. Face ao Ser de luz,
perguntou insistentemente: Quem é você? Então a luz abriu-se e saiu um homem.
“Eu sou o Filho de Deus.” É o único testemunho explicitamente crístico que
relata.
[61] João 3,3.
[62] Apenas Maria era
pura diante de Deus, justamente, porque numa humildade inacreditável,
acreditava sem qualquer equívoco que era indigna. Quando o anjo lhe chamou
“cheia de graça”, ficou completamente perturbada. Estas palavras não se podiam
dirigir a ela.
[63] Ana Catarina
Emmerich (citada a título de simples testemunho), uma estigmatizada do século
XIX, teve a visão dessa fase da hora da morte: “Vi então o estado da alma do defunto. Estava por cima do local onde
ele tinha morrido, rodeada de um círculo e numa esfera onde o quadro de todos
os seus pecados e das suas consequências, lhe era apresentado, e esta visão
esmagava-a de arrependimento. Tinha também aí o espectáculo de todas as
purificações pelo sofrimento que deveria experimentar. Ao mesmo tempo, os
sofrimentos expiatórios do Salvador foram-lhe revelados.” (Visions de
Anne-Catherine Emmerich sur la vie de Jésus, Tomo 2, Téqui 1965, p. 512.)
[64] Os nossos
antepassados, que viveram religiões antigas, falavam do anjo da morte.
Acreditavam na sua vinda nessa hora. Na verdade, antes da Incarnação de Cristo,
os homens eram acolhidos, na hora da morte, por um anjo de Deus. Não tendo
ainda vindo, Cristo fazia-se representar por ele. Nos primeiros dias, o governo
de Deus sobe a humanidade era o seguinte: calava-se. O homem não mais sabia o
que fazia na terra e não tinha nenhuma explicação do sofrimento e da morte. Entregando o homem ao
sofrimento, à morte, calando-se durante séculos, agindo apenas para destruir as
obras de que o homem se orgulhava (dilúvio, Babel), que pretendia Deus? Salvar
os homens. E,
verdadeiramente, salvou-os em massa. Quando, no final duma vida passada no
sofrimento, muitas vezes na procura da glória, os homens do passado chegavam à
velhice, e depois, rendiam a alma a Deus, como o mais humilde dos escravos, não
restava muitas vezes neles senão confusão e pena. Quando nesse momento,
esperando encontrar um juiz terrível e duro, se encontravam diante do seu anjo
da guarda, de coração ardente de misericórdia, imagem do Deus vivo, acompanhado
muitas vezes dos seres que tinham amado durante as suas vidas, e escutavam
revelar a existência de um Deus único e bom, com um coração de criança e um
perdão generoso, rendiam-se. E quando a voz do seu anjo lhes anunciava para
breve, a vinda de um Salvador que os libertaria de todos os seus pecados,
acreditavam. E este rudes pecadores esmagados pela vida, gritavam: “Perdão
Deus, porque pecámos contra ti. Envia o teu Salvador. Que ele nos venha
libertar, porque queremos ver o teu rosto.”
Acompanhados pelo
seu anjo, consideravam o estado da suas alma, aprendiam a descobrir o pecado.
Aceitavam com generosidade, esclarecidos sobre Deus, sofrer um purgatório o
tempo que fosse necessário. Eles próprios mergulhavam, sem recriminar, na
solidão desse purgatório, a fim de que desaparecesse toda a marca de orgulho.
Depois, uma vez realizada esta obra, iam ao encontro de Adão e Eva no limbo
onde esperavam com esperança, a vinda do Salvador prometido. Esta espera não
era dolorosa, porque Deus, em previsão da vinda futura do Salvador, cumulava-os
da graça da sua presença invisível, de uma forma bem mais perfeita do que
tinham experimentado Adão e Eva. Jesus, descrevendo o limbo onde os patriarcas
esperavam a sua vinda, fala de uma água pura que cumulava o pobre Lázaro (Lucas
16,24). Sem dúvida que Deus ainda não se mostrava a eles face a face. Esperava
para tal, a sua hora, a hora em que, face a Lúcifer até aqui triunfante,
abriria para sempre o seu coração. Deus preparava um espectáculo grandioso,
aquele onde, duma só vez, ao morrer na cruz e ao descer aos infernos, o Verbo
de Deus faria entrar todas estas almas sedentas na felicidade eterna. Deste
modo, a Tradição bíblica, para descrever o estado dos homens antes da vinda de
Cristo, fala dos infernos. São lugares inferiores (separados da Visão de Deus).
São em número de três: o inferno dos condenados, o purgatório e o seio de
Abraão. Ana Catarina Emmerich (citada a título de simples testemunha, sem que
lhe seja dada autoridade), uma estigmatizada de século XIX, teve a visão de
Cristo aquando da sua descida aos infernos. “O lugar onde entrou a alma de
Jesus era dividido em três partes. Eram como que três mundos. Pareceu-me que
eram de forma redonda e que estavam separados uns dos outros. O inferno dos
condenados, o purgatório e o limbo de Abraão.” (Visions de Anne-Catherine
Emmerich sur la vie de Jésus, Tomo 3, Téqui, p. 369.)
[65] Marcos 13,30.
[66] Apocalipse 1,1
[67] 1Pedro 3,4.
[68] 1Pedro 3,8.
[69] A Parusia de
Cristo glorioso faz parte da fé. Ela é mesmo recitada no Credo da missa, todos os domingos. A teologia descreve-a como uma
verdadeira aparição sensível (o corpo radioso de Cristo), cuja luz tem o poder
de revelar ao mesmo tempo o coração de Cristo. É isto a glória: a matéria não
esconde mais o espírito. No entanto, a Parusia foi sempre interpretada pelos
teólogos como um acontecimento futuro, ligado ao fim político e definitivo do
mundo. Apenas os fiéis, no seu sentido da fé, sabiam que iam ver Cristo quando morressem! Santa Teresa di-lo
expressamente. Jacques Fesch, antes de ser executado, disse: “Dentro de três horas, verei Jesus”.
[70] Apocalipse 1,17.
[71] Apocalipse,
1,12.
[72] S. Tomás de
Aquino esclarece que esta primeira visão que se segue à morte, não pode ser de
imediato a de Deus, tal como ele é. Deus, pela sua irrupção brutal na alma,
impediria todo o discernimento, porque a liberdade não mais existiria. Ele é
tão grande, tão infinito pela sua bondade, que sorveria para sempre a alma no
seu seio. Mas Deus não quer forçar a liberdade de ninguém. Esta visão não pode
ser senão a de Deus sob o véu da sua humanidade: Jesus.
[73] Ninguém pode
imaginar a perturbação que um tal encontro provoca nas almas. Para a alma mais
contemplativa, para o mais espiritual dos monges, é a descoberta de que não
compreendeu quase nada desse amor. S. Tomás de Aquino, no final da vida, teve a
sorte de ver Jesus aparecer-lhe. A partir desse dia, deixou de escrever,
deixando a sua Suma Teológica inacabada. Perante a insistência do seu
secretário, irmão Reginaldo, que o estimulava a retomar os trabalhos, acabou
por confessar a sua visão. Todo em lágrimas, disse-lhe: “Não tinha compreendido
nada, não tinha compreendido nada”. Não escreveu nunca mais uma única palavra.
[74] Apocalipse
1,12,17
[75] Lucas 17,24.
[76] Não têm mais a
fé na existência de Deus, no facto do Messias se chamar Jesus Cristo, na
existência de um Evangelho, de uma vida depois da morte Vêem-no. Inútil
acreditar naquilo que constatamos com os olhos. Mas têm fé, pelo menos face à
evidência do choque do encontro com o Céu, face à promessa da Visão beatífica,
face ao facto de se tratar de um casamento de amor e de humildade, e ao facto
de lhes ser possível dizer não.
[77] Relato de Sta.
Margarida Maria.
[78] Apocalipse 4,3
[79] St. Agostinho,
As duas cidades.
[80] Marcos 13,26.
Por “nuvens do céu”, a Escritura entenede os santos e os anjos. Mateus 26,64.
Apocalipse 1,7: “Eis que ele vem com as
nuvens, todos o verão, mesmo aqueles que o trespassaram, e sobre ele se lamentarão
todas as raças da terra. Sim, Amen!”
[81] Não há lágrimas,
não há carne, mas o equivalente sensível e espiritual.
[82] Zacarias 12,10.
[83]
1Tessalonicenses, 3,13.
[84]
1Tessalonicenses, 3,13.
[85] Não tenho a
certeza disto. Ensino-o aqui, porque certas aparições da Virgem parecem
indicá-lo. Muitas vezes, ela promete vir-nos buscar “se lho pedirmos”. Por
exemplo, numa revelação privada relatada pela venerável Maria de Agreda: “O Pai, diz a Maria: Se os homens vos
invocarem de todo o coração à hora da morte, libertá-los-ei dos perigos e
expulsarei os demónios que procuram perde-los. Apresentar-me-eis as suas almas
e elas receberão uma rica recompensa. Este privilégio exercer-se-á sem
prejudicar o ofício que têm os anjos de conduzir as almas ao tribunal de Deus.”
(Vie divine de la Sainte Vierge,
edições saint-Michel, 1972, p. 379). Este tipo de palavras, muito frequentes,
subentende, talvez, que a Virgem
não vem se não for
chamada. A minha hesitação vem da verdade plena da hora da morte, que deve
preceder a escolha. Os protestantes não podem ficar chocados senão em teoria, pelo papel que a Igreja católica e ortodoxa dão aos
santos. Pensaram que o pecado original tinha tornado para sempre impotentes os
amigos de Deus, ao ponto de serem absolutamente incapazes de qualquer
cooperação na salvação dos outros, mesmo depois da morte. Perante a prova
contrária, é evidente que os seus bloqueios intelectuais são de imediato
varridos, sem que isso lhes coloque um único problema (excepto obstinação
orgulhosa). A presença dos santos, como o pai, a mãe, as avós, ser-lhes-á
escondida sob pretexto que, na terra, não acreditaram na comunhão dos santos?
Além disso, a Virgem Maria, simples criatura, é uma presença teologalmente
importante. O seu corpo glorioso revela com poder o pólo feminino de Deus, da
mesma forma que Cristo, verdadeiro Deus, revela o pólo masculino (daí os dois
corações unidos no verso da medalha milagrosa). Isto parece-me importante para
a liberdade da escolha. É verdade que Jesus pode fazer tudo isto sozinho…
[86] Recordemos a
história dos anjos e a origem dos demónios, esses anjos que se tornaram maus. A
sua revolta constitui a raiz de toda a iniquidade, aquela, como veremos, que se
deverá revelar e ser proposta de forma
explícita ao homem, no final da sua vida.
Os anjos nunca
tiveram corpo. São puros espíritos. Para nós, é muito difícil compreender
verdadeiramente o que pode ser e como pode viver, uma pessoa que não tem corpo.
Assim, ao longo de toda esta trabalho, tomámos o partido de falar deles em
termos antropomórficos. Trata-se, bem entendido, de uma linguagem analógica.
No primeiro
instante da sua criação, criação que precedeu a dos homens, todos os anjos eram
bons. O maior deles, Lúcifer, pela beleza do seu ser era a obra-prima de Deus.
Os outros anjos não sentiam inveja. Bem pelo contrário, ao contemplarem-lhe a
perfeição, conseguiam fazer uma ideia da infinita grandeza do Deus escondido
que acabava de os criar. Todos os anjos amavam Deus, afirma S. Tomás de Aquino.
Não sentiam senão reconhecimento pelo que acabavam de receber da sua mão, a
existência, a vida, a beleza. Este espectáculo da criação, fazia com que
clamassem a uma só voz: “Glória a Deus
nas alturas”.
Se o amavam, no
entanto, não o podiam conhecer senão de longe. Mesmo para o mais inteligente
dos anjos, Deus permanece o Mistério por excelência. A inteligência dos
espíritos celestes bem pode ser superior à nossa, mas permanece limitada. Como
é que um vaso finito (o anjo) poderia conter o Infinito (Deus)? Limitavam-se,
pois, a conhecer Deus através dos efeitos do seu poder. Ao olharem-se a si
mesmos, ao olharem os outros anjos, viam como num espelho o reflexo longínquo
do Criador. E esta vida pacífica e contemplativa, agradava-lhes. O mundo
poderia ter ficado assim para a eternidade.
No entanto,
quando a criação era ainda completamente nova, Deus falou. Trata-se de um
pensamento, de uma revelação transmitida directamente à inteligência de cada
anjo. Para melhor manifestar a Boa Nova que anunciou aos anjos, vamos
decompô-la em três palavras distintas:
1 - Deus disse: “Criei-vos para que me vejais face a face.”
Esta primeira revelação é perturbadora para um anjo, bem mais que para um
homem, porque o anjo tem a capacidade de lhe captar de imediato todo o alcance.
Ver Deus face a face, significa para eles o impensável. Era-lhes impossível
esperar uma tal felicidade. Sabiam, bem mais do que nós, a infinita
profundidade do mistério divino e o limite das suas capacidades intelectuais.
Ver Deus face a face, isso significa compreender o seu Mistério com o próprio
olhar com que Deus se compreende. Ora, tal coisa é impossível. Não obstante, as
legiões angélicas tinham ouvido bem. Acreditaram, pois, aderiram a esta palavra
d Deus, apesar do seu carácter impensável, sabendo que nada é impossível a
Deus. Lúcifer foi o primeiro a acreditar. Com ele, os querubins, os serafins e
todas as ordens celestes, desejaram ver realizar-se esta promessa. Esta adesão
chama-se fé. Mas já neste primeiro instante, Deus sabia que Lúcifer acreditava
por outro motivo que o pequeno arcanjo Miguel.
2 - Deus falou
mais uma vez: “Eu sou manso e humilde de
coração. Ninguém me pode ver face a face se não for todo amor e humildade.”
Os anjos sabiam, através da contemplação natural, que Deus não os podia ter
criado senão por amor. Mas descobrem estupefactos, naquele instante, que Deus é amor. A contemplação natural
convidava-os antes a admirar, em primeiro lugar, a inteligência do Criador, a
sua luz. O mundo angélico parecia-lhes mais beleza que bondade. Pela sua
palavra, Deus convidou-os a inverter inteiramente as suas concepções habituais.
Quando Deus afirma que é amor, antes de tudo, quando o Todo-Poderoso revela que
se considera como o servo de todos (humildade), manifesta que a perfeição
natural dos Querubins não é nada a seus olhos, comparada ao amor. A sua ordem
de preferência não é a que dá a nobreza, mas a que dá o coração. Pede-lhes uma
conversão total. Ser amor é a condição necessária para toda a entrada na visão
beatífica.
Aqui se situa a
prova terrível para os anjos: renunciar a si mesmos. Já é difícil para um ser
humano, que todos os dias é confrontado com as suas imperfeições. Ainda mias o
é para um puro espírito, imagem perfeita da perfeição de Deus. O orgulho é um
defeito mais próximo dos anjos que dos homens. Esta abnegação, dissemo-lo, é indispensável
porque a vida proposta é sobrenatural.
3 - Uma terceira
palavra foi pronunciada: “Depois de vós,
vou criar pequenos seres ligados a um corpo de carne. Homem e mulher os farei.
Terão filhos. Vós sereis para eles anjos da guarda. Vós os conduzireis a mim.”
Esta revelação foi extremamente concreta, tão concreta que tinha o poder de
distinguir quem, de entre os anjos, era humilde, e quem não era. A Bíblia diz: “Deus separou a luz das trevas.” Esta
simples frase mostra-nos que se deu uma separação exterior entre a presunção de
uns e o amor de outros. Houve uma cisão no céu angélico. É o conteúdo desta
revelação primeira que provocou este primeiro drama da criação, o mistério
primeiro de iniquidade, mesmo no mundo dos humanos.
Esta revelação, à
maneira de um relâmpago fulgurante, deixou o céu inteiro silencioso e, no
instante seguinte, um desses instantes celestes que mede o pensamento dos
anjos, um voz gritou: “não servirei”.
O mais belo de todos, Lúcifer, tinha falado, passando a ser para sempre Satanás.
Lúcifer é o maior dos anjos, quer dizer, o mais poderoso do ponto de vista
intelectual, o mais próximo de Deus pela sua perfeição espiritual. Lúcifer ama
Deus. Seria aberrante afirmar que os anjos querem mal ao Criador, a quem sabem
dever tudo. Apenas o homem é capaz de odiar Deus porque não o conhece e julga-o
muitas vezes, pelos efeitos da sua providência. O homem age muitas vezes como
uma criança que, tendo sido repreendida pela mãe, está terrivelmente zangada
com ela. Esta criança ainda não é capaz de compreender que foi o amor que fez
com que a mãe agisse assim. O anjo está para além destes raciocínios infantis.
O problema de Lúcifer é que amava
Deus à sua maneira. Via nele o ponto mais elevado de todo o universo, diante do
quem todo o joelho se dobra, e nisso, tinha o sentido da honra de Deus e do seu
estatuto. Tinha, sobretudo, deste esse instante primeiro, o sentido da sua
dignidade própria, Lúcifer, do seu lugar de chefe de todos os anjos. A ordem
primeira, instaurada por Deus no início da criação e baseada no poder
espiritual, dava-lhe o primeiro lugar depois de Deus, primeiro lugar que lhe
convinha perfeitamente. Lúcifer não estava contra a criação de seres humanos,
esses espíritos limitados e débeis ligados a corpos materiais, na condição, no entanto,
que estivessem, na hierarquia dos seres do universo, abaixo dos anjos, apenas
acima dos animais. Mas compreendia que seria de outra forma. A ordem que
agradava a Deus não era, no fim de contas, aquela que confere os títulos de
nobreza intelectual, mas a que confere a humildade, a pequenez e, sobretudo, a
capacidade de amar. Ora, nessa ordem, o homem e a mulher eram criaturas mais
bem construídas para triunfar. Com efeito, um anjo, que é uma inteligência
pura, ama na medida em que compreendeu que algo é digno de ser amado. Amar para
ele, significa “querer unir-se ao que compreendeu ser um bem”. O homem, ao
invés, com a sua inteligência limitada e incapaz de se exercer sem a ajuda do
cérebro, tem a capacidade de amar sem mesmo compreender. Pode amar o seu Deus
com uma fé e uma confiança cegas. No há que de melhor nele, o homem pode amar
um amigo até dar a vida por ele, portanto, para além do que é lógico. É esta
forma de amar que agrada ao Todo-Poderoso, ao ponto que, quanto mais encontra
diante dele um ser deste tipo, mias se dá a ele e o estabelece no alto da
hierarquia dos seres.
Lúcifer perscrutava, em
pensamento, a natureza humana. Via nela o homem e a mulher. O homem com a sua
psicologia masculina, inclinado a compreender o mundo, a transformá-lo, e a
mulher com a sua psicologia mais inclinada a compreender as coisas com o
coração do que a analisá-las, mais inclinada a amar. Por causa disso, mais do
que o homem, a mulher obcecava-o.
O projecto de Deus surgiu-lhe
então em plena luz, com as consequências terríveis para o seu orgulho. Ele,
Lúcifer, e todos os espíritos celestes com ele, os Querubins, os Serafins e os
Tronos, as Dominações, as Virtudes, as Potestades, os Principados, os Arcanjos
e os Anjos, eram chamados por Deus a
baixarem-se a servir esses seres de lama e ossos, a protegê-los e a
conduzi-los, durante o período da sua permanência na terra, para que se
tornassem, no fim de contas, maiores que eles. Então, Lúcifer, foi tomado de
inveja. Mais do que pelo homem, foi tomado por uma hostilidade contra a mulher
e proclamou à face do céu: “Não servirei”.
Tornou-se num instante, de uma forma perfeitamente lúcida, o arauto da defesa
dos “direitos” de Deus e da defesa do lugar hierárquico dos anjos. Proclamou a
sua revolta, um pouco (salvaguardando as devidas proporções) à maneira de S.
Pedro, antes da paixão de Jesus: “Tu és
mestre e Senhor, não me lavarás os pés”. Também Pedro teve o sentido do
lugar de Jesus mas, contrariamente a Lúcifer, soube calar-se quando Jesus lhe
respondeu: “Se não te lavar os pés, não
terás parte comigo”.
Lúcifer, sendo o mais espiritual
dos anjos, teve, pelos seus argumentos, uma influência terrível sobre o resto
do Céu. A Bíblia diz que o dragão vermelho de fogo (cor que simboliza a cólera)
varreu um terço das estrelas do céu.
Este número não é para tomar no sentido literal, mas manifesta, mesmo assim,
que os demónios são numerosos (um terço dos anjos). A sua influência foi
proveniente, sem dúvida, da nobreza dos seus argumentos. Pretendeu não agir
senão para o bem de Deus. O seu argumento teria tido ainda mais peso se, como
pensam certos teólogos, os anjos tivessem sabido, desde o primeiro momento, do
projecto da encarnação do Filho de Deus, em Jesus Cristo. Tal projecto não pode
ser senão escandaloso aos olhos dos espíritos puros.
Lúcifer foi verdadeiramente o
defensor dos direitos de Deus? O seu amor por ele foi verdadeiramente a razão
da sua revolta? Muitos anjos não se deixaram enganar (dois terços, se tomarmos
à letra os textos). O Apocalipse diz assim: “Então,
uma batalha travou-se no céu: Miguel e os seus anjos combateram o dragão. E o
dragão foi contra eles, apoiado pelos seus anjos, mas foram vencidos e expulsos
do Céu.” Este combate não se fez com espadas de aço, mas com a espada da
verdade. Um simples arcanjo, quer dizer, um espírito das hierarquias mais
inferiores, foi o primeiro a denunciar a mentira de Satanás, um Querubim
resplandecente: “Não é por Deus que
lutas, mas por ti. Se amasses Deus verdadeiramente, obedecerias à sua vontade.
O que te importa é seres o primeiro. Foi
o orgulho que te cegou. Mas, quem é como Deus!” Miguel, por esta palavra de
verdade, arrastou atrás de si aqueles que Lúcifer não pôde seduzir.
A Bíblia não pára de confirmar
este orgulho primitivo de Lúcifer, que o soube tão bem camuflar em grandeza de
sentimentos. Isaías, falando dele, declara: “Como
caíste do céu, estrela da manhã, filho da aurora? Como foste lançado à terra,
vencedor das nações? Tu que tinhas dito no teu coração: subirei aos céus, acima
das estrelas de Deus elevarei o meu trono. Serei igual ao Altíssimo”.
Quanto a Jesus, não hesita afirmar que Satanás foi mentiroso desde o princípio. Ele foi o príncipe da mentira. Com
efeito, não há maior mentira que chamar bem àquilo que é mal.
O que aconteceu aos anjos desde o
esplendor da sua criação e desde a queda de alguns deles? Foram divididos em
dois grupos, segundo a escolha que fizeram de servir ou lutar contra o projecto
de Deus. Os anjos bons foram imediatamente introduzidos na visão de Deus e,
desde esse dia como hoje, jamais a deixam. Os anjos maus separaram-se de Deus,
e Jesus afirmou que a sua ruptura não cessará jamais. Lúcifer e os seus anjos
estão condenados para a eternidade. Alguns cristãos pensam que a eternidade do
inferno é contraditória com a bondade de Deus. Pensam que Deus, um dia,
perdoará o pecado a Lúcifer e tomá-lo-á com ele. Falam assim porque compreendem
mal o mistério do inferno, a saber, de uma forma terrestre e demasiado humana.
O homem, enquanto estiver na terra, pode sempre voltar atrás quanto aos seus
pecados. Deus recebe-o e perdoa-lhe. O anjo, quanto a ele, é demasiado
inteligente para estar submetido a estas reviravoltas da vontade. Quando um
anjo escolhe, sabe o que escolhe. Num instante, pesa os prós e os contra, e a
sua inteligência, como uma lâmina cortante, não deixa nada no vago. Lúcifer e
os seus anjos sabiam o que era o inferno, esse vazio de Deus. O inferno não
lhes pareceu um mal tão terrível face à perda desse outro bem que puseram no
lugar supremo do coração: o primeiro
lugar. Deus bem poderia infinitamente perdoar a Lúcifer, este responderia
indefinidamente “tenho razão”.
Eis o combate que se esconde sob a
denominação de “mistério de iniquidade”.
As suas consequências sobre a humanidade são fáceis de deduzir.
Que fazem agora os demónios? A
Bíblia afirma que foram precipitados na
terra. Esta frase misteriosa significa que a sua única obsessão, o
objectivo de toda a sua actividade, é o homem. Os demónios, lógicos com a sua
escolha original, não desejam mais que destruir o homem, sobretudo no plano
espiritual. O seu inimigo principal é tudo quanto lembra, de perto ou de longe,
a humildade ou o amor generoso. Se conseguissem que o homem, essa suposta
obra-prima, se juntasse lucidamente à sua revolta, a sua vitória
parecer-lhes-ia completa. Esperam, desta forma, demonstrar a Deus o seu erro
grosseiro, a estupidez dos seus planos. Desejariam obter, revoltando a
humanidade inteira contra o criador, o restabelecimento da antiga ordem que
lhes agradava, a ordem da nobreza, baseada nos direitos da natureza. Pensam
poder conseguir que Deus se vergue, faze-lo desistir dessa sua história de
humildade e de amor.
Deus deixa a Lúcifer e aos seus
demónios uma certa latitude para agirem de forma, por vezes, muito concreta,
junto dos homens. Na sua limpidez, Deus sabia que as propostas falaciosas, as
tentações, permitiriam àqueles que o amam, escolhe-lo mais livremente. Os
demónios e as suas velhacarias tornaram-se, pois, sem mesmo o suspeitarem,
servidores do plano de Deus para a vida eterna dos homens.
Desde o início, desde a criação de
Adão e Eva, agiram com este objectivo. Nessa época, Satanás apareceu de forma
visível e propôs de forma clara o mistério da iniquidade: “Escolhei vós mesmos o que é o bem e o mal. Os vossos olhos abrir-se-ão
e sereis como deuses. É disso que Deus tem medo!”
Desde o pecado original e até aos
nossos dias, os demónios fizeram-se aparentemente mais discretos. Passam o
tempo a tentar os homens, escondendo-se na sua psicologia, fundindo-se com o
seu cérebro. Tentam-nos no sentido das pulsões carnais, porque compreendem que
o caminho que conduz à rejeição da humildade e do amor, começa por pecados
menos graves, mas mais imediatos para os humanos. Como passam o seu tempo
ocupados com os pecados carnais (dinheiro, honra, poder), os demónios, que são
criaturas espirituais, são ditos pela Bíblia que rastejam sobre a terra…
[87] Prazeres
egoístas, vaidade humana, procura da posse.
[88] St. Agostinho,
As duas cidades.
[89] Apocalipse 12,9.
[90] Obviamente, não
reina no inferno senão uma plenitude aparente porque a liberdade de nada serve
se o home goza dela sem ser feliz.
[91] Génesis, 3,5.
[92] Apocalipse
12,10.
[93] A fé solene da
Igreja está aqui em jogo. Ver as definições do Papa Bento XII, citadas no final
do livro, terceira parte.
[94] Trata-se mesmo
de um dogma solene. Recordamos-lhe o conteúdo no capítulo 8: a fé da Igreja
relativamente à salvação. Esta fé é cada vez mais confirmada por fontes
privadas e santos canonizados. É testemunho disso, esta nota enviada por um
leitor atento (Ludovic CHUZEVILLE, Março de 2003). Excerto das Quinze Orações
de Santa Brígida: “Cristo acrescenta a seguir: ‘A pessoa que dirá quinze PATER
NOSTER e quinze AVE MARIA com a s orações consagradas às múltiplas dores da
minha paixão, durante um ano inteiro, terá os primeiros graus de perfeição. Antes
da sua morte, virei com a minha mãe muito querida e bem-aventurada, e receberei
benignamente a sua alma, e a conduzirei às alegrias eternas’”.
[95] Veremos no
capítulo consagrado ao purgatório das almas penadas que esta definição é
rigorosa e importante. Se uma alma permanece, mesmo durante vários séculos,
errante sobre a terra sem passar para o outro mundo, é que está ainda na hora
da morte.
[96] Lucas 15,7.
[97] Apocalipse
12,10.
[98] É a noite do
espírito, descrita por S. João da Cruz.
[99] Tento dar aqui
uma nova definição teológica da morte, baseando-me nas descobertas relativas à
N.D.E.. Ela não faz senão tornar mais precisa a antiga definição: separação da
alma e do corpo, com integração do psiquismo.
[100] Alguns físicos,
confrontados com certas experiências no domínio dos corpúsculos mais pequenos
que os átomos, falam da existência de uma “matéria psíquica”, de um estado da
matéria que muda o seu comportamento quando é observada. Todo um novo domínio
parece abrir-se à ciência física. Para a teologia, outras questões se colocam.
Essa matéria está submetida à usura (a entropia) como toda a matéria que
conhecemos na terra? Se sim, donde lhe vem a sua subsistência? S. Tomás teria
respondido que a incorruptibilidade lhe vem da energia da alma ou do poder de
Deus que decide, no outro mundo, fazer parar a entropia…
[101] O psiquismo
sobrevive. As sensações permanecem. O outro mundo é pois um mundo sensível e
não exclusivamente espiritual. Daí os testemunhos das pessoas que estiveram
próximas da morte e que vêem paisagens magníficas, jardins luxuriantes. Não são
sonhos mas a visão objectiva do outro mundo. Os paganismos antigos
conheciam-no. Os romanos descrevem , por exemplo, o paraíso: “Se te encontrares completamente só,
cavalgando verdes pastagens com o sol no rosto, não te perturbes. Porque estás
nos campos elíseos e já estás morto. O que fizeste na vida ressoa para a
eternidade”. (Alocução do General romano Maximus, “Gladiator”, Ridley
Scott, 2000). O Concílio Vaticano II dá testemunho da parcela de Espírito e de
verdade que receberam, mesmo se ignoravam a razão de todas estas coisas.
[102] Mateus 16,26.
[103] Veremos, no
capítulo consagrado ao purgatório, que podem existir almas que permanecem
bloqueadas na morte, quer dizer, entre este mundo e o outro. O seu apego à
terra é tão grande que este contratempo lhes é útil para progredirem. A carne,
no entanto, está morta. Permanecem errantes na terra, durante, às vezes,
séculos. Estão no que o Antigo Testamento chamava o sheol, o Hades, dito de
outra forma, a morte. Cristo ainda não lhes apareceu na sua glória.
[104] A igreja
proclama de forma dogmática este facto pela voz de Bento XII, desde o século
XIII: “Pela presente constituição, que
ficará para sempre em vigor, e pela nossa autoridade apostólica, definimos que,
segundo a disposição geral de Deus, as almas de todos os santos que deixaram
este mundo, estão no Céu com Cristo imediatamente depois da morte e a
purificação de que falámos para aquelas que terão necessidade dela, antes mesmo
da ressurreição do corpo e do Juízo geral, e isto desde a Ascensão do Senhor e
Salvador Jesus Cristo ao Céu.
Além disso, definimos que, segundo a disposição geral de Deus, as
almas daqueles que morrem em estado de pecado mortal descem imediatamente
depois da sua morte, ao inferno, onde são atormentadas pelas penas
infernais.”
[105] Ofereceu mesmo
as duas rolas pelo pecado depois do nascimento de Jesus, ela que concebeu de
modo virginal.
[106] Mateus 25,12.
[107] No decorrer dos
seus 2000 anos de história, a Igreja falou muito do inferno. O Magistério fá-lo
à sua maneira, quer dizer, com precisão e rigor. Mas também com uma assustadora
secura. Os seus textos não têm carne porque a Igreja deixa aos teólogos o
cuidado de a colocar. O papel do Magistério de Pedro é apenas o de indicar com
marcos, onde se encontra o verdadeiro e o falso. N final deste capítulo, é
provável que toda a tensão tenha desaparecido. Eis, tal como relata o
Dentzinger (colecção de dogmas), a fé da Igreja relativamente ao inferno: 1. O
inferno existe. 2. Há anjos que escolheram condenar-se (a Igreja nunca se
pronunciou pela voz de Pedro sobre a escolha individual deste ou daquele homem.
Mas o reconhecimento pela Igreja de aparições e revelações privadas, indica com
uma grande segurança - que não é no entanto a da fé, no sentido teologal do
termo -, que certos humanos escolhem condenar-se). 3. O inferno é eterno. 4.
Nenhum condenado jamais pedirá perdão. 5. É pois inútil rezar pelos condenados.
6. Existem penas no inferno, como o fogo e os vermes. 7. Mas a maior pena do
inferno é o dano, quer dizer, a separação de Deus.
[108] Lucas 12,4.
[109] Génesis 2,9.
[110] Génesis 2,17.
[111] Mateus 12,31.
[112] Os milagres
distinguem-se dos prodígios (causa psicológica, científica, angélica). O
prodígio não se opõe às leis da natureza. No entanto, o prodígio pode também conduzir
à fé. Exemplo de prodígios: sonho premonitório, fenómeno paranormal como a
levitação, a telepatia. O milagre, contrariamente ao prodígio, não pode senão
ser atribuído apenas a Deus. Implica ir contra a natureza, contra toda a lei
natural. Por vezes, implica um poder infinito, como numa cura instantânea.
Exemplos de milagres: a ressurreição da Lázaro (João 11, cujo corpo já estava
em decomposição), a cura de Joana
Frétel em Lourdes, as profecias de Santa Odília (que é uma santa canonizada,
tendo portanto um certo nível de autoridade nos seus escritos), as profecias de
Fátima, etc.
[113] João 12,10: “Os
sumos-sacerdotes decidiram também matar Lázaro, porque muitos Judeus, por causa
dele, iam-se embora e acreditavam em Jesus.”
[114] 1Coríntios 2,8.
[115] O facto de uma
blasfémia contra o Espírito Santo conduzir ao inferno, faz parte da fé mais
segura da Igreja. Mas a descrição destes seis pecados contra o Espírito vem de
grandes teólogos. S. Tomás de Aquino foi buscá-los a St. Agostinho. Setecentos
anos mais tarde, não encontrei outros.
[116] Suma Teológica,
IIa Iiae, questão 4, artigo 2.
[117] Ir-se-á ao ponto
de verificar a sua virgindade, Uma feiticeira não pode, ao que parece, ser
nunca virgem.
[118] … no sentido em
que o condenado reina sobre si mesmo, faz o que lhe agrada, não depende de
ninguém. Mas, de que serve tal poder face a outros orgulhosos que estão no
mesmo orgulho arrogante, face à ruminação solitária? Que serve ao homem ganhar
o universo se perder a alma?
[119] Um bispo, de
partida para a Rússia, parou em Nuremberga, durante uma festa nazi. Assistiu a
um discurso de Hitler. Este fixou os olhos nele. O bispo testemunhava, anos
depois, o mal-estar que conservava, tendo a impressão de ter sido desmascarado
apesar do seu fato à civil. Ficou convencido toda a vida de que Hitler tinha
pactuado com o demónio. Se isto é verdade, o pecado de Hitler torna-se muito
mais lúcido.
[120] Este termo é
rigoroso. O perdão é proposto. Não é dado porque é aberrante perdoar enquanto a
contrição não está presente. O amor não é uma virtude mole mas cheia da
rectidão da verdade.
[121] Na escola, um
menino contava à professora, o maior sofrimento da sua vida. Esta história pode
ilustrar o que é o Dia do Senhor, o Dia da vingança. Tinha quebrado
voluntariamente, durante uma cena com a mãe, um pequeno objecto que ela
estimava muito. Longe de gritar com ele e de o mandar para a cama, pôs-se
simplesmente a chorar. O menino teria preferido tão mais que ela se zangasse
com ele. O mesmo se passa na hora da morte, mesmo para Hitler.
[122] Marta Robin (que
ainda não é uma santa canonizada e por isso os seus escritos são citados a
título de testemunho) vivia esta dúvida relativamente a Hitler e convidava a
rezar por ele “para o caso de…”
[123] Mateus 8,12.
[124] João 12,5.
[125] João 13,26.
[126] Mateus 26,24.
[127] Assim, na hora
da morte, muitos suicidados atingem num instante, face a Jesus, um grau de
caridade impressionante, segundo esta palavra do Evangelho a propósito de uma
mulher pecadora: “Porque foi muito
perdoada, amou muito”. Como poderia ser de outra maneira, para seres que não
se mataram senão por uma falta de amor capaz de preencher as suas vidas? Uma
vez purificados, a caridade obtém-lhes um peso de glória maior que o de muitos
cristãos virtuosos mas pouco sedentos: “As
prostitutas e os pecadores entrarão à vossa frente no Reino dos Céus.”, diz
Jesus a sacerdotes. Não se trata de negar que o suicídio constitui um pecado.
Sem dúvida que o suicídio por desespero é um acto grave, não apenas por causa
daqueles que permanecem sobre a terra, os pais, os amigos, mas também pelo encurtamento
da aprendizagem terrestre, querida por Deus. Implica a maioria das vezes, uma
falta de atenção (bem perdoável, de tal forma o sofrimento é grande) por
aqueles que permanecem na terra e, se a pessoa é crente, pela ideia que não
pode deixar de ter sobre o mistério de Deus. Mas não é praticamente nunca, uma
blasfémia contra o Espírito Santo, como todo o acto marcado pelo sofrimento e
pela ignorância.
[128] O Magistério da Igreja confirmou numerosas vezes
as palavras de Jesus relativas às penas do inferno: o dano, que é a pena mais
importante. “O Senhor dirá aos maus,
quando julgar a sua alma: afastai-vos de mim, malditos.”. O fogo: o
salmista (Salmo 17) escreve “o fogo e o
enxofre, e o vento das tempestades serão a parte do seu cálice” e Job
24,19, continua: “da água das neves,
passa ao calor extremo.” É por isso que a Igreja definiu pela voz de Bento
XII o seguinte dogma: “definimos que,
segundo a disposição geral de Deus, as almas daqueles que morrem em estado de
pecado mortal descem de imediato, depois da morte, ao inferno, onde são
atormentadas por penas infernais.” Mas nunca a Igreja se exprimiu com um
grande rigor sobre a natureza do fogo. Tem relação com o fogo material,
sensível? Uma decisão da Sagrada Penitenciária (1890), proíbe dar a absolvição a
quem não vir no fogo do inferno senão uma metáfora designando as penas intensas
dos condenados. Esta decisão, de carácter disciplinar, fundamenta-se no
ensinamento comum dos teólogos. Deixa uma certa liberdade. No decorrer desta
parte, veremos como, mesmo neste ponto, a Igreja tem razão e é protegida contra
o erro.
[129] Job 1,6.
[130] Mateus 5,22 e
dezenas de outras referências ao fogo que não se apaga.
[131] É um “Habitus
entitativo”, diria S. Tomás de Aquino, quer dizer, uma propriedade do mais
fundo da nossa alma, que irradia primeiro no espírito (inteligência, vontade),
depois, no psiquismo e no corpo.
[132] Abre-se a
televisão assim que se chaga a casa para “não pensar”, para não experimentar a
angústia indefinível de qualquer coisa que falta.
[133] Feuerbach faz
desta propriedade da alma, a prova de que as religiões são simples invenções da
nossa natureza amachucada. O seu argumento poderia provar o inverso. Somos
criados para ver Deus, donde este vazio infinito…
[134] Marcos 9,48.
[135] Lucas 13,28.
[136] Lucas 8,26-38.
[137] Apocalipse
19,20.
[138] Mateus 5,18.
[139] Esta
investigação apenas me compromete a mim. A cada um de a fazer, por sua própria
conta, à força de observação da natureza humana. Em La Salette, a Virgem disse
às crianças: “muitos vão para o inferno.”
Mas na sua boca, que quer dizer muitos? Talvez um só homem…
[140] Mateus 7,13.
[141] 1Coríntios,
15,32.
[142] Mateus 25,40.
[143] A existência do
purgatório faz parte da fé católica, solenemente e sem hesitação. Paulo VI
colocou-o no seu novo Credo, publicado em 30 de Junho de 1968, em previsão da
crise da fé que havia de vir: “Acreditamos
na vida eterna. Acreditamos que as almas de todos aqueles que morrem na graça
de Cristo, seja que ainda tenham que ser purificadas no purgatório…” A
existência de seis graus do purgatório é, pelo contrário, fruto da minha
investigação, através da tradição dos santos mais profundos. Os três
purgatórios místicos de Santa Catarina de Génova, são os mais descritos pela
Igreja. O purgatório das almas errantes é sem dúvida o menos documentado. Nem
por isso é o menos importante, porque completamente lógico e útil à salvação de
alguns. Ao procurar no património da Igreja, encontram-se seis graus do
purgatório. Existem talvez outros. Este número não tem nada de dogmático. Mas o
seu simbolismo bíblico é espantoso. No sétimo dia, o homem repousará em Deus,
da mesma forma que Deus se repousou no sétimo dia da sua criação (Génesis 1).
Ver capítulo consagrado à visão beatífica.
[144] Carta a
Mekhitar, da Arménia, 29 de Setembro de 1351 (DS 854). Ver também DS 1304, DS
1820.
Concílo de
Trento, Sessão 25, D. B., Enchiridion, 938, Trad. A. Michel, purgatório,
Dicionário de Teologia Católica, 1278-1279.
[145] 2Macabeus 12,46.
[146] 1Coríntios 3,15.
[147] Génesis 28,11.
[148] Ver Apocalipse
8,1: “Fez-se um silêncio no céu, à volta de meia hora.”, quer dizer, o tempo de
uma vida na terra.
[149] João 20,29.
[150] Job 26,5: “As
Sombras tremem debaixo da terra, as águas e os seus habitantes estão
apavorados.”
[151] Ver, por
exemplo, Génesis 42,38: “Se lhe acontecesse algum mal durante a viagem que ides
fazer, os meus cabelos brancos desceriam ao sheol sob o peso da dor.”
[152] … que é uma
santa canonizada. Foi, além disso, reconhecida pela Igreja como uma verdadeira
autoridade teológica relativamente ao purgatório, num grau inferior, bem
entendido, ao da Sagrada Escritura ou do Magistério da Igreja (ver final do
texto).
[153] A teologia do
sofrimento, tal como a apresento aqui, é rejeitada por uma parte importante dos
sacerdotes ocidentais. É uma verdadeira tragédia porque, com o budismo (e a sua
origem, o hinduísmo), o catolicismo era a única religião do mundo a dar sentido
ao sofrimento. Para compreender esta riqueza, pode ler-se, com fruto, a
meditação sobre o sofrimento, de João Paulo II. Na sequência do atentado que
quase lhe custou a vida, viu um anjo, o de Fátima, desviar a bala. Mas o anjo
não a desviou senão um pouco, sob ordem de Deus. João Paulo II foi atingido na
carne e fisicamente humilhado (anus artificial, dores lancinantes). O seu texto
é digno porque vem da sua própria dor.
[154] Recordámo-lo no início deste trabalho. Colocamo-lo de novo
aqui, em nota, de tal modo é essencial ao restante: a teologia católica é uma
“ciência” no sentido em que é lógica. Retira de alguns princípios simples a
totalidade da sua compreensão. Para compreender (o que não significa compreender
tudo), basta captar esses princípios.
Outra coisa é acreditar nesses
princípios!
A Boa Nova é, pelo seu
conteúdo, o princípio de toda a teologia cristã.
“Existe um Ser
eterno. A sua vida é feita de felicidade interior. É infinito, basta-se a ele
mesmo. Assim, passa a eternidade a contemplar-se a si mesmo e a amar-se. O que
para nós seria narcisismo, é nele, porque não tem qualquer limite, Vida, Paz e
Alegria. Podemos mesmo dizer que esse Deus único, na sua vida íntima, é como
que feito de três pessoas. O conhecimento que tem de si mesmo chama-se VERBO (o
Filho), o Amor que tem por si mesmo, chama-se ESPÍRITO SANTO. Trata-se de um só
Deus em três pessoas.
Duas qualidades
de coração podem resumir a vida de Deus: a humildade e o amor. Esta humildade e
este amor são infinitos em todas as direcções das relações trinitárias.
Continuamente, o Pai apaga-se diante do Filho porque o ama. Alguns teólogos
objectam que Deus não pode ser humilde, que isso é próprio da criatura. Que
reflictam no abaixamento do Verbo eterno, ele que era de condição divina, diz
S. Paulo…
Ora, o Deus
infinito decidiu partilhar a sua felicidade. Cria, pois, seres dotados de um
espírito. A sua finalidade é mostrar-se a eles, face a face, para que sejam
felizes como ele é (os anjos, depois, os homens). Mas há uma condição. Não
podemos ver Deus face a face senão o desposarmos livremente, como num casamento
de amor.
E, para o desposar, é
preciso tornarmo-nos semelhantes a ele. Ninguém pode ver Deus se não se torna,
como Deus, todo humildade e todo amor. “Ninguém pode ver Deus sem morrer para
si próprio”. Não se trata de uma humildade qualquer, nem de um amor qualquer. O
mínima parcela de orgulho ou de egoísmo torna “tecnicamente” impossível o
casamento com Deus. Nestas condições, não podemos compreendê-lo e vê-lo
assemelhar-se-ia a uma violação.
Mas, quem é assim? Quem
se pode classificar de humilde e amante ao ponto de ser capaz de dar a própria
vida por outro, de dar a vida por um inimigo? A imagem do amor necessário é
visível na vida de Jesus. Os que lhe deram a morte e que troçaram dele, ele
ama-os ao ponto de os acolher na hora da morte e de lhes propor a vida eterna.
Estas pessoas ficaram, sem dúvida, de tal forma surpreendidas com uma tal prova
de amor, que pediram perdão pela seu pecado.
[155] Mateus 23,35.
[156] Lucas 18,26.
[157] Esta passagem é
muito importante. Tem o poder de dar ao coração humano, pelo próprio facto de
Deus se calar, uma sede, portanto, um desejo que cresce constantemente. No
entanto, Deus não é escravo das suas leis. Veremos que é capaz de conduzir as
almas daqueles que não viveram neste mundo (as crianças mortas muito cede, em
particular), de forma diferente.
[158] Referir-se à
primeira parte, a história de Deus.
[159] Meditação sobre
o sofrimento.
[160] 1Coríntios 1,23.
[161] Este
acontecimento marcou a Bélgica no final dos anos 1990.
[162] Isaías 65,17;
Apocalipse 7,14.
[163] Derniers
entretiens.
[164] É consagrado a
este assunto um capítulo, mais adiante.
[165] Mateus 7,22.
[166] Também chamado o
sheol ou o Hades. As minhas fontes: alguns textos bíblicos do Antigo Testamento,
muito confusos e pouco precisos, numerosos testemunhos da boca de santos
canonizados. Alguns são aqui citados. Não existe nenhuma definição de um papa
ou de um concílio, mas apenas uma prática ligada às missas dos mortos e, por
vezes, praticadas por padres exorcistas em caso de fenómeno paranormal. Finalmente, uma quantidade de testemunhos
relativos às almas errantes, tanto entre os cristãos como no mundo pagão,
muçulmano, judeu, etc.
[167] Job 7,9.
[168] Lucas 12,15 ss.
[169] Sem fazer
misturas, é importante constatar que certas teologias orientais explicam, da
mesma forma, o fenómeno das almas penadas. O Livro dos Mortos tibetano, indica
como é possível aos vivos, conduzirem as almas errantes a bom porto. Nesta
tradição, explica-se a sua ligação com o nosso mundo por uma conservação, para
além da morte, do corpo psíquico, (o corpo astral, espécie de corpo psíquico
que se mantém durante um tempo a seguir à morte do corpo físico, composto de
energia magnética e sede das faculdades sensíveis). Desta forma, é-lhes fácil explicar as manifestações das
almas penadas. Tal perspectiva é perfeitamente admissível pela teologia
católica.
[170] Pode ser este o
caso de certo tipo de suicídios ligados à perda de um bem material. Aquele que
se mata porque perdeu o dinheiro, é manifestamente vítima deste apego doentio.
Se o seu coração tivesse um outro objectivo que não fosse o dinheiro,
encontraria a força de sobreviver. Pensa fugir para o nada, mas leva o problema
consigo. Encontramos também culpados de pecados particularmente ignóbeis e
tremendos, que morreram psicologicamente minados de pesadelos dos seus actos. O
seu mal psicológico é tão pesado que a vida moral fica inibida. Não estão
prontos para enfrentar a Parusia, a aparição de Cristo glorioso.
[171] A Bíblia
descreve muito bem como, historicamente, a humanidade se foi educando. Os
homens dos tempos antigos foram muitas vezes selvagens. Ver, por exemplo,
Génesis, 6,4: “Os Nefilins habitavam a
terra naqueles dias (e também, depois), quando os filhos de Deus se uniam às
filhas dos homens e lhe davam filhos; são os heróis dos tempos antigos, esses
homens famosos. Javé viu que a maldade dos homens era grande na terra e que o
seu coração não tinha senão maus propósitos ao longo do dia.”
[172] Lucas 16,22:
“Ora, aconteceu que o pobre morreu e foi levado pelos anjos para o seio de
Abraão. O rico também morreu e foi enterrado.”
[173] Para a maioria
dos Padres da Igreja, os mortos da Antiguidade recebiam a visita de um Anjo de
Deus que lhes anunciava o Evangelho que estava para vir. Os mortos esperavam
então com Abraão, na alegria, que o Messias nascesse e viesse abrir-lhes a
Visão de Deus.
[174] Vida de Clémence
Ledoux, fundadora da fraternidade de Maria Rainha Imaculada.
[175] Lucas 12,34.
[176] O espiritismo ou
evocação dos mortos tem por causa, a maioria das vezes, os demónios do inferno.
Fazem-se passar por santos do Céu, daí a interdição total da Igreja para com
essa prática. Por vezes, no entanto, são estas almas em sofrimento que
respondem. Reconhecem-se pelo carácter insípido e pesado das suas afirmações.
[177] Marcos 6,49.
[178] Mateus 25,36.
[179] Quer dizer, na
inteligência e no amor.
[180] Este ensinamento
nada tem a ver com o dos animistas: “Não importunes os vivos. Vai habitar nos
lugares desertos.”
[181] Na terra, não
temos a experiência da nossa capacidade de viver para além da morte. As almas
errantes estão experimentalmente libertas desta dúvida.
[182] Noutras
religiões, como o tantrismo, o fiel é também convidado a rezar pela alma
errante e a dirigir-lhe a palavra, explicando-lhe que é bom para ela não se
apegar à terra, que o seu lugar é no outro mundo. Uma prática destas parece
realista e sã. Assim ajudada, a alma pode então passar para outra morada do
purgatório onde o sofrimento não é mais causado pela ausência dos prazeres, mas
pela ausência de Deus.
[183] Mateus 5,6.
[184] Recordemos: a
vida na terra é a única que permite o crescimento da capacidade de amar (quer
dizer, do desejo), por duas razões: 1. Deus esconde-se; 2. As desgraças parecem
injustas. No coração dos justos, sedentos de justiça, de explicação, o amor cresce
à medida que tomamos consciência deste absurdo. Pouco importa a revolta, a
cólera de alguns. Profundamente, ela é antes sinal positivo de um desejo
crescente de amor e de justiça. Essas pessoas serão saciadas porque Deus é o
Amor e a Justiça. É por isso que esta vida é tão importante.
[185] É aliás, um dos
argumentos mais utilizados pelos protestantes, para negar a realidade de um
outro purgatório depois da vinda de Cristo. Esquecem que o amor total não é a
única condição para ir para junto da Trindade. Esse amor deve ser humilde.
Ora, é difícil amar sem nos olharmos a amar, quando, durante toda uma vida, não
vivemos senão para nós. Isso, mesmo a aparição de Cristo, não o realiza sempre.
Quando uma pessoa nunca tocou a sua miséria de forma experimental (o que apenas
a experiência do sofrimento realiza plenamente), tem dificuldade em compreender
que não é senão nada.
[186] Santa Catarina
de Génova teve a visão de três purgatórios místicos. Pô-la por escrito. Daí
saiu um Tratado do purgatório cujo conteúdo foi canonicamente posto em
realce pela Igreja.
[187] Esta palavra é
designada pela Igreja, o julgamento final
da pessoa.
[188] Ana Catarina
Emmerich (citada a título de simples testemunho, sem que lhe seja atribuída
autoridade), uma célebre estigmatizada do século XIX, teve a visão do estado
das almas deste purgatório místico: “Vi Deus dar o seu julgamento a grandes pecadores. Ele não condena
senão aqueles que não querem absolutamente converter-se. Mas aqueles que têm
ainda uma centelha de boa vontade, salvam-se. Há os que têm um intenso
arrependimento dos seus pecados, que os confessam sinceramente e têm plena
confiança nos méritos infinitos do nosso Salvador. Esses chegam à felicidade
eterna e os seus pecados são esquecidos. Passam pelo purgatório, mas não ficam
lá muito tempo. Ao contrário, muitos vão muito tempo para o purgatório, e não
são grandes pecadores, mas vivem na tibieza e, por amor próprio, acham mal que
os advirtam e repreendam.” (Vie de Anne-Catherine Emmerich, Téqui, Tomo I,
p.331).
[189] Cristo sofreu em
plena inocência. Num grande brado, na cruz, pediu a Deus seu Pai que isso
servisse de pagamento justo por todo o mal cometido no mundo inteiro. Obteve
esta indulgência. Aplica-a sem cessar a cada um de nós, à sua maneira. Gosta de
nos obter a indulgência pela pena dos nossos crimes através da oração daqueles
que ainda estão na terra.
[190] S. Tomás
distingue o tempo exterior da duração interior, subjectiva, a que chama o aevum.
[191] Lucas 16,24.